STJ 2024 - Absolvição - Dano Ao Patrimônio (art.163 CP) - Ausência de Animus Nocendi
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
HABEAS CORPUS Nº 884611 - RS (2024/0004982-6)
DECISÃO
XXXXXXXX alega sofrer coação ilegal em decorrência de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Apelação Criminal n. 5013960-46.2018.8.21.0001).
Consta nos autos que o paciente foi denunciado pela prática do crime previsto no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal.
A defesa afirma que "o Tribunal Local ignora a necessidade de dolo específico para a ocorrência do tipo penal, elemento que é inegociável nos termos da jurisprudência desse Superior Tribunal de Justiça" (fl. 5).
Pleiteia o restabelecimento da sentença absolutória para que seja reconhecida a atipicidade da conduta por ausência de demonstração do dolo específico exigível para a espécie (animus nocendi).
O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento da impetração e, caso conhecida, pela denegação da ordem (fls. 381-384).
Decido.
O Juízo de primeiro grau absolveu sumariamente o réu nos seguintes termos (fls. 12-14,
grifei):JXXXXXXXXX brasileiro, natural de Porto Alegre, RS, nascido em 12 de novembro de 1981, com 36 anos na data do fato, filho de Luiz Danilo Coelho Martins e Fátima Gicelda Pedroso Martins, residente na Rua Fadlo Raidar, n 66, apartamento 41, São Paulo, SP, foi denunciado pelo Ministério Público como incurso nas sanções do artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, pela prática do seguinte FATO DELITUOSO:
"No dia 23 de novembro de 2017, por volta das 20h00min, na Rua Gonçalves Dias, nº 281, Bairro Menino Deus, nessa Capital, o denunciado deteriorou, mediante extravio, coisa alheia móvel, qual seja, uma tornozeleira eletrônica, dispositivo nº 30594, resultando em prejuízo ao Estado do Rio Grande do Sul.
Na oportunidade, o denunciado, buscando figurar na condição de foragido do sistema prisional, violou a sua zona de inclusão/casa durante o período em que se encontrava sob monitoramento do Estado.
O equipamento não foi recuperado, extraviando-se.
A tornozeleira foi avaliada em R$520,00 (quinhentos e vinte reais) conforme auto de constatação indireto de dano qualificado (fl. 10)".
A denúncia foi recebida em 12/02/2019 (fl. 22).
Embora o réu não tenha sido pessoalmente citado, teve ciência da acusação através do defensor que constituiu e apresentou resposta à acusação (fls. 39/43), juntando documentos (fls. 36/38 e 44/58), pedindo a improcedência da denúncia com a sua absolvição sumária por entender ser atípica a conduta diante da ausência de dolo.
É o breve relatório. Passo a decisão.
A Divisão de Monitoramento Eletrônico, por meio de ofício, comunicou à autoridade policial que o acusado, após foragir do monitoramento eletrônico, teria extraviado o dispositivo (fl. 05).
Pois bem. Ainda que seja evidente o extravio da tornozeleira, conforme constatado pelo auto de constatação indireto de dano qualificado de fl. 10, não há prova cabal de que tenha o réu ocasionado intencionalmente o prejuízo ao bem, com o objetivo de lesar o patrimônio público. Ocorre que o dolo de causar prejuízo ao proprietário do bem atingido (animus nocendi, para além da simples deterioração do objeto, faz-se indispensável à configuração do delito pelo qual José foi denunciado (artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal), haja vista que é preciso discriminar se a intenção era efetivamente causar prejuízo ao erário ou escapar da fiscalização do monitoramento.
Nessa senda, segue jurisprudência:
[...]
Assim sendo, não havendo como presumir o dolo de agir, deslocar-se-ia o exame das condições táticas para eventual ineficiência, por parte de José, na guarda do aparelho - seja por negligência ou imprudência - o que se encaminharia à subsunção do fato ao crime na sua modalidade culposa, inexistente na referida espécie delitiva.
Por essas razões, tenho pela inexistência de prova do agir doloso do denunciado e, na impossibilidade de ser a conduta por ele praticada enquadrada na sua modalidade culposa, a dúvida o beneficia, razão pela qual, com fundamento no princípio In dublo pro reo, a absolvição sumária é medida que se impõe, uma vez que referida dúvida não seria resolvida na instrução do feito, pois arrolada apenas a Agente Penitenciária que comunicou o extravio da tornozeleira, conforme boletim de ocorrência policial de fls. 03/04.
ISSO POSTO, ABSOLVO SUMARIAMENTE José Martins, forte no artigo 397, III, do Código de Processo Penal.
A Corte de origem, ao analisar a questão, consignou (fls. 25-26, destaquei):
Trata-se de recurso de apelação interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO no qual se insurge da sentença que absolveu sumariamente o réu JOSÉ PEDROSO MARTINS em razão da atipicidade da conduta narrada na exordial, com fundamento no artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal.
Postula o prosseguimento do feito ao argumento de que não há exigência de dolo específico à caracterização do delito de dano, não sendo alcançado pelas hipóteses previstas no artigo 397 do Código de Processo Penal.
Colhe êxito.
Conforme se extrai da decisão recorrida, o magistrado a quo entendeu inexistir conduta dolosa praticada pelo inculpado, motivo pelo qual o absolveu sumariamente.
Entretanto, a aplicação da hipótese de absolvição com fulcro no artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal, está restrita a casos em que se observe evidente atipicidade da conduta, não se justificando prematuro trancamento de ação penal quando há dúvida ou probabilidade acerca de constituir fato típico, ilícito e culpável, como ocorre em concreto.
A deterioração causada à tornozeleira eletrônica, extraviada, veio demonstrada pelo registro de ocorrência policial (3.1, fls. 10-12), ofício da Divisão de Monitoramento Eletrônico (3.1, fl. 13), declarações da funcionária do mencionado departamento (3.1, fl. 16) e auto de constatação de dano indireto (3.1, fl. 18), este avaliando o prejuízo em R$ 520,00, a indicar a autoria e materialidade delitivas do ilícito de dano ao patrimônio público, circunstância que, tudo indica, era de conhecimento do denunciado, o qual, à época da empreitada delitiva, encontrava-se em cumprimento de privativa de liberdade, incluído no sistema de monitoramento eletrônico (3.1, fl. 06).
Feitas estas considerações, inobstante haja divergência acerca do tema, o tipo do artigo 163 do Código Penal inexige animus nocendi materializado na vontade específica de causar prejuízo, esta inerente à própria ação criminosa perpetrada, pois o fato de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia implica na vontade de ocasionar lesão patrimonial, restando abrangida pelo dolo genérico, em atenção a jurisprudência desta Corte.
Necessário, portanto, o impulso à instrução do feito originário, conforme postulado pelo parquet, a decisão singular devendo ser desconstituída, motivo do provimento do apelo interposto pelo Ministério Público, este ratificado pelo ilustre Procurador de Justiça, Roberto Divino Rolim Neumann, cujo trecho de seu parecer transcrevo, passando a integrar o presente como razões de decidir, com o que evito desnecessária tautologia (15.1):
[...]
Ante o exposto, voto por dar provimento ao apelo ministerial ao efeito de desconstituir a sentença e determinar seja dado prosseguimento ao feito junto à Origem.
O STJ entende que, para a caracterização do crime previsto no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal, é necessária a demonstração do animus nocendi, ou seja, do especial fim de causar prejuízo ao dono do objeto.
Na hipótese dos autos, conforme bem exposto pelo Magistrado de primeiro grau, "não há prova cabal de que tenha o réu ocasionado intencionalmente o prejuízo ao bem, com o objetivo de lesar o patrimônio público" (fl. 13). Em casos semelhantes, esta Corte Superior entendeu pela atipicidade da conduta, por ausência de demonstração do animus nocendi. Portanto, a absolvição é medida cogente.
Ilustrativamente:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE DANO.
TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. NÃO COMPROVAÇÃO DO DOLO DE CAUSAR PREJUÍZO OU DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
AGRAVO IMPROVIDO.
1. Hipótese em que a decisão recorrida deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos. Segundo a jurisprudência dessa Corte superior, para a caracterização do crime de dano qualificado contra patrimônio da União, Estado ou Município, mister se faz a comprovação do elemento subjetivo do delito, qual seja, o animus nocendi, caracterizado pela vontade de causar prejuízo ou dano ao patrimônio público, o que não se verifica na espécie, em que o recorrente destruiu a tornozeleira eletrônica para fins de fuga.
2. Agravo improvido.
(AgRg no RHC n. 145.733/SP, Rel. Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), 6ª T., DJe 31/8/2021) AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. CRIME DE DANO QUALIFICADO. ART. 163, PARÁGRAFO ÚNICO, III, DO CP. DANO QUALIFICADO PRATICADO CONTRA PATRIMÔNIO PÚBLICO. DESTRUIÇÃO DE TORNOZELEIRA ELETRÔNICA PARA EVASÃO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ANIMUS NOCENDI.
AUSÊNCIA. PRECEDENTES.
1. Para a caracterização do crime tipificado no art. 163, parágrafo único, Ill, do Código Penal, é imprescindível o dolo específico de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia, ou seja, a vontade do agente deve ser voltada a causar prejuízo patrimonial ao dono da coisa, pois, deve haver o animus nocendi.
2. O agravo regimental não merece prosperar, porquanto as razões reunidas na insurgência são incapazes de infirmar o entendimento assentado na decisão agravada.
3. Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp n. 1.722.060/PE, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., DJe 13/8/2018) AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE DANO QUALIFICADO.
ART. 163, PARÁGRAFO ÚNICO, III, DO CÓDIGO PENAL - CP. DESTRUIÇÃO DE TORNOZELEIRA ELETRÔNICA PARA EVASÃO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO.
ANIMUS NOCENDI. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. A danificação de tornozeleira eletrônica para evasão não configura o delito do art. 163, parágrafo único, III, do CP, por ausência de animus nocendi. Precedentes.
2. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp n. 1.861.044/RS, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª T., DJe 4/5/2020)
Ante o exposto, concedo a ordem de habeas corpus para restabelecer a sentença que absolveu sumariamente o paciente.
Publique-se e intimem-se.
Brasília (DF), 23 de abril de 2024.
Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ
Relator
(STJ - HC: 884611, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: 25/04/2024)
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