STJ Jul24 - Homicídio - Absolvição Sumária Pela Excludente de Ilicitude da Legítima Defesa :"Animosidade entre Vítima e Réu - Defendeu Após Agressões"
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
Inteiro Teor
RECURSO ESPECIAL Nº 2093963 - BA (2023/0307239-1)
DECISÃO
Considerando o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples (CNJ/Recomendação nº 144/2023 e CNJ/Resolução nº 376/2021), adoto o relatório de fls. 489 (e-STJ):
"Embora o feito esteja autuado como recurso especial, na realidade trata-se de agravoem recurso especial interposto por Manoel Jose dos Santos contra decisão proferida pelo 2º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que inadmitiu o recurso especial.
O Ministério Público do Estado da Bahia ofereceu denúncia contra o agravanteimputando-lhe a prática do crime de homicídio qualificado pelo motivo fútil, meio cruel e com empregode recurso que impossibilitou de defesa da vítima torpe (artigo 121, § 2º, incisos II, III e IV, do CódigoPenal). A denúncia relata que no dia 20/09/2014, por volta das 18h00, em frente ao Bar de Dona Damiana, na Zona Rural de Caranquejo, Zona Rural do Município de Presidente Tancredo Neves/BA, o agravante, utilizando-se de um canivete, desferiu diversos golpes contra a vítima Paulo da Conceição Santos, provocando-lhe lesões que foram a causa da sua morte. Consta que o agravante e a vítima tinhamdesavenças motivadas por ciúmes que este nutria da sua companheira, a qual após o fim do relacionamentocom o réu, passara a conviver com a vítima. No dia do fato, o agravante teria adentrado no Bar de DonaDamiana e saiu em seguida, encontrando a vítima na porta do estabelecimento. Foi iniciada uma discussãoentre os dois, momento em que o agravante, munido de um canivete, desferiu diversos golpes contra avítima, atingindo a região lombar esquerda, omoplata e ombro direito, pescoço e cabeça.
O agravante foi absolvido sumariamente por exclusão da ilicitude, em decorrênciade legítima defesa. (e-STJ Fls. 187/195) O Ministério Público interpôs recurso de apelação, que foi provido pelo Tribunal deorigem para desconstituir a sentença absolutória e determinar ao juízo de primeiro grau oprosseguimento do feito. (e-STJ Fls. 349/376) A defesa interpôs recurso especial (e-STJ Fls. 430/439) a defesa alega violação aosartigos 23, inciso II, e 25, ambos do CP; e ao artigo 415, inciso IV, do CPP. Aduz que todos oselementos de prova produzidos durante a instrução processual indicam que o recorrente agiu emlegítima defesa para proteger sua integridade física. O recurso especial não foi admitido na origem por incidência do óbice previsto nasSúmulas 7 e 83 do STJ. (e-STJ Fls. 450/453) O recorrente interpôs agravo em recurso especial (e-STJ fls. 462/467), alegando nãoincidir no caso o óbice da Sùmula 7/STJ, pois afirma que alteração do acórdão não demanda reexame deprovas, mas a correta adequação dos fatos reconehcidos no acórdão à norma jurídica.
Afirma, ainda, não haver no STJ jurisprudência consolidada sobre a controvérsia dos autos a justificar a incidência daSúmula 83/STJ."
Parecer do Ministério Público Federal pelo não conhecimento do recurso especial.
Decido.
O agravo em recurso especial é tempestivo e preenche os demais requisitos de admissibilidade. Além disso, o óbice aplicado foi devidamente rebatido, razão pela qual o agravo regimental deve ser conhecido.
Passo ao exame do recurso especial.
O juízo de primeiro grau entendeu, corretamente, pela absolvição sumária do acusado, senão vejamos trecho da sentença:
"Analisando os elementos de prova até o presente momento reunidos, percebe-se que o réu agiu em legítima defesa, ou seja, há informações de duastestemunhas presenciais nos autos, sendo que todas foram uníssonas, no sentidode que a vítima (Paulo), após intensa provocação, iniciou as agressões por ciúmesdo acusado, partindo para cima do mesmo e iniciando uma luta corporal.
Ora, as testemunhas dão conta de que a vítima tinha uma personalidade agressiva, além de que há algum tempo ameaçava o réu, sempre se dirigindo ao mesmo com palavras de baixo calão. Tais ameaças e xingamentos, conforme relatado pelas testemunhas, aconteciam de maneira constante, inclusive em público. Vejamos.
A testemunha Ademir Reis Paixão, ouvida por meio de recursoaudiovisual em fls. 138, disse que:(...) que não sabe dizer se eles tinham problemas;que Paulinho sempre que tomava uma gostava de umas conversinhas lá; que falava que iria bater em PENCA, queiria cercar e dar tapa em PENCA; que depois de um certo tempo que PENCA separou da mulher, PAULINHO se envolveu com essa tal mulher; que não sabe se quando a mulher estava com PAULINHO estava com PENCA também; que não sabe informar se antes desse eventos os envolvidos já tinham brigado; que mora próximoao local; (...) que ouviu alguém chamar; que quando abriu a porta viu um rapaz correndo, que foi o que estava furado; que foi até o local e ele (vítima) já estava caído;que chamou pelo nome da vítima, mas ele não respondeu; que depois chegou muita gente junto; que ligou para o SAMU, chamou e não atendeu; que quem prestou socorro foi a viatura da policia e o SAMU; que PAULINHO morreu no local; que PAULINHO morreu de facada;
que ouviu dizer que o responsável pelos golpes foi PENCA; que PENCA não ficou no local; que PENCA não esperou a policia; que no local tinha muito sangue; (...) que as marcas de sangue eram do Bar até onde ele caiu;que Paulinho namorava com a mulher de PENCA;que não sabe se PENCA eraapaixonado pela ex mulher; que PENCA construiu uma casa; que PENCA saiu e PAULINHO se apossou da casa com a ex mulher;
que não sabe dizer sobre boatos de traição; que PAULINHO sempre provocava PENCA; que tomava umas duas e encontrava PENCA e começava a falar, que iria bater; que não ameaçava demorte; que PAULINHO xingava PENCA de corno; (...) que PAULINHO quandobebia provocava PENCA até na presença de outras pessoas; que PAULINHO eramais forte;
que PENCA era do mesmo corpo dele; que não viu eles brigando, pois foi muito rápido; que PAULINHO chamava PENCA de corno; que PENCA ficava com vergonha; (...)
Uma das testemunhas presenciais, Dionei de Jesus dos Santos, ouvido por meio de recurso audiovisual às fls. 139, disse que:
(...) que no dia dos fatos estava no Bar de Damiana; que PAULINHO esteve lá;que PAULINHO entrou e saiu; que não viu se PAULINHO estava portando faca ou facão;que nesse dia também esteve lá PENCA; que começaram a discutir;que dessa discussão decorreu uma briga física;
que começaram a trocar socos;que após a briga PAULINHO ficou machucado de arma; que PAULINHO sangrava muito; que mesmo sangrando PAULINHO tentou sair; que não conseguiu chegar em casa, pois a poucos metros caiu;(...) que não viu marcas de sangue pois estava muito escuro; que já ouviu dizer que havia ciúmes entre os dois, devido ao fato da ex mulher de PENCA ser atual de PAULINHO; que tentaram ligar para o SAMU, mas quando chegaram já estava morto; que não viu nenhum objeto na mão de PENCA; que ninguém tentou apartar pois estavam todos jogando sinuca; que nuncaouviu falar se PENCA usava canivete ou faca; que não sabe dizer se PAULINHO provocava PENCA; que não sabe se PENCA estava triste pela perda da mulher; que sabia apenas que a ex mulher de PENCA casou com PAULINHO; que não sabe de traição; que o motivo da briga deve ter sido uma mulher;que houve uma briga física; que PAULINHO também foi para bater; que estavam parados e começaram a discutir; que PAULINHO foi para cima de PENCA; que PAULINHO era metido a valente;(...)
Já a outra testemunha presencial, Julival Cardoso dos Santos, ouvidopor meio de recurso audiovisual em fls. 140, trouxe mais detalhe a respeito dosfatos, dizendo que:
(...) que PAULINHO andava provocando PENCA; que as provocações eram em razão de ciúmes; que PAULINHO tinha ciúmes de Manoel, pois era atual da ex mulher de Paulinho; que estava no Bar de Damiana no momento da confusão;que quando PAULINHO chegou PENCA já estava; que PENCA estava sentado e PAULINHO chegou provocando PENCA; que PENCA ficou só ouvindo; que nãoouviu o que ele disse; (...) que PENCA saiu na frente e PAULINHO foi atrás; quequando viu PAULINHO já vinha furado;que ele tentou ir para outro lugar; que eleandou até a frente e caiu; que tentaram ligar para o SAMU e a Policia, mas quando o SAMU chegou ele já havia falecido; que os golpes foram desferidos por Manoel;que PAULINHO faleceu lá; que quando PAULINHO começou a namorar com a ex de PENCA eles já estavam separados; que PENCA estava normal; que era o falecido quem tinha ciúmes do réu; que PENCA não ficou no local para prestarsocorro; que não viu mais PENCA na região; que ouviu falar que Paulo foi atingido porquatro golpes;
que na hora da confusão só estavam os dois; que PAULINHO nãoportava nada nas mãos;(...) que PAULINHO provocava PENCA chamando o mesmo de corno; que PENCA sempre tentava se sair, mas ele continuavaprovocando; que xingava peste e outras palavras que não quer citar; que eram palavrões pesados; que sempre que via PENCA, PAULINHO fazia isso; que nãosabe informar a respeito de boatos de traição; que PAULINHO é quem foi paracima de PENCA; que PAULINHO era metido a valentão; que ameaçava PENCfalavam, mas a vida dele era procurar confusão comigo, pois não queria que desse a mesada aos meus filhos; que ele tentou me agredir; que a vida dele era me ameaçar;que no dia ele me deu uma gravata; que foi jogado no chão;
que ficou por baixo e elepor cima; que deu vários golpes, mas não sabe quantos foram; que rapaz eraagressivo; que era acostumado a colocar o pai na parede; que ele era meio atribuladodo Juízo (...)
que ele já tinha me ameaçado; que ele dizia que iria matar a mulher e depois iria voltar e me matar com três tiros na cabeça (...)
Percebe-se pelos depoimentos colhidos que o réu reagiu logo após a vítima ter iniciado as agressões físicas, não possuindo animus necandi, tendoapenas a intenção de cessar as agressões que vinha sofrendo, utilizando-se demeio necessário para repelir a injusta agressão.
Necessário a análise de todo o contexto fático em que se deram as agressões, ademais tudo se ocorreu em uma localidade de zona rural, havendo umaluta corporal iniciada pela vítima, sendo que esta já vinha ameaçando e agredindo o réu publicamente há algum tempo, além de constantemente lhe xingar com palavrasde baixo calão.
Ademais, a vítima estava bebendo no dia dos fatos, havendo relatosdas testemunhas no sentido de que quando bebia esta ficava muito agressiva, assimas testemunhas ouvidas dirigiram-se a vítima como" valentão ".
Restou comprovado ainda que o réu tentou evitar toda a contenda, uma vez que a vítima foi quem iniciou as agressões.
O depoimento do réu e das demais testemunhas presenciais sãofirmes, todas no mesmo sentido. Não há contradições ou dúvidas capazes e suficientes para levar tal questão ao Tribunal do Júri.
A versão apresentada por todos os presentes, demonstra ainda que a suposta vítima, além de iniciar as agressões, começou a provocar o réu, sendo queesse fato já havia ocorrido em diversas outras oportunidades.
Nesse contexto, há perfeito enquadramento em situação de legítimadefesa, pois a prova oral relata que a vítima atacou o réu, havendo um histórico deameaças e agressões verbais anunciando tal conduta, tendo o réu até tentado evitara situação, porém chegou em um momento em que não poderia ficar sem nadafazer, tendo que agir para salvar sua própria vida.
Todas as testemunhas afirmaram que a vítima iniciou a agressãoinjusta contra o réu, bem como que a vítima ameaçava constantemente o réu, porciúmes; que era truculento e agressivo.
O Ministério Público não apresentou provas capazes de refutar a tesede legítima defesa suscitada pelo réu, nem mesmo destacou qualquer pontorelevante em alegações finais, que, inclusive, não foram apresentadas, conformesalientado pela Defesa.
Como dito, não havendo outra versão na prova colhida em juízo, imperioso, portanto, reconhecer-se a excludente de ilicitude do art. 25 do CódigoPenal, pois demonstrada sua ocorrência nos autos. A legislação, em seu CódigoPenal, preceitua que:
(...)
A vítima praticou injusta agressão diversas vezes contra o réu. A agressão era atual e o réu, já amedrontado com as ameaças que vinha sofrendo e transtornado pelas diversas humilhações públicas as quais vinha sendo submetidopela vítima, utilizou de meios moderados e acessível para repelir a agressão, umavez que o único objeto disponível era um canivete o qual portava, sendo deflagradovários golpes em um contexto de luta corporal, que, infelizmente, levou a vítima a óbito.
O réu não estava munido de arma de fogo ou outra arma de grandepotencial lesivo, com o intuito de matar a vítima. O réu portava um mero canivete e afirmou que o detinha naquele momento de forma eventual, sem intenção específicade matar a vítima. Ademais, o crime foi praticado em zona rural, local que as pessoas costumam portar canivete, facão, biscol, entre outros.
Reitera-se que as provas produzidas demonstram que a vítima iniciou, mais uma vez, a agressão injusta contra o réu.
Assim, pelo conceito estabelecido pelo Código Penal com os elementos de provas coligidas durante a instrução processual, tem-se atuaçãoamparada pela excludente de ilicitude, com o preenchimento dos seus requisitoslegais. (grifos acrescidos)
A Primeira Câmara do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia reformou a decisão de absolvição sumária do recorrente, sob o seguinte fundamento:
"Embora, em determinadas hipóteses, essas circunstâncias caracterizadoras da exclusão de ilicitude possam estar manifestamente evidenciadas, autorizando, com isso, de logo, a absolvição sumária pelo juízo togado (art. 415 do CPP), certo é que, no caso dos autos, a inconsistência da versão apresentada pelo Réu e pelo cotejo do depoimento das testemunhas presenciais, em torno de algumas questões fáticas não permitem que se possa considerar demonstrada, de forma cabal, em juízo monocrático, a presença da alegada situação descriminalizadora, tarefa que deverá, por isso mesmo, ficar reservada ao escrutínio soberano do Tribunal Popular.
Com efeito, não só em face da prova testemunhal, que não se apresenta consistente no sentido de aclarar se o Réu teria agido em legítima defesa, dúvidas ainda subsistem em torno da dinâmica dos fatos, especialmente se teria usado moderadamente dos meios necessários para repelir a injusta agressão, mormente quando se compara com o resultado do Laudo Pericial do corpo da vítima e do local do crime, acrescido do fato da vítima encontrar-se desarmada, tudo isso demonstra o desacerto com que laborou o MM Juiz singular quando houve por bem acolher, monocraticamente, o pleito de absolvição sumária por excludente de ilicitude, impossibilitando que o mérito da causa fosse apreciado pelo seu Juiz Natural, o Tribunal do Júri. (...)"(disponível no portal e-SAJ de 2º grau)."
Cumpre ressaltar que a discussão trazida nesta decisão não tem o condão de controverter os fatos postos nos autos, pelo contrário, busca-se somente revaloração do que consta delineado na sentença e no acórdão impugnado.
Compulsando as decisões citadas, ficou evidente que havia uma animosidade notória entre a vítima e o Recorrente, de modo que não restou outra alternativa ao réu senão se utilizar da violência para proteger a sua própria integridade, loga após sofrer agressão física iniciada pela vítima.
Nesse sentido, o Recorrente foi firme em seu depoimento ao afirmar que suas ações foram apenas para se defender, amparado por cabal excludente de ilicitude, apresentando relato que se mostra em consonância com os demais elementos dos autos, sobretudo com os depoimentos das demais testemunhas.
No caso em espeque, o acórdão não traz nenhum argumento baseado em provas que afasta a referida excludente excludente de ilicitude do art. 23 do CP, qual seja, a legítima defesa.
Assim, que, no presente caso, é patente a presença da excludente de ilicitude da legítima defesa, devendo o acórdão recorrido ser reformado.
Ante o exposto, conheço do agravo e e dou provimento ao recurso especial, para para restabelecer a sentença absolutória de primeiro grau Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 18 de julho de 2024.
Ministra Daniela Teixeira Relatora
(STJ - REsp: 2093963, Relator: Ministra DANIELA TEIXEIRA, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 23/07/2024)
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