STJ Dez24 - Estupro - Absolvição - Condenação Baseada Exclusivamente na Palavra da Vítima :"Vítima Prestou Depoimentos com Contradições"

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola

há 1 minuto

PENAL E PROCESO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA AOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA . NÃO CONHECIME NTO. SÚMULA 182/STJ. 2. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO . POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. 3. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO . ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.1. "A ausência de efetiva impugnação aos fundamentos da decisão que inadmitiu o recurso especial obsta o conhecimento do agravo, nos termos dos arts. 932, III, do CPC e 253, parágrafo único, I, do RISTJ e da Súmula 182 do STJ, aplicável por analogia" (AgRg no AREsp n . 1.962.587/SP, relator Ministro Olindo Menezes (desembargador Convocado do Trf 1ª Região), Sexta Turma, DJe de 6/5/2022).2 . Nada obstante, verifico que o caso apresenta particularidades que autorizam a concessão da ordem de ofício. De fato, tanto a absolvição quanto a posterior condenação se embasaram na palavra contraditória da vítima que, extrajudicialmente, imputou ao paciente a prática delitiva e, judicialmente, afirmou se tratar de relação consentida. Assim, embora prevaleça a relevância da palavra da vítima, a existência de duas versões, sem outras provas efetivas da prática do crime de estupro, impede a manutenção da condenação, devendo prevalecer o in dubio pro reo.3 . Agravo regimental a que se nega provimento. Ordem concedida de ofício para restabelecer a sentença absolutória.

(STJ - AgRg no AREsp: 2574658 PR 2024/0061106-7, Relator.: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 05/11/2024, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2024)

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NO VOTO:

VOTO-VISTA

Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu o recurso especial interposto por C G A DOS S , com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, assim ementado (e-STJ, fls. 576-588):

"APELAÇÃO CRIMINAL. DELITO CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO EXCLUSIVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO DE CONDENAÇÃO. ALEGADA SUFICIÊNCIA DE PROVAS. ACOLHIMENTO. MUDANÇA DA VERSÃO DADA INICIALMENTE PELA VÍTIMA, VOLTADA AO ARREFECIMENTO DA RESPONSABILIDADE PENAL DO ACUSADO. RETRATAÇÃO POSTERIOR QUE SE MOSTRA INSUFICIENTE A EMBASAR A ABSOLVIÇÃO DO RÉU. VERSÃO CORROBORADA POR OUTRAS PROVAS PRODUZIDAS NA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE PERMITE EXTRAIR, ESTREME DE DÚVIDA, A COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA DO CRIME. PALAVRA DA VÍTIMA REVESTIDA DE ESPECIAL RELEVÂNCIA PROBATÓRIA E CORROBORADA PELO LAUDO PERICIAL, RELATÓRIO MÉDICO, BEM COMO PELOS DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS E INFORMANTE ARROLADAS. ACUSADO QUE EMPURROU A OFENDIDA CONTRA O CHÃO E TAMPOU SUA. BOCA, IMPEDINDO-A DE CLAMAR POR SOCORRO. NEGATIVA DE AUTORIA E TESES DEFENSIVAS ISOLADAS E DIVORCIADAS DOS DEMAIS ELEMENTOS COGNITIVOS QUE INSTRUEM OS AUTOS. AUSÊNCIA DE DÚVIDA CAPAZ DE AFASTAR A CONVICÇÃO DO COLEGIADO. CONDENAÇÃO IMPOSITIVA. EXASPERAÇÃO DA PENA- BASE QUANTO ÀS VETORIAIS CULPABILIDADE E CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. PRÁTICA DELITIVA QUE OCORREU EM LOCAL ERMO, SEM OUSO DE PRESERVATIVO. CONDUTAS QUE EXTRAPOLAM O TIPO PENAL. APLICAÇÃO DA AGRAVANTE DO ARTIGO 61, INCISO II, ALÍNEA 'F', DO CÓDIGO PENAL. ATO CRIMINOSO INSERIDO NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. RÉU QUE SE PREVALECEU DAS ANTERIORES RELAÇÕES DOMÉSTICAS COM A VÍTIMA. REGIME FECHADO PARA O INICIAL CUMPRIMENTO DA REPRIMENDA. QUANTUM DE PENA ESTABELECIDO. PEDIDO DE FIXAÇÃO DE VALOR MÍNIMO A TÍTULO DE INDENIZAÇÃO À VÍTIMA. PROVIMENTO. EXISTÊNCIA DE PLEITO FORMAL E EXPRESSO DE ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO NA DENÚNCIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO".

Na origem, o Ministério Público denunciou o ora recorrente pela prática do crime de estupro (art. 213 do CP), por uma vez. Segundo a denúncia (e-STJ, fls. 69-75), o acusado teria constrangido sua ex-companheira à prática de conjunção carnal, no dia 29/4/2022, em contexto de violência doméstica e familiar. A imputação pautou-se sobretudo no relato extrajudicial da ofendida, que lavrou boletim de ocorrência no próprio dia 29/4/2022 narrando à polícia o suposto estupro.

Na audiência de instrução e julgamento, realizada em 9/5/2023 (e-STJ, fl. 236), a vítima modificou sua versão sobre os fatos, alegando que a relação sexual foi consentida e que incriminou o réu falsamente como resultado de uma tentativa frustrada de retomar seu relacionamento. Pautando-se nessa contradição entre os relatos e na ausência de informações, no laudo pericial, sobre eventual violência no momento da conjunção carnal, o juízo de origem absolveu o acusado, por falta de comprovação da materialidade delitiva, nos termos do art. 386II, do CPP (e-STJ, fls. 302-306).

Interposta apelação pelo Parquet (e-STJ, fls. 325-347), o Tribunal de origem deu-lhe provimento, no acórdão cuja ementa transcrevi acima, para condenar o acusado à pena de 8 anos e 2 meses de reclusão, bem como ao pagamento de indenização no valor de 1 salário-mínimo. Os embargos de declaração opostos contra o aresto condenatório foram rejeitados (e-STJ, fls. 531- 561).

Foi em face desse acórdão que a defesa interpôs o presente recurso especial (e-STJ, fls. 576-588), com a indicação de ofensa ao art. 386IIV e VII, do CPP, ao argumento central de que as provas dos autos não demonstrariam de forma inequívoca a ausência de consentimento da vítima para o ato sexual, elementar objetiva do crime de estupro. Alegou o recorrente que ele e a ofendida reataram seu relacionamento, "e seguem até os dias atuais criando o filho de ambos" (e-STJ, fl. 584). Subsidiariamente, buscou a redução da pena, com o afastamento das agravantes aplicadas pela Corte local na segunda etapa da dosimetria.

Em suas contrarrazões (e-STJ, fls. 725-728), o MP/PR suscitou a incidência das Súmulas 7/STJ e 284/STF, pedindo por isso, sucintamente, o não conhecimento do recurso especial. A Vice-Presidência do Tribunal estadual vislumbrou a incidência dos mesmos óbices processuais e, por isso, inadmitiu o recurso especial na origem (e-STJ, fls. 740-742), ao que se seguiu a interposição do agravo do art. 1.042 do CPC (e-STJ, fls. 751-764).

Remetidos os autos a esta instância especial, a Presidência desta Corte Superior não conheceu do agravo, com espeque na Súmula 182/STJ, por considerar deficiente a impugnação nele feita aos fundamentos da decisão de inadmissão (e-STJ, fls. 805-806).

No agravo regimental ora em julgamento (e-STJ, fls. 812-858), a defesa argumenta que "a peça recursal abordou detalhadamente cada ponto da decisão de origem, conforme demonstrado nas razões do agravo em recurso especial anexas" (e-STJ, fl. 814). Reitera, então, suas razões de mérito, calcadas na necessidade de preservação da unidade familiar e no no princípio in dubio pro reo . Requer, ao final, o provimento do agravo regimental, "restabelecendo a sentença de primeiro grau que absolvia o agravante" (e-STJ, fl. 820).

Na sessão de julgamentos de 6/8/2024, o Ministro Nome votou pelo desprovimento do agravo regimental. Motivado pelas peculiaridades da causa, pedi vista dos autos naquela ocasião e, tendo-os recebido conclusos em Gabinete no dia 14/8/2024, os devolvo agora ao colegiado, respeitado o prazo do art. 162 do RISTJ.

É o relatório.

Inicialmente, concordo que o agravo regimental deve ser desprovido, com espeque na Súmula 182/STJ, pois o agravo do art. 1.042 do CPC não impugnou adequadamente os fundamentos da decisão que inadmitiu o recurso especial na origem. Aquela decisão, afinal, pautou-se na incidência das Súmulas 7/STJ e 284/STF, enquanto o agravo basicamente reprisou as razões do recurso especial. Parece-me correta, pois, a decisão de nossa Presidência, fundada no art. 932III, do CPC, ao não conhecer do agravo em recurso especial.

Não obstante, penso que a hipótese reclama a concessão da ordem de habeas corpus , de ofício, nos termos do art. 654§ 2º, do CPP, pois a simples leitura do acórdão recorrido revela a existência de ilegalidade que, em minha visão, é evidente.

Neste caso, à semelhança do que ocorre em tantos outras imputações de crimes contra a dignidade sexual, a hipótese acusatória fundamenta-se apenas na palavra da própria ofendida, que fez a comunicação dos fatos à polícia no boletim de ocorrência.

O fato de que réu e vítima mantiveram uma relação sexual em 29/4/2022 é incontroverso; o que se discutiu no curso do processo foi, apenas, a elementar típica "mediante violência ou grave ameaça", presente no caput do art. 213 do CP. Segundo a narrativa inicial da ofendida, exposta no boletim de ocorrência (e-STJ, fl. 6), o acusado a teria derrubado e despido, consumando em seguida o estupro; já o réu, desde o início da persecução criminal, afirmou que a relação sexual foi consentida. O exame pericial feito em 6/5/2022, poucos dias após os fatos, não trouxe nenhuma conclusão sobre o cometimento de eventual violência contra a vítima (e-STJ, fls. 47-48); as respostas do perito foram inconclusivas, também, no laudo complementar, feito após a coleta de material para exames laboratoriais (e-STJ, fls. 171-172). Toda a imputação formulada pelo Ministério Público repousa, então, no primeiro relato extrajudicial da vítima prestado perante a polícia. É ele o único dado probatório a sustentar a acusação de que a conjunção carnal foi consumada mediante violência, já que nenhuma outra prova se produziu a seu respeito.

A questão é que, quando ouvida em juízo, sob o do contraditório, a vítima desmentiu sua declaração anterior . Na audiência de instrução e julgamento, realizada em 9/5/2023, eis o que disse a ofendida, conforme a transcrição feita pelo juiz sentenciante (e-STJ, fl. 303):

"A ofendida G DA C DA S afirmou em juízo que tenho 20 anos; que mantive relacionamento com o réu, que durou quatro anos; que na época dos fatos estávamos separados; que tenho filho com ele; que conversamos pelo celular; que pedi para ele ir na minha casa; que conversamos em casa; que não tinha ninguém; que conciliamos; que tivemos relação, mas depois disso brigamos; que falei que se ele não voltasse comigo, eu ia acusar ele; que fui até a Delegacia; que ele não chegou a me agredir antes; que o ato sexual foi consentido; que disse para ele, que se ele não voltasse comigo, eu ia denunciar ele ; que fui a pé até ao patrimônio Primavera, fui chamar minha mãe; que fui pedir ajuda para ela; que conversamos na varanda da minha casa; que a gente estava conversando normal; que existiu o ato sexual; que ele não me empurrou e não cheguei a cair ; que o ato sexual ocorreu na varanda; que continuo tendo relacionamento com ele; que moro com ele; que não estou sendo ameaçada, coagida; que não tinha mais ninguém dentro de casa; que voltamos a relação quatro meses depois".

Por isso, constatando a inexistência de qualquer outra prova produzida na ação penal para amparar a acusação, a sentença absolveu o réu.

Ao prover a apelação do Ministério Público, o Tribunal local compreendeu que a primeira versão apresentada pela vítima, na etapa extrajudicial, é que estaria corroborada pelas demais provas dos autos, sobretudo a testemunhal. Acontece que as demais testemunhas inquiridas na ação penal foram a mãe da vítima e os dois policiais militares que a atenderam quando da comunicação da ocorrência; nenhuma delas, porém, presenciou os fatos. Tudo que julgam saber a seu respeito é o que lhes foi dito pela própria ofendida. Seus depoimentos, dessarte, classificam-se como indiretos, já que nenhuma das testemunhas tem conhecimento imediato sobre os fatos, e assim não servem para corroborar a declaração extrajudicial da vítima, que foi sua própria fonte. A propósito:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO TENTADO. PRONÚNCIA FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE, QUANTO À AUTORIA, NO TESTEMUNHO INDIRETO DO POLICIAL E RELATOS EXTRAJUDICIAIS DAS VÍTIMAS. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 155209§ 1º, E 212 DO CPP. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO E ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO, PARA DESPRONUNCIAR O PACIENTE. EXTENSÃO AO CORRÉU, PELO ART. 580 DO CPP.

1. A autoria dos acusados foi indicada apenas pela ouvida extrajudicial das vítimas e pelo depoimento judicial do policial que as ouviu no inquérito, tendo o agente narrado em juízo o que os ofendidos lhe disseram durante a investigação. [...]

3. É indireto o testemunho do policial ou de qualquer outra pessoa que relata, mesmo em juízo, apenas aquilo que ouviu de outrem, seja a fonte (a vítima, o réu, ou um terceiro) identificada ou não. Como tal, esse depoimento não serve para fundamentar

a pronúncia ou a condenação e sua única finalidade é indicar a fonte original da informação para que ela seja ouvida em juízo, segundo o art. 209§ 1º, do CPP.

4. As fontes de prova que a polícia encontra nas investigações precisam aportar diretamente aos autos, para que o juiz as valores também diretamente, não podendo substituí-las pelo depoimento do policial acerca de seu teor.

5. Habeas corpus não conhecido e ordem concedida de ofício, para despronunciar o paciente, com extensão ao corréu (art. 580 do CPP)". (HC n. 776.333/ES, relatora Ministra Nome, voto-vista por mim apresentado, Quinta Turma, julgado em 11/6/2024, DJe de 19/6/2024.)

Todos os demais dados probatórios citados pelo acórdão recorrido (o boletim de ocorrência, o requerimento de medidas protetivas, o preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) foram produzidos por iniciativa da própria vítima, com base em sua primeira narrativa apresentada à polícia. A rigor, esses documentos e os relatos prestados pelas testemunhas são um só: todos eles se pautam, unicamente, no que a vítima disse ter acontecido no fatídico 29/4/2022. O protocolo daqueles documentos, fora da ação penal, comprova apenas que a vítima apresentou ao Poder Público uma denúncia de violência sexual, mas não que a violência em si aconteceu. Só o depoimento judicial da ofendida, colhido sob o crivo do contraditório na ação penal, é que poderia fazê-lo. Da mesma forma, os depoimentos de sua mãe e dos policiais provam somente que a vítima lhes contou o suposto estupro, mas não que o estupro em si tenha acontecido. É por isso que nossa jurisprudência não atribui ao testemunho indireto eficácia para comprovar nenhum elemento do delito, como exemplificam os seguintes julgados:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PEDIDO DE CONDENAÇÃO. VÍTIMA OUVIDA APENAS EM SEDE INQUISITORIAL SEM A PARTICIPAÇÃO EFETIVA DA DEFESA. PROCEDIMENTO DE COLHEITA ANTECIPADA DA PROVA NÃO ADOTADO. AUSÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DELITIVA. ART. 155 DO CPP. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Toda a prova que levou a condenação do réu tem como fundamento o relato colhido pela vítima em sede inquisitorial, uma vez que nenhuma das testemunhas presenciou a prática do crime, limitando-se a relatar em juízo o que ouviram da ofendida acerca dos fatos em apuração.

2. Embora a autoridade policial tenha determinado que a vítima fosse avaliada psicologicamente por profissionais do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima de Crimes de Curitiba - NUCRIA (e-STJ, fl. 306), resta evidente não ter sido adotado nenhum procedimento atinente à colheita antecipada da prova, com a efetiva participação do réu, em atenção aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Tampouco se aplicou ao caso o rito da Lei 13.431/2017.

3. É inviável a condenação lastreada unicamente em elementos informativos repetíveis do inquérito, segundo o art. 155 do CPP.

4. 'O testemunho indireto (também conhecido como testemunho de 'ouvir dizer' ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu' (AREsp

n. 1.940.381/AL, de minha relatoria, Quinta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 16/12/2021).

5. Agravo regimental desprovido". (AgRg no AREsp n. 2.315.345/PR, relator Ministro Nome, Quinta Turma,

julgado em 8/8/2023, DJe de 15/8/2023.)

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO A HOMICÍDIO TENTADO. TESE DE LEGÍTIMA DEFESA. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO IDÔNEA PARA SUA REJEIÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. TESTEMUNHO INDIRETO (HEARSAY TESTIMONY) QUE NÃO SERVE PARA FUNDAMENTAR A CONDENAÇÃO. OFENSA AO ART. 212 DO CPP. AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO, PELA POLÍCIA, DAS TESTEMUNHAS OCULARES DO DELITO, IMPOSSIBILITANDO SUA OUVIDA EM JUÍZO. FALTA TAMBÉM DO EXAME DE CORPO DE DELITO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. III E VII, E 158 DO CPP. DESISTÊNCIA, PELO PARQUET, DA OUVIDA DE DUAS TESTEMUNHAS IDENTIFICADAS E DA VÍTIMA. GRAVES OMISSÕES DA POLÍCIA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE RESULTARAM NA FALTA DE PRODUÇÃO DE PROVAS RELEVANTES. TEORIA DA PERDA DA CHANCE PROBATÓRIA. DESCONSIDERAÇÃO DO DEPOIMENTO DO REPRESENTADO. EVIDENTE INJUSTIÇA EPISTÊMICA. AGRAVO CONHECIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, A FIM DE ABSOLVER O RECORRENTE.

1. O representado foi condenado em primeira e segunda instâncias pela prática de ato infracional análogo a homicídio tentado.

2. Como relataram a sentença e o acórdão, a namorada grávida e um amigo do recorrente foram agredidos por J F DA S A após este ter consumido bebida alcoólica, ao que o representado reagiu, golpeando o agressor com um paralelepípedo. Segundo as instâncias ordinárias, constatou-se excesso na legítima defesa, com base nos depoimentos indiretos do bombeiro e da policial militar que atenderam a ocorrência quando a briga já havia acabado. Esses depoentes, por sua vez, relataram o que lhes foi informado por 'populares', testemunhas oculares da discussão que não chegaram a ser identificadas ou ouvidas formalmente pela polícia, tampouco em juízo.

3. O testemunho indireto (hearsay testimony) não se reveste da segurança necessária para demonstrar a ocorrência de nenhum elemento do crime, mormente porque retira das partes a prerrogativa legal de inquirir a testemunha ocular dos fatos (art. 212 do CPP).

4. A imprestabilidade do testemunho indireto no presente caso é reforçada pelo fato de que a polícia, em violação do art. III, do CPP, nem identificou as testemunhas oculares que lhes repassaram as informações posteriormente relatadas pela policial militar em juízo. Por outro lado, a vítima, a namorada do recorrente e seu amigo - todos conhecidos da polícia e do Parquet - não foram ouvidos em juízo, tendo o MP/AL desistido de sua inquirição.

5. Para além da falta de identificação e ouvida das testemunhas oculares, a vítima não foi submetida a exame de corpo de delito, por inércia da autoridade policial e sem a apresentação de justificativa válida para tanto (na forma do art. 167 do CPP), o que ofende os arts. VII, e 158 do CPP. Perda da chance probatória configurada.

6. 'Nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado perde a chance - com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) -, de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi destruída' (Nome; Nome. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, 2017, p. 462).

7. Mesmo sem a produção de nenhuma prova direta sobre os fatos por parte da acusação, a tese de legítima defesa apresentada pelo réu foi ignorada. Evidente injustiça epistêmica - cometida contra um jovem pobre, em situação de rua, sem educação formal e que se tornou pai na adolescência -, pela simples desconsideração da narrativa do representado.

8. Agravo conhecido para dar provimento ao recurso especial e absolver o recorrente, com a adoção das seguintes teses:

8.1: o testemunho indireto (também conhecido como testemunho de 'ouvir dizer' ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu. Sua utilidade deve se restringir a apenas indicar ao juízo testemunhas referidas para posterior ouvida na instrução processual, na forma do art. 209§ 1º, do CPP.

8.2: quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes".

(AREsp n. 1.940.381/AL, de minha relatoria, Quinta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 16/12/2021.)

Também decidimos, reiteradamente, que o testemunho indireto prestado em juízo não serve para corroborar um depoimento extrajudicial, o que configuraria burla ao teor do art. 155 do CPP. Veja-se, por exemplo:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. FALTA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULAS 283 E 284/STF. PRONÚNCIA BASEADA EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTOS DO INQUÉRITO E TESTEMUNHOS INDIRETOS. IMPOSSIBILIDADE. PERDA DA CHANCE PROBATÓRIA CONFIGURADA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

[...]

3. O depoimento do policial civil sobre o que ouviu dizer de outras pessoas no inquérito não 'judicializa' aqueles elementos da fase inquisitorial, (até pela natureza indireta do testemunho do policial), o que configuraria burla ao art. 155 do CPP. Entendimento das duas Turmas especializadas em direito penal. [...]

8. Agravo regimental desprovido". (AgRg no REsp n. 2.090.160/RS, de minha relatoria, Quinta Turma, julgado em 13/11/2023, DJe de 16/11/2023.)

"HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HOMICÍDIO QUALIFICADO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. CONDENAÇÃO. PROVAS COLHIDAS EXCLUSIVAMENTE NO INQUÉRITO POLICIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 155 DO CPP. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO.

1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, na esfera criminal não se admite a condenação do réu baseada em meras suposições, provas inconclusivas, ou exclusivamente colhidas em sede inquisitorial, tal como ocorrido na espécie (AgRg no AREsp 1.288.983/MG, Rel. Ministro Nome, QUINTA TURMA, julgado em 21/08/2018, DJe 29/08/2018).

2. Não sendo o depoimento da testemunha ocular repetido em juízo, lastreando-se a prova judicial apenas na oitiva da autoridade policial, que o colheu na fase inquisitiva, ausente prova judicializada para a condenação.

3. O delegado não relata fatos do crime tampouco é testemunha adicional do que consta do inquérito policial.

4. Utilizados unicamente elementos informativos para embasar a procedência da representação, imperioso o reconhecimento da ofensa à garantia constitucional ao devido processo legal.

5. Habeas corpus concedido para anular a sentença, por violação do art. 155 do CPP, e julgar improcedente a representação, nos autos do Processo de Apuração de Ato Infracional 0700016-98.2019.8.02.0038, na forma do art. 386VII, do CPP". (HC n. 632.778/AL, relator Ministro Nome, Sexta Turma, julgado em

9/3/2021, DJe de 12/3/2021.)

A situação poderia ser diferente, é claro, se o primeiro depoimento da vítima estivesse corroborado pelo testemunho de outra pessoa que viu os fatos, e não apenas que ouviu a vítima dizer o que aconteceu. Aí, sim, seria possível considerar que esses outros depoimentos confirmariam a hipótese acusatória. Também seria diversa a minha leitura se, quando inquirida em juízo, a vítima tivesse mantido firme sua versão fática, hipótese em que o julgador poderia valorá-la inclusive como elemento suficiente para sustentar a condenação. O que não se pode fazer, em minha visão, é desconsiderar a prova produzida em contraditório para dar prevalência a um indício extrajudicial - e, ademais, considerá-lo corroborado por testemunhos indiretos que apenas confirmam a existência do depoimento extrajudicial retratado em juízo. Tal proceder viola os arts. 155 e 209§ 1º, do CPP, com a interpretação que lhes temos dado nessa temática, como visto acima.

No estado atual da causa, simplesmente não há como sabermos quando foi que a vítima falou a verdade: se na delegacia, ao incriminar o acusado, ou em juízo, diante do Ministério Público, do juiz e do advogado, ao isentá-lo. Obviamente, como diz o Tribunal local, é possível que o estupro tenha acontecido e que a vítima tenha mentido em audiência para proteger o réu, preservando o relacionamento após sua reconciliação. A questão é que o acórdão recorrido não indica nenhuma prova para justificar essa conclusão, que se pauta, unicamente, num juízo de presunção . Partindo do quadro fático reconhecido pelo aresto, com os dados probatórios ali elencados, é igualmente possível que a vítima tenha mentido ao acusar falsamente o réu, na delegacia, e dito a verdade em juízo, arrependida da acusação inverídica. Na coexistência desses dois cenários plausíveis em igual medida, o in dubio pro reo impõe a absolvição do réu, já que a opção pelo desfecho condenatório não encontra nenhuma prova que lhe torne mais provável do que a hipótese defensiva.

A bem da verdade, para que a hipótese da acusação prevaleça numa sentença, não lhe basta ser mais provável do que a tese da defesa. Para além disso, a imputação precisa estar corroborada com altíssimo grau de probabilidade, por prova direta e produzida em juízo (art. 155 do CPP) quanto a cada elemento do crime. Não vejo o atendimento a esses requisitos no caso dos autos e, consequentemente, penso que a prudência do in dubio pro reo nos recomenda a absolvição do acusado, como fez o juízo de primeiro grau.

Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. Todavia, divirjo respeitosamente do Ministro relator para, com fundamento no art. 654§ 2º, do CPP, conceder habeas corpus, de ofício, a fim de restabelecer a sentença absolutória.

É o voto.

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