STJ Mar25 - Crime de Dano ao Patrimônio Público - Absolvição por Atipicidade :"Ausência do animus nocendi - dolo de causar dano ao erário"
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em benefício de MAXXXXX, contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO no julgamento do Habeas Corpus Criminal n. 2298252-83.2024.8.26.0000.
Extrai-se dos autos que o paciente foi condenado à pena de 6 meses de detenção e 15 dias de prisão simples, no regime inicial aberto, pela prática, respectivamente, do crime tipificado no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal – CP e da contravenção penal estabelecida no art. 21 do Decreto-Lei n. 3.688/1941.
A pena privativa de liberdade foi substituída por restritiva de direito, consistente na prestação de serviços à comunidade, sendo a condenação mantida pelo Tribunal de origem, em sede de apelação criminal, nos termos do acórdão de fls. 98/105 (sem ementa).
Transitada em julgado a sentença condenatória, a Corte bandeirante julgou improcedente a revisão criminal apresentada pelo paciente, o que ensejou nova irresignação por meio de habeas corpus, cuja ordem fora denegada em 19/11/2024, conforme o seguinte resultado de julgamento:
"Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus Criminal nº 2298252-83.2024.8.26.0000, da Comarca de Catanduva, em que são impetrantes MARCO AURÉLIO PINTO FLORÊNCIO FILHO, RODRIGO DOMINGUES DE CASTRO CAMARGO ARANHA, HUMBERTO BORGES CHAVES, LUCIANA LOSSIO, DIEGO RANGEL ARAUJO e FABIO RODRIGUES TRINDADE e Paciente MAURÍCIO GOUVEIA, é impetrado OITAVA CÂMARA DE DIREITO CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 7º Grupo de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Denegaram a ordem. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Desembargadores MARCO DE LORENZI (Presidente), MOREIRA DA SILVA, AMARO THOMÉ, MARCELO GORDO, MARCELO SEMER, XISTO ALBARELLI RANGEL NETO, FÁTIMA GOMES, AUGUSTO DE SIQUEIRA E HERMANN HERSCHANDER." (fl. 23).
No presente writ, a defesa alega a existência de flagrante ilegalidade na condenação do paciente pelo crime de dano qualificado ao patrimônio público, pois não houve comprovação do animus nocendi – pressuposto essencial à tipificação do delito previsto no art. 163, parágrafo único, III, do CP.
Nesse sentido, afirma que o paciente se dirigiu ao centro de saúde com o intuito de colaborar na solução de problemas relacionados ao atendimento médico da população do Município de Catanduva, e não de dilapidar o patrimônio público.
Sustenta, ainda, nulidade processual oriunda de deficiência na defesa técnica, com destaque ao fato de o advogado constituído à época não ter impugnado a manifestação do parquet estadual pela ausência dos requisitos necessários à concessão da suspensão condicional do processo.
Acrescenta que o causídico, sem a anuência do paciente, rechaçou qualquer insurgência contra a inaplicabilidade do acordo de não persecução penal – ANPP ao caso em análise, sob o argumento de que "seu cliente jamais confessaria formal e circunstancialmente a prática de infração penal que não cometera" (fl. 17).
Aduz que os dois desacertos jurídicos acarretaram graves prejuízos ao paciente, pois afastaram a possiblidade de usufruir os benefícios ofertados pelos institutos jurídicos (sursis processual e ANPP), de modo a evitar a condenação criminal que o tornou inelegível, obstando a continuidade do exercício do cargo de vereador, para o qual foi legitimamente eleito no pleito eleitoral ocorrido em 6/10/2024.
Requer, em liminar, a suspensão dos efeitos da sentença condenatória proferida na Ação Penal n. 1501949-16.2019.8.26.0132 e, no mérito, a concessão da ordem para que seja reconhecida a atipicidade da conduta, ante a ausência de dolo específico do crime de dano ao patrimônio público ou, subsidiariamente, anulada a referida ação penal desde o parecer ministerial que recusou o oferecimento do sursis processual e do ANPP.
A liminar foi deferida para suspender os efeitos da sentença (fls. 728/732). Informações prestadas (fls. 739/746 e 748/803), o Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem (fls. 806/809).
É o relatório. Decido.
Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do próprio Superior Tribunal de Justiça. Todavia, considerando as alegações expostas na inicial, razoável o processamento do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal que justifique a concessão da ordem de ofício.
Conforme relatado, busca-se no presente writ o reconhecimento da atipicidade da conduta relacionada ao dano qualificado contra patrimônio da União, Estado ou Município, ou a anulação da ação penal. Sobre a controvérsia, importa destacar os seguintes excertos da sentença condenatória:
"A prova testemunhal, portanto, demonstra que o acusado derrubou a mesa, danificando a própria mesa e o computador que estava sobre a mesa, bem como desferiu um tapa na cabeça do ofendido. Com efeito, as declarações do ofendido são compatíveis com o relato do próprio acusado (que afirmou ter tirado o celular da mão do médico) e, além disso, foram corroboradas pela testemunha presencial Rodrigo Cristiano Genovês (o qual afirmou que a vítima empurrou a mesa na direção do acusado e que o réu, nesse momento, puxou e derrubou a mesa, tirando o celular do ofendido, sendo necessário agarrá-lo para retirá-lo da sala). Ressalte-se que os depoimentos dos guardas municipais que compareceram ao local logo após o fato também se apresentam compatíveis com as declarações do ofendido. Com efeito, as testemunhas Fábio e Marcos relataram que encontraram a mesa e o computador derrubados no chão e que o tampão da mesa estava virado para o lado do médico ("de fora para dentro"), o que revela a dinâmica da virada da mesa contra o médico e não o contrário. Diante do exposto não há se falar em insuficiência de provas em relação à conduta ilícita do acusado. Em relação à tipicidade, o crime de dano (art. 163 do CP) pode ser praticado por meio das condutas de destruir, inutilizar ou deteriorar (núcleos do tipo), bastando o dolo (geral) para a configuração do tipo subjetivo, ou seja, não se exige qualquer finalidade específica por parte do agente (elemento subjetivo específico ou dolo específico). Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci esclarece: "O simples fato de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia implica em vontade de causar prejuízo, logo, abrangido pelo dolo" (Código Penal Comentado. 14ed. p. 887). Além disso, a qualificadora relativa à natureza pública (municipal) do patrimônio danificado também restou demonstrada. Com efeito, a perícia realizada pela Polícia Científica constatou a existência de dano em móveis do Centro de Especialidades Médicas – CEM do Município de Catanduva (fls. 15/20)." (fls. 127/128 – sem grifos no original).
A Corte de origem manteve a condenação do paciente, destacando que o habeas corpus não seria o meio adequado para a análise da alegada atipicidade da conduta, dada a necessidade de exame e valoração de prova.
De início, cumpre salientar que, em que pese a análise quanto à tipicidade da conduta exija, em regra, aprofundado exame fático probatório, inviável na via estreita do habeas corpus, é certo que a constatação, de plano, da ausência de tipicidade, sem que haja incursão probatória, impõe a concessão da ordem.
No caso, o juízo sentenciante afirmou a adequação da conduta do paciente, comprovada pela prova testemunhal, ao tipo penal incriminador previsto no art. 163, parágrafo único, III, do CP, considerando prescindível a existência de dolo específico.
Ocorre que essa orientação está em dissonância com a jurisprudência desta Corte Superior, que é firme no sentido de que para a caracterização do crime tipificado no art. 163, parágrafo único, Ill, do Código Penal, é imprescindível a comprovação do dolo específico de causar prejuízo ao erário.
Não obstante as provas testemunhais tenham sido no sentido de que o réu teria danificado a mesa e o computador pertencentes ao Centro Médico Municipal, não restou evidenciado o animus nocendi, elemento subjetivo essencial à configuração do delito.
Corroborando o entendimento, vejam-se os seguintes precedentes (grifos acrescidos):
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO AGRAVADA. RECONSIDERAÇÃO. FUNDAMENTOS IMPUGNADOS. CONHECIMENTO. ART. 12 DA LEI 10.826/2003. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PERIGO ABSTRATO. CRIME DE DANO QUALIFICADO. NÃO COMPROVAÇÃO DO DOLO DE CAUSAR PREJUÍZO OU DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. 1. Devidamente impugnados os fundamentos da decisão de inadmissão do recurso especial, é de ser reconsiderada a decisão que não conheceu do agravo. 2. Constatado na origem que o réu possuía em sua residência 3 armas e 2 munições de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, fica caracterizada a conduta estabelecida no art. 12 da Lei 10.826/03. 3. Os crimes previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei 10.826/2003 são de perigo abstrato, de forma que a inequívoca posse de armas e munições torna despicienda a comprovação do potencial ofensivo por meio de laudo pericial. 4. Para a caracterização do crime de dano qualificado contra patrimônio da União, Estado ou Município, mister se faz a comprovação do elemento subjetivo do delito, qual seja, o "animus nocendi", caracterizado pela vontade de causar prejuízo ou dano ao patrimônio público, o que não se verifica na espécie, em que o recorrente danificou as algemas para fins de fuga. 5. Agravo regimental provido. Agravo conhecido. Provimento parcial do recurso especial. Restabelecimento da absolvição pelo crime do art. 163, parágrafo único, III, do CP (art. 386, III - do CPP), ficando a pena definitiva estabelecida em 1 ano e 2 meses de detenção, no regime aberto, pela prática do delito tipificado no art. 12 da Lei 10.826/2003. (AgRg no AREsp n. 2.035.355/TO, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, DJe de 20/9/2022.) PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. DANO QUALIFICADO. ABSOLVIÇÃO. EXCEPCIONALIDADE NA VIA DO WRIT. FLAGRANTE ILEGALIDADE EVIDENCIADA. DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO NÃO COMPROVADO. WRIT NÃO CONHECIDO E ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. Caso reste evidenciada, de plano, a atipicidade da conduta imputada ao paciente, sendo despiciendo o reexame detido dos elementos de convicção amealhados nos autos, admite-se a sua absolvição em sede de habeas corpus, como na hipótese em apreço. 3. Nos termos da jurisprudência desta Corte, para que se possa falar em crime de dano qualificado contra patrimônio da União, Estado ou Município, mister se faz a comprovação do elemento subjetivo do delito, qual seja, o animus nocendi, caracterizado pela vontade de causar prejuízo ao erário. Nesse passo, a destruição, deterioração ou inutilização das paredes ou grades de cela pelo detento, com vistas à fuga de estabelecimento prisional, ou, ainda, da viatura na qual o flagranteado foi conduzido à delegacia de polícia, demonstra tão somente o seu intuito de recuperar a sua liberdade, sem que reste evidenciado o necessário dolo específico de causar dano ao patrimônio público. 4. Writ não conhecido e habeas corpus concedido, de ofício, para absolver o réu quanto ao crime de dano qualificado, nos autos da Ação Penal n. 0004267-14.2018.8.24.0075, em curso na 2ª Vara Criminal da Comarca de Tubarão/SC. (HC n. 503.970/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 30/5/2019, DJe de 4/6/2019.) PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME DE DANO QUALIFICADO PRATICADO CONTRA O PATRIMÔNIO PÚBLICO. TENTATIVA DE FUGA DO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS NOCENDI). NÃO CONFIGURAÇÃO DO DELITO. 1 - Consoante jurisprudência desta Corte, para a configuração do crime de dano previsto no art. 163 do Código Penal, mostra-se imprescindível a presença do elemento subjetivo específico, qual seja, o animus nocendi, que consiste na vontade deliberada de causar prejuízo ao patrimônio alheio. 2 - "A destruição de patrimônio público (buraco na cela) pelo preso que busca fugir do estabelecimento no qual encontra-se encarcerado não configura o delito de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, inciso III do CP), porque ausente o dolo específico (animus nocendi), sendo, pois, atípica a conduta" (HC n. 260.350/GO, Relª. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 21/5/2014). 3 - Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 409.417/SC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe de 6/11/2017.)
Ante o exposto, com fundamento no art. 34, c/c o art. 203, II, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, não conheço do habeas corpus mas concedo a ordem, de ofício, para declarar atípica a conduta do paciente e absolvê-lo quanto ao delito do art. 163, parágrafo único, inciso III, do CP, nos termos do art. 386, III, do CPP. Publique-se. Intimem-se.
Relator
JOEL ILAN PACIORNIK
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