STJ Jul24 - Absolvição - Furto - O Carro Ser Encontrado Com o Réu 2 Dias Após os Fatos Não Indica a Sua Participação :"Ausência de Demais Elementos Probatórios - Ferimento ao Art. 386, VII do CPP" - Corréu Com Dosimetria Irregular: (i) Condenações somente podem ser valoradas a título de antecedentes criminais, não se admitindo sua utilização para desabonar a personalidade ou a conduta social do agente (ii) 1/6 deve ser aplicada na fração da atenuante da confissão
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
Inteiro Teor
RECURSO ESPECIAL Nº 2090579 - SP (2023/0283013-9)
DECISÃO
Cuida-se de recurso especial interposto por DEIVID XXXXXXXXXXXXXX com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal - CF, contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO em julgamento da Apelação Criminal n. 1502852-25.2021.8.26.0506.
Consta dos autos que Deivid Lucas Andrade da Silva foi condenado à pena de 02 anos e 04 meses de reclusão, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 12 dias-multa, fixados no valor unitário mínimo, como incurso no art. 155, § 4º, incisos I e IV, do Código Penal.
Consta, ainda, que Karlos John Wayne Sampaio Costa Balduino foi absolvido da prática do crime previsto no art. 155, § 4º, incisos I e IV, do Código Penal - CP, com fulcro no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal - CPP (fl. 254).
Recurso de apelação interposto pela acusação foi provido para exasperar a reprimenda de Deivid Lucas Andrade da Silva ao patamar de 02 anos, 07 meses e 15 dias, a ser cumprida em regime semiaberto, mais o pagamento de 13 dias-multa, no valor unitário mínimo, bem como para condenar Karlos John Wayne Sampaio Costa Balduino à pena 03 anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e ao pagamento15 dias-multa, no valor unitário mínimo, como incurso no art. 155, § 4º, incisos I e IV, do Código Penal (fl. 274).
Em sede de recurso especial (fls. 289/304), a defesa apontou violação ao art. 386, V, do CPP, porque não há que se falar em suficiência dos elementos probatórios trazidos aos autos para sustentar um decreto condenatório em face de Karlos. Afirmou que o fato de o veículo utilizado na prática criminosa ter sido encontrado na condução de Karlos dois dias depois nada comprova acerca de sua efetiva participação no delito de furto, nem eventual prisão em conjunto de Karlos e Deivid por crime diverso, ocorrido em data diversa.
Em seguida, apontou violação ao art. 59 do CP, por violação à Súmula n. 444 do STJ na circunstância judicial da personalidade.
Ponderou violação ao art. 489, § 1º, II, do CPC combinado com o art. 3º do CPP, porque reconheceu-se a presença de duas circunstâncias atenuantes a Deivid, mas reduziu-se a pena em 1/8, afastando-se do índice usualmente utilizado pela jurisprudência nacional, de 1/6, sem justificativa idônea para tanto.
Aduziu ofensa ao art. 33, § 2º, c, do Código Penal, porque nos casos em que a pena de reclusão seja imposta a agente não reincidente e quando o montante for inferior a 4 anos- o que é exatamente o caso dos autos - o regime a ser imposto é o aberto.
Requer seja restabelecida a absolvição do recorrente Karlos e o redimensionamento da pena-base dos recorrentes, assim como a fração de diminuição utilizada na segunda fase dosimétrica, bem como a fixação de regime aberto.
Contrarrazões do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (fls. 308/320).
Admitido o recurso no TJ (fls. 323/324), os autos foram protocolados e distribuídos nesta Corte. Aberta vista ao Ministério Público Federal - MPF, este opinou pelo provimento do recurso especial (fls. 334/338).
É o relatório.
Decido.
Sobre a condenação de Karlos, o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO manifestou-se nos seguintes termos do voto do relator:
"Já no que diz respeito ao acusado Karlos, nos termos do recurso ministerial, é o caso de sua condenação pela prática do crime de furto.
Constou da r. sentença condenatória que:
"(...) , não se depara com a segurança necessária a aplicar-se a mesma conclusão para o coacusado Karlos, pois o quadro a ele delineado restringiu-se a identificá-lo naqueles outros BOs acima já referidos na análise feita para a situação de Devid, quando ambos fizeram uso do Fiesta em Pradópolis e foram interceptados pela equipe policial na posse de objetos com destinação certa à prática de furto, bem como naquela outra ocasião em que teriam sido abordados ocupando o mesmo VW Fox, em região da cidade distante ao endereço da vítima, segundo por ela mesmo pontuado em suas declarações, e dentro do qual apreendidos objetos que sequer também foram reconhecidos pela vítima como seus.
Já com atenção à filmagem captada dos fatos, a própria vítima mencionou seriam dois a três os envolvidos no delito e, embora Deivid tinha características aproximadas a uma das pessoas visualizadas, para nenhum dos outros, fossem dois ou três o total do grupo, surgiu qualquer apontamento de individualização, seja da compleição física, seja do tipo de comportamento adotado que, eventualmente, pudesse transparecer algum tipo de aproximação com a pessoa de Karlos.
Não passa despercebido que na abordagem em Pradópolis estavam os acusados em grupo de três pessoas (inclusão de Flávio aos dois acusados deste feito). Contudo, apesar de aqui haver a sugestão da vítima sobre também aqui serem três, sequer Flávio foi cogitado como um dos autores envolvidos nos fatos ora apurados, não podendo ser aplicada simples transposição entre os identificados naquele outro BO para o que deflagrou a presente persecução penal, até mesmo porque sequer naquele outro feito que enfrenta o acontecimento de Pradópolis sobreveio ainda sentença condenatória.
O raciocínio que se emprega, frente às circunstâncias acima assinaladas, serve tão somente para estabelecer a compreensão de ser apenas dedutível a vinculação de Karlos com os fatos, sem conferir a garantia exigida pelo processo penal para se formar a convicção segura a ponto de fustigar a presunção de inocência". (fls.187/188).
Respeitado tal posicionamento, a meu ver, não há dúvida da participação de Karlos no delito em comento. Isso porque, o corréu Deivid, em juízo, consignou que praticou o crime com outros dois comparsas.
Por sua vez, o veículo utilizado na prática criminosa foi abordado pela Polícia Militar dois dias depois do furto em comento, sendo conduzido por Karlos e tendo como passageiro Deivid, justamente porque havia diversas chamadas no COPOM sobre tentativas de furtos a residência pelos ocupantes daquele automóvel (fls. 14/16).
Ademais, alguns dias antes do crime em questão, Karlos e Deivid foram presos em flagrante juntos pelo crime de receptação de um veículo produto de roubo.
Além disso, não há como crer na narrativa dos acusados em juízo. Os réus afirmam que estavam na rua com o veículo para dar uma volta[versão de Deivid] ou para 'pegar' mulheres [versão de Karlos], contudo, como já dito, havia denúncias anônimas dando conta de que o veículo estava sendo usado na prática de furtos.
Ressalta-se, ainda, que na abordagem realizada pela Polícia Militar em 07/05/2021 (fls. 14/16) era Karlos quem estava na direção do veículo Fox utilizado no furto o que explica sua não aparição nas imagens obtidas pela câmera de segurança do vizinho da vítima, que só filmou um dos indivíduos que estava no veículo, isto é, provavelmente aquele que não estava na direção do automóvel.
Destaca-se, no mais, os argumentos constantes das razões de apelação do d. Público, dos quais também nos valemos, eis que bem lançados, senão vejamos:
"Em Juízo, KARLOS também negou a prática delitiva, afirmou que conhece DEIVID há 01 ano e que, na data dos fatos, pegou o veículo em uma chácara juntamente com DEIVID para passear, quando foi abordado pelos policiais, os quais alegaram que o veículo foi identificado em uma filmagem da câmera de segurança referente à prática de furto.
Esclareceu que o carro era de uma pessoa que não conhece, sequer sabe o nome. Pegou o carro apenas para passear e buscar "algumas meninas".
Acusado de outro furto ocorrido em Pradópolis, ocasião em que estava na companhia de DEIVID e Flávio, negou a prática delituosa.
Atualmente está preso pela prática de tráfico.
Com efeito, a negativa de KARLOS decerto não convence, na medida em que não infirmada pelas demais provas orais que instruem o feito, senão vejamos:
A testemunha/vítima, Cristiano Meneguini De Oliveira, disse que ao retornar do trabalho e entrar na sua residência percebeu que o portão estava "estourado". A residência estava revirada, e vários objetos foram subtraídos. Com a ajuda da câmera de segurança de um vizinho identificou o automóvel utilizado na prática delitiva, um Fox preto, e a placa. Acredita que foram 3 indivíduos. Alegou que além do portão, a porta da cozinha também foi arrombada somando um prejuízo superior a R$9.500,00, em torno de R$15.000,00.
Soube da ocorrência de outra prática delitiva ocorrida no Bairro São José, foi detido o mesmo veículo utilizado no furto de sua residência. Chamado ao Distrito Policial, uma semana após o fato, não reconheceu os objetos achados no veículo como seus.
A testemunha Rogério José Mello, investigador, informou que, por meio de uma busca no sistema em relação a placa do veículo utilizado na prática do furto, foi possível localizar mais dois Boletins de Ocorrência, assim como o nome dos denunciados abordados. Assim, logrou qualificá-los.
Os réus foram vinculados ao furto pois eles ocupavam o veículo, então utilizado na prática delitiva. Dos boletins de ocorrência constam que as pessoas que estavam dentro do veículo Fox preto eram os réus KARLOS e DEIVID. Os mesmos boletins de ocorrência informam que KARLOS e DEIVID foram abordados por policiais militares, mas não constam as versões dadas por eles.
Rita de Cássia Zaparoli, também investigadora, afirma que entrou posteriormente na investigação. Viu o vídeo e uma das imagens da câmera de segurança analisadas aparentemente é o réu DEIVID.
Apesar de não terem sido localizadas as imagens referidas, tanto a vítima, quanto os investigadores assistiram ao vídeo.
Verifica-se que há contradições nos interrogatórios dos réus, pois, KARLOS afirma que, no dia da abordagem dos policiais, pegou o veículo de um desconhecido e foi passear com DEIVID. Enquanto este confirma que estava com KARLOS no dia da abordagem policial, que o veículo é de sua propriedade, masque KARLOS não participou do furto.
Não obstante, novamente foram abordados juntos, até indo presos, quando do furto ocorrido na cidade de Pradópolis, o que serve para mostrar que são parceiros constantes e inseparáveis no cometimento de delito revestido de altíssima gravidade.
Não se perca de vista que KARLOS foi abordado em 25/04/2021 conduzindo o veículo usado para a prática do furto.
Também restou demonstrado que o veículo FOX de cor preta, placa DTS- 907, foi usado para a prática de diversos crimes patrimoniais.
De outra banda, compreensível que o amigo DEIVID queira salvaguardar KARLOS e dizer que ele não participou do furto a ambos
atribuído;para DEIVID, difícil negar a autoria da prática delitiva, pois havia sido reconhecido nas imagens, além do fato de o veículo ser de sua propriedade. Então, por que não tentar livrar o colega??!!!(...
) Nesse ponto, verificamos que, por ocasião da outra abordagem (em Pradópolis), os acusados não estavam com nenhum objeto pertencente à presente vítima, mas essa circunstância não exime KARLOS de ser o parceiro de DEIVID na prática delituosa, pois já havia se passado, pelo menos uma semana da subtração e, por certo, tais bens não seriam encontrados em poder de ambos na ocasião em que foram abordados. E, como é sabido, neste tipo de delito, os furtadores se livram rapidamente dos objetos subtraídos; aliás, nada incomum praticarem a subtração de objetos já encomendados pelos receptadores.
In casu, além do fato de já ter se passado uma semana, a dupla já havia trocado de veículo. Assim, ainda que não tivessem dado fim aos objetos pertencentes à presente vítima, não os manteriam dentro de outro veículo, também usado para a prática de outro furto.(...) E a investigadora Rita, em análise às imagens, detectou a presença de dois a três os envolvidos, mas, em razão da baixa qualidade das imagens, apenas conseguiu identificar DEIVID. Portanto, não restou cabalmente certo que seriam três os indivíduos, por isso a denúncia não fez menção ao FLÁVIO, flagrado em Pradópolis.
Quanto à afirmação de DEIVID de que eram mais 02 companheiros, recusou-se a identificá-los, não fornecendo qualquer outro detalhe.
Ademais, do que restou apurado, os denunciados mantinham vínculo de amizade que não se resumia em associarem-se para as práticas delituosas. Não havendo nenhum indício de que FLÁVIO havia participado do furto, ora analisado". (fls. 202/207).
Portanto, era mesmo o caso de condenação de ambos os acusados pela prática do furto em comento." (fls. 266/271)
Extrai-se dos trechos acima que não obstante a falta de elementos probatórios que efetivamente vinculassem Karlos à prática delitiva de que aqui se cuida, o Tribunal de Justiça reformou a sentença absolutória com base em suposições, sem conferir a garantia exigida pelo processo penal para se formar a convicção segura a ponto de fustigar a presunção de inocência.
Não se trata do revolvimento de provas, mas de conferir maior valor e credibilidade à análise do juízo primevo, que está mais próximo dos fatos e do conjunto probatório dos autos, e entendeu pela escassez de provas de que Karlos participou do delito de furto desta Ação Penal. No sentido:
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. SILÊNCIO DO ACUSADO NA ETAPA INVESTIGATIVA SEGUIDO DE NEGATIVA DE COMISSÃO DO DELITO EM JUÍZO.VIOLAÇÃO DIRETA DO ART. 186 DO CPP. RACIOCÍNIO PROBATÓRIO ENVIESADO.
EQUIVOCADA FACILITAÇÃO PROBATÓRIA PARA A ACUSAÇÃO A PARTIR DE INJUSTIFICADA SOBREVALORAÇÃO DO TESTEMUNHO DOS POLICIAIS. MÚLTIPLAS INJUSTIÇAS EPISTÊMICAS CONTRA O RÉU. INSATISFAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO PRÓPRIO DO PROCESSO PENAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O direito ao silêncio, enumerado na Constituição Federal como direito de permanecer calado, é sucedâneo lógico do princípio nemo tenetur se detegere. Neste sentido, é equivocado qualquer entendimento de que se conclua que seu exercício possa acarretar alguma punição ao acusado. A pessoa não pode ser punida por realizar um comportamento a que tem direito. Esse reprovável subterfúgio processual foi enfrentado no julgamento do HC n. 330559/SC, em 2018.
Consta, na ementa daquela decisão, apontamento que também serve para o caso ora em apreço: "3. Na verdade, qualquer pessoa ao confrontar-se com o Estado em sua atividade persecutória, deve ter a proteção jurídica contra eventual tentativa de induzir-lhe à produção de prova favorável ao interesse punitivo estatal, especialmente se do silêncio puder decorrer responsabilização penal do próprio depoente". (HC n. 330559/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6a T, DJE 9/10/2018) 2. Quem quer que se veja envolvido em um procedimento investigativo da justiça criminal tem o direito de se manter em silêncio e não colaborar. O fato de que a CRFB de 1988 tenha disposto, em seu art. 5o, inc. LXIII, que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o e permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado" não deixa dúvidas quanto à não recepção do art. 198 do CPP, quando diz que o silêncio do acusado, ainda que não importe em confissão, poderá se constituir elemento para a formação do convencimento do juiz. Ora, quando a Constituição reconhece o direito ao silêncio, restam excluídas de nosso ordenamento regras que autorizem situações em que o exercício de um direito gere prejuízos ao cidadão. Ter direito ao silêncio significa poder exercê-lo sem que, por isso, seja punido. E tanto ficar em silêncio constitui um direito, que pesa sobre o Estado a obrigação de explicá-lo a toda e qualquer pessoa, no exato momento de sua prisão.
3. Ademais, a dimensão da presunção de inocência (enquanto regra de julgamento) determina que, a menos que a acusação satisfaça o ônus de provar que pesa sobre ela, o cidadão tem o direito de ser tratado como inocente. Ele não pode ser prejudicado quando o Estado deixa de satisfazer a condição que ele, Estado, deve cumprir para que esteja legitimado a exercer o poder de punir. Nas palavras de Maria Elizabeth Queijo: "A recusa do acusado em colaborar na persecução penal não poderá ser interpretada desfavoravelmente a ele, em face do princípio da presunção de inocência" (QUEIJO, Maria Elizabeth. "O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal". São Paulo: Saraiva, 2012, p. 102) 4. No caso dos autos, a absolvição em 1a instância do recorrente foi revista pelo tribunal que, acolhendo a apelação interposta pela acusação, condenou o réu pela prática do delito incurso no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06. Na linha argumentativa desenvolvida pelo TJSP, a negativa do réu em juízo quanto à comissão do delito seria estratégia para evitar a condenação. Estas as exatas palavras utilizadas no acórdão recorrido: "Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando entretanto, valeu-se do direito constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação". Houve, portanto, violação direta ao art. 186 do CPP.
5. O raciocínio enviesado que concedeu inequívoco valor de verdade à palavra dos policiais e que interpretou a negativa do acusado em juízo como mentira, teve o silêncio do réu em sede policial como ponto de partida. A instância de segundo grau erroneamente preencheu o silêncio do réu com palavras que ele pode nunca ter pronunciado, já que, do ponto de vista processual-probatório, tem-se apenas o que os policiais afirmaram haver escutado, em modo informal, ainda no local do fato.
6. Decidiu o Tribunal estadual, então, que, se de um lado havia razões para crer que o réu mentia em juízo, de outro, estavam os desembargadores julgadores autorizados a acreditar que os policiais é que traziam relatos correspondentes à realidade, ao afirmarem: 1) que avistaram o acusado descartando as drogas que foram encontradas no chão, 2) que a balança de precisão que estava no interior de um carro abandonado seria do acusado e, adicionalmente, 3) que ainda na cena do crime, o recorrente haveria confessado informalmente que, sim, traficava. Essa narrativa toma como verídica uma situação em que o investigado ofereceu àqueles policiais, desembaraçadamente, a verdade dos fatos, em retribuição à empatia com que fora tratado por eles; como se houvesse confidenciado um segredo a novos amigos, e não confessado a prática de um delito a agentes da lei. Com a devida vênia, esta sim é uma hipótese implausível. Se é que de fato o acusado confirmou para os policiais que traficava por passar por dificuldades financeiras, é ingenuidade supor que o tenha feito em cenário totalmente livre da mais mínima injusta pressão.
7. Para o que importa à análise do presente caso, são oportunas as reflexões relativas às chamadas injustiças epistêmicas. Conforme nos ensinam os seus estudiosos, sociedades marcadas por preconceitos identitários - como, aliás, é o caso da sociedade brasileira - acabam por apresentar trocas comunicativas injustas. Por vezes, a pessoa deixa de ser considerada enquanto sujeito capaz de conhecer o mundo adequadamente pelo simples fato de ser quem é. Sobre essas situações, Miranda Fricker explica que se comete uma injustiça epistêmica testemunhal quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que não de forma consciente e deliberada, algum (s) preconceito (s) identitário (s) (FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007). Negros em sociedades racistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em sociedades machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas são alguns exemplos de vítimas sistemáticas de injustiça epistêmica testemunhal. Indivíduos provenientes de grupos sociais vulnerabilizados têm de enfrentar o peso dessa realidade opressora nos mais diversos contextos, inclusive no contexto da justiça criminal.
8. Nessa perspectiva, e ante a circunstância de que o recorrente é pardo, cabe a lembrança do pensamento de Sueli Carneiro, acerca do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira: "No caso do negro, a cor opera como metáfora de um crime de origem da qual a cor é uma espécie de prova, marca ou sinal que justifica a presunção de culpa. Para Foucault, 'ninguém é suspeito impunemente', ou seja, a culpa presumida pelo a priori cromático desdobra-se em punição a priori, preventiva e educativa. A suspeição transforma a cena social para os negros em uma espécie de panóptico virtual, 'a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é, não do que se faz, mas do que se pode fazer'. Assim, a própria cena social é onde se realiza a vigilância e a punição como tecnologias de controle social". (CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 125) 9. Ademais, analisando o fenômeno das falsas confissões, autores como Jennifer Lackey sinalizam que o sistema de justiça acaba praticando múltiplas injustiças epistêmicas contra um mesmo sujeito:
ao confessar (ainda que sob tortura, maus tratos, ameaça, pressão psicológica etc.), o investigado/acusado tem rapidamente reconhecida a sua credibilidade; quando, ao contrário, busca se retratar, já não é considerado merecedor do mais mínimo grau de credibilidade.
Trata-se de um paradoxo: acreditam que o relato do sujeito corresponde a uma correta reconstrução dos fatos precisamente quando ele tem menos preservada a sua autonomia cognitiva; de outro lado, quando mais pode trazer declarações confiáveis, porquanto emitidas sem injustas pressões externas, aí é que não se observa mínima disposição para acreditar em suas palavras. Essa falaciosa economia de credibilidades que o sistema de justiça oferece a um único e mesmo sujeito em distintos momentos constitui claro exemplo do que Lackey nomeou de injustiça epistêmica agencial (LACKEY, Jennifer.
False confessions and testimonial injustice. In Journal of Criminal Law & Criminology, v. 110, p. 43-68, p. 60, 2020).
10. Foi exatamente o que ocorreu no caso deste recurso especial. O tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja a injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao lhe conferir credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de direitos. A confissão informal - se é que existiu - não tem valor como prova, no sentido processual, configurando-se equivocada a postura de aceitar acriticamente que o investigado fala a verdade em cenário carente das mínimas condições para atuar livre e espontaneamente.
11. Neste sentido, é preciso reconhecer que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, impõe-se a exigência de respaldo probatório que vá além do silêncio do investigado ou réu. O silêncio não descredibiliza o imputado e não autoriza que magistrados concedam automática presunção de veracidade às versões sustentadas por policiais. Seguindo este raciocínio, de que é necessário corroborar a isolada palavra do policial, impõe asserir que, tivessem os policiais gravado toda a abordagem - do início ao fim -, ao menos seria possível saber como a confissão se deu. A medida viabilizaria que o conteúdo objeto de registro pudesse vir a servir de elemento informativo, sendo mais do que oportuno repisar que não seria suficiente de per si para a condenação. Como não o fizeram e, ante a manifesta escassez probatória que - em violação ao art. 186 do CPP - se extraiu do silêncio do acusado inferências que a lei não autoriza extrair, impõe-se reconhecer que o standard probatório próprio do processo penal, para a condenação, não foi superado no presente caso. Enfim, tal como o tema do reconhecimento de pessoas pediu-nos reflexão acerca dos erros que o Judiciário cometeu no passado, o tema do silêncio também requer nossa atenta autocrítica.
12. Tendo isso em consideração, o interesse institucional na otimização dos testemunhos de policiais deveria servir de sério estímulo a que se retomasse o tema discutido no julgamento do HC n. 598.051/SP e se investisse na documentação, em vídeo e áudio, dos atos de investigação ou de abordagem policial, tal qual se passou a demandar em relação ao ingresso domiciliar, de sorte a tornar mais robusta, confiável e infensa a questionamentos éticos ou epistemológicos a prova produzida longe do contraditório judicial.
13. A escassez probatória do presente caso impõe provimento desse recurso especial, para absolver o recorrente da prática do crime descrito no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06.
(REsp n. 2.037.491/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 20/6/2023.)
Assim, merece ser restabelecida a r. sentença absolutória de Karlos.
Do mesmo modo, quanto à violação ao art. 59 do CP, no que toca à personalidade de Deivid, o recurso também prospera, pois esta Corte já firmou em Recurso Especial Repetitivo que "Condenações criminais transitadas em julgado, não consideradas para caracterizar a reincidência, somente podem ser valoradas, na primeira fase da dosimetria, a título de antecedentes criminais, não se admitindo sua utilização para desabonar a personalidade ou a conduta social do agente (REsp n. 1.794.854/DF, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 23/6/2021, DJe de 1/7/2021).
Também na segunda fase, de fato, não há argumento concreto para a aplicação de 1/8 a titulo de atenuantes e, consoante entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, a aplicação de fração superior a 1/6, pelo reconhecimento das agravantes e das atenuantes, exige motivação concreta e idônea (AgRg no HC n. 850.903/RJ, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 22/5/2024).
Passo ao refazimento da pena de Deivid.
Fica mantida a pena-base do sentenciante, em 02 anos e 08 meses de reclusão e 14 dias-multa.
Na segunda fase, considerando a existência de duas atenuantes, a pena fica estipulada no mínimo legal - 2 anos de reclusão e 10 dias-multa, tendo em vista a Súmula n. 231/STJ.
Na terceira fase, ausentes causas modificativas, torno a reprimenda definitiva em 02 anos de reclusão e 10 dias-multa.
Por outro lado, mantenho o regime inicial semiaberto, considerando a existência de duas circunstâncias judiciais negativas, tal como entende esta Corte. No sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME LICITATÓRIO. ART. 90 DA LEI N. 8.666/1993. APONTADA VIOLAÇÃO AO ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - CPP. INÉPCIA DA DENÚNCIA NÃO CONFIGURADA. QUESTÃO SUPERADA. ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. PERDÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E N. 356, AMBAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL -STF. REDUÇÃO DA PENA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO.
MATERIALIDADE E AUTORIA. DOLO DEMONSTRADO. ÓBICE DA SÚMULA N. 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ. CONTINUIDADE DELITIVA. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA N. 7/STJ. REGIME MAIS GRAVOSO E VEDAÇÃO À SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA POR RESTRITIVAS DE DIREITOS.
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS NEGATIVAS. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A denúncia ofertada pelo Parquet local faz a devida qualificação dos acusados, descreve de forma objetiva e suficiente as condutas delituosas por eles perpetradas assim como as circunstâncias dos cometimentos, demostrando indícios suficientes de autoria, prova da materialidade e a existência de nexo causal, permitindo com segurança o exercício da ampla defesa, não havendo falar em ofensa ao art. 41 do CPP.
2. Ainda,"a jurisprudência desta Corte tem orientado no sentido de que o advento de sentença condenatória acaba por fulminar a tese de inépcia, pois o provimento da pretensão punitiva estatal denota a aptidão da inicial acusatória para inaugurar a ação penal, implementando-se a ampla defesa e o contraditório durante a instrução processual, que culmina na condenação lastreada no arcabouço probatório dos autos (RHC n. 57.206/SP, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 1º/8/2017)"(AgRg no AREsp n. 2.079.595/MG, relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 11/10/2022, DJe de 14/10/2022).
3. A questão referente ao perdão judicial não foi examinada pela Corte originária, sendo incidentes os óbices das Súmulas n. 282 e n. 356 ambas do STF.
4. Quanto à redução da pena, incide a Súmula n. 7 do STJ, pois tendo a sentença fixado a redução em 1/6, considerando o grau de envolvimento de cada um no crime, rever tal premissa demandaria o reexame das circunstâncias fáticas, o que é vedado em recurso especial.
5. As instâncias ordinárias apontaram a existência do elemento subjetivo do tipo penal descrito no art. 90 da Lei n. 8.666/1990.
Rever o entendimento firmado pela Corte de origem e concluir pela ausência da demonstração do dolo, com a absolvição, ante a atipicidade dos fatos, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência vedada pela Súmula n. 7 do STJ.
6. A Corte de origem entendeu que o fato de o agente responder a vários processos por delitos semelhantes, nos quais foram empregados mesmo modus operandi, não implica no reconhecimento da continuidade delitiva, a ensejar a litispendência ou conexão, pois tratam-se de fatos distintos, com diversidade de procedimentos licitatórios, objetos, contratações e participantes. Nesse contexto, aplicável a Súmula n. 7 do STJ, uma vez que entender de forma diversa, acolhendo a tese defensiva, importaria no reexame de provas, o que não se viabiliza em recurso especial.
7. O TJ entendeu pela manutenção do regime inicial mais gravoso, no caso, o semiaberto, bem como pela insuficiência da conversão da pena privativa de liberdade em sanções restritivas de direitos para a repressão do crime, com lastro na existência de circunstâncias judiciais negativas reconhecidas de forma fundamentada em desfavor do recorrente, as quais são aptas para conferir maior censura ao delito e para afastar as benesses pretendida.
8. Inviável o recurso especial pela alínea c do permissivo constitucional, pois não foi realizado o cotejo analítico, nos termos dos arts. 1.029, § 1º, do Código de Processo Civil/2015 - NCPC e 255, § 1º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça - RISTJ.
9. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp n. 2.027.804/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 22/4/2024, DJe de 24/4/2024.)
Ante o exposto, conheço do recurso especial e, com fundamento na Súmula n. 568 do STJ, dou-lhe parcial provimento para absolver CCCCCCC imputação desta Ação Penal, com fulcro no art. 386, VII, do CPP e reduzir a pena de DEIVID LCCCCCCCCCC para 02 anos de reclusão e 10 dias-multa, no regime semiaberto.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 09 de julho de 2024.
JOEL ILAN PACIORNIK
Relator
(STJ - REsp: 2090579, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 30/07/2024)
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