STJ Maio24 - Réu Tem Direito ao Silêncio Parcial - Nulidade do Processo Até a Audiência de Instrução

HABEAS CORPUS Nº 899637 - SP (2024/0094775-1)

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de RXXXXXXXXX, contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (Apelação Criminal nº 0006031-80.2023.8.26.0050).

Consta dos autos que o paciente foi sentenciado ao cumprimento de 07 (sete) anos de reclusão, no regime inicial fechado, e ao pagamento de 700 (setecentos) dias-multa, no mínimo legal, por infração ao artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06 (fl. 284).

O Tribunal de origem deu parcial provimento ao apelo defensivo para redimensionar a reprimenda para 06 (seis) anos de reclusão, no regime inicial fechado, e pagamento de 600 (seiscentos) dias-multa (fl. 48).

Nesta via, o impetrante alega, em síntese, a nulidade da audiência de instrução e julgamento por cerceamento de defesa, diante da não disponibilização integral aos autos da audiência virtual, bem como por não terem constado na ata os requerimentos formulados pela defesa.

Argui a nulidade do interrogatório, uma vez que o juízo não teria alertado o acusado de que o direito ao silêncio abrange também a possibilidade de resposta apenas às perguntas formuladas exclusivamente pela defesa.

Requer, liminarmente, a suspensão da Apelação Criminal nº 0006031-80.2023.8.26.0050 até a decisão definitiva do presente habeas corpus, e no mérito, que seja declarada nula a audiência de instrução e julgamento, bem como os atos subsequentes.

A liminar foi indeferida às fls. 528-530.

As informações foram prestadas às fls. 534-538 e 542-594.

O Ministério Público Federal opinou pela concessão do habeas corpus em parecer assim ementado (fls. 598-611):

Habeas corpus substitutivo de recurso próprio.
Tráfico de drogas (art. 33,"caput", da Lei de Drogas).
I) Alegação (primeira) no sentido de que teria sido negado ao paciente o direito de responder somente às perguntas da Defesa na audiência (interrogatório).
I.1) Defesa que alegou a nulidade imediatamente, no momento da realização a audiência de instrução e julgamento, e a reforçou perante o eg. Tribunal de Justiça Estadual, em grau de recurso de apelação.
I.2) Presença, nos autos, da transcrição (na íntegra) da audiência de instrução e julgamento.
I.3) Pleito de reconhecimento de nulidade que é manifesto. Presença da demonstração de efetivo prejuízo e constrangimento ilegal evidenciado.
I.4) Prejuízo objetivo: indeferimento de realização de perguntas ao réu por parte da Defesa técnica.
I.5) Nesse sentido, em conformidade com a jurisprudência do eg. STJ, "o interrogatório não é apenas meio de prova, mas especial instrumento de autodefesa, competindo, dessa forma, à defesa escolher a melhor estratégia defensiva" (AgRg no HC n.833.704/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 14/8/2023).
II) Alegação (segunda) no sentido de que a gravação da audiência de instrução e julgamento teria sido disponibilizada apenas "em fragmentos". Impossibilidade de adentrar ao mérito da questão específica.

Parecer pela concessão da ordem de habeas corpus para anular a audiência de instrução e julgamento e os atos a ela subsequentes (em especial a sentença condenatória) e determinar que o Juízo de Direito da 11ª Vara Criminal do Foro Central Criminal da Barra Funda, Comarca de São Paulo, proceda à realização de nova solenidade, especialmente com a concessão do direito de perguntas ao réu, por parte de seus Advogados, como forma de garantia da mais ampla defesa e realização da lídima justiça.

É o relatório. DECIDO.

Conforme relatado, busca a defesa o reconhecimento da nulidade da audiência de instrução e julgamento por cerceamento de defesa devido à ausência de juntada da íntegra do ato, bem como pelo indeferimento do direito ao silêncio parcial do acusado em seu interrogatório.

Para melhor contextualizar a questão, confiram-se os fundamentos lançados no acórdão impugnado (fls. 29-30):

"A alegação defensiva de que os vídeos gravados na audiência, realizada em 14 de junho de 2023, apresentam trechos"recortados e/ou não juntados, inclusive tendo uma das gravações se iniciado perceptivelmente após o indeferimento de um dos requerimentos da defesa"(pág. 274), não prospera, uma vez que as gravações foram disponibilizadas no sistema"SAJ"de forma integral (pág. 227).
Ademais, todos os requerimentos formulados pela i. Defesa, deferidos ou não, constaram dos termos de audiência juntados às págs. 223/224 e 225/227, não havendo demonstração de qualquer prejuízo para o acusado, nos termos do que estabelece o artigo 563 do Código de Processo Penal. Ademais, a douta Defesa não apontou exatamente qual foi o requerimento indeferido e que não constou do termo de audiência, nem mesmo o prejuízo suportado.
A pleiteada nulidade do interrogatório do apelante, por violação ao direito de responder às perguntas formuladas somente pela defesa, também não merece acolhida.
Analisando o teor do interrogatório judicial disponibilizado a partir dos 08min e 23 segundos, do sétimo vídeo juntado a pág. 227, denominado"TESTEMUNHA MARIA INTERROGATÓRIO - REQUERIMENTOS", antes de iniciar o ato processual, a defesa apresentou duas"questões de ordem", alegando que Roberto responderia apenas às perguntas da defesa, permanecendo silente em relação àquelas apresentadas pelo Juízo e Ministério Público.
Então, o Magistrado esclareceu ao réu seus direitos constitucionais de permanecer em silêncio, confessar ou apresentar sua versão aos fatos, não sendo obrigado a se autoincriminar, oportunidade em que, de forma categórica, se manifestou:" vou ficar em silêncio, Vossa Excelência ", deixando de expressar qualquer vontade em responder as perguntas apenas da Defesa, mesmo ouvindo a alegação da n. Defensora no sentido de que haviam previamente acordado a respeito."
No tocante ao direito do acusado a responder apenas às perguntas formuladas pela defesa, saliente-se, inicialmente que, nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal:
"A proibição da autoincriminação resguarda o direito de o acusado não produzir provas contra si mesmo, sendo conhecido como princípio do nemo tenetur se detegere - princípio da vedação à autoincriminação ou direito ao silêncio -, consagrado no inciso LXIII do art. 5º da Constituição da Republica, também é garantido pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH), conhecida com Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário."
(AgRg no HC n. 738.493/AL, de minha relatoria, Quinta Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 24/10/2022)."(AgRg no AREsp n. 1.917.106/MG, Quinta Turma, Relator Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 17/3/2023).

O fato de o juiz conduzir o interrogatório não significa que o réu está impossibilitado de responder apenas a algumas perguntas, em especial às da Defesa, fazendo uso assim do silêncio seletivo, uma vez que o direito ao silêncio é consectário do princípio nemo tenetur se detegere, tratando-se, portanto, de garantia à não autoincriminação.

Nesse sentido, os precedentes desta Corte Superior de Justiça:

"PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE DO FEITO RECONHECIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM.
PLEITO MINISTERIAL. INTERROGATÓRIO DO RÉU. DIREITO AO SILÊNCIO PARCIAL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE.
PRECEDENTES. DECISÃO MANTIDA.
I - O agravo regimental deve trazer novos argumentos capazes de alterar o entendimento firmado anteriormente, sob pena de ser mantida a decisão agravada por seus próprios fundamentos.
II - A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é assente no sentido de que "o direito ao silêncio é consectário do princípio nemo tenetur se detegere, tratando-se, portanto, de garantia à não autoincriminação. Ademais, é assente que o interrogatório não é apenas meio de prova, mas especial instrumento de autodefesa, competindo, dessa forma, à defesa escolher a melhor estratégia defensiva." (AgRg no HC n. 833.704/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 14/8/2023).
Agravo regimental desprovido."
(AgRg no AREsp n. 2.400.257/MG, de minha relatoria, Quinta Turma, julgado em 21/11/2023, DJe de 28/11/2023.)
"HABEAS CORPUS. PRIMEIRA FASE DO JÚRI. NULIDADE DO INTERROGATÓRIO.
RECUSA DE RESPONDER PERGUNTAS AO JUÍZO. CERCEADO QUESTIONAMENTOS DEFENSIVOS. ILEGALIDADE CONSTATADA.
1. O artigo 186 do CPP estipula que, depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas 2. O interrogatório, como meio de defesa, implica ao imputado a possibilidade de responder a todas, nenhuma ou a apenas algumas perguntas direcionadas ao acusado, que tem direito de poder escolher a estratégia que melhor lhe aprouver à sua defesa.
3. Verifica-se a ilegalidade diante do precoce encerramento do interrogatório do paciente, após manifestação do desejo de não responder às perguntas do juízo condutor do processo, senão do seu advogado, sendo excluída a possibilidade de ser questionado pelo seu defensor técnico.
4. Concessão do habeas corpus. Cassação da sentença de pronúncia, a fim de que seja realizado novo interrogatório do paciente na Ação Penal n. 5011269-74.202.8.24.0011/SC, oportunidade na qual deve ser-lhe assegurado o direito ao silêncio (total ou parcial), respondendo às perguntas de sua defesa técnica, e exercendo diretamente a ampla defesa."(HC n. 703.978/SC, Sexta Turma, Relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), DJe de 7/4/2022) 

Verifica-se, portanto, que é possível ao acusado responder apenas às perguntas formuladas pela defesa no seu interrogatório, o que lhe foi negado na audiência transcrita às fls. 416/421. Assim, mister o reconhecimento da nulidade do interrogatório do acusado, bem como dos atos judiciais subsequentes, que devem ser renovados. Na oportunidade, deverá ser observado pelo juízo de primeiro grau a possibilidade de que o acusado faça jus ao direito ao silêncio, bem como que responda somente às perguntas formuladas pela defesa.

A esse respeito, o seguinte excerto do parecer ministerial, o qual adoto como razões complementares (fls. 607-610):

No presente caso, a Defesa logrou comprovar, categoricamente, a ocorrência de cerceamento de defesa e o prejuízo por ela suportado, de modo que a nulidade da audiência de instrução e dos atos subsequentes é medida que se impõe.
(...)
Destarte, o direito ao silêncio parcial, expressão da garantia constitucional à ampla defesa, deve ser reconhecido e homenageado, em respeito à Constituição e às Leis da República.
(...)
Em reforço, não há se falar em preclusão, principalmente pelo fato de a nobre Defesa ter se manifestado imediatamente contra a ofensa observada no ato da solenidade da audiência de instrução e julgamento.
(...)
Portanto, atento à pretensão colocada no presente habeas corpus, conclui-se que o ato impugnado é ilegal.

A apontada inconsistência na gravação dos requerimentos defensivos formulados durante a audiência de instrução fica prejudicada, considerando a nulidade acima reconhecida com determinação de realização de nova audiência de instrução para interrogatório do acusado.

Dessa forma, estando o acórdão prolatado pelo Tribunal a quo em desconformidade com o entendimento desta Corte de Justiça quanto ao tema, incide, no caso o enunciado da Súmula nº. 568, STJ:"O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema".

Ante o exposto, concedo o habeas corpus para anular o interrogatório do acusado e todos os atos subsequentes, determinando que novo interrogatório seja realizado com a garantia do direito ao silêncio, ainda que parcial.

Publique-se. Intimem-se.

Brasília, 15 de maio de 2024.

Ministro Messod Azulay Neto

Relator

(STJ - HC: 899637, Relator: Ministro MESSOD AZULAY NETO, Data de Publicação: 16/05/2024)

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