STJ 2025 - Estupro de Vulnerável - Nulidade do Processo - Reinquirição de Vítima menor pelo TJ em diligência - Réu Condenado com Base na Palavra de Vítima, que em Sede de Apelação Apresentou Ata Notarial onde a vítima se retrata - TJ reinquiriu a vítima, ferindo o depoimento especial, e sem contraditório

  Carlos Guilherme Pagiola


AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO, CLARA E ESPECÍFICA, DOS DISPOSITIVOS DE LEI FEDERAL TIDOS COMO VIOLADOS. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF . TENTATIVA DE SUPRIR O VÍCIO EM RECURSO SUBSEQUENTE. INADMISSIBILIDADE. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA . ILEGALIDADE FLAGRANTE. APELAÇÃO. CONVERSÃO DO JULGAMENTO EM DILIGÊNCIA (ART. 616 DO CPP) PARA REINQUIRIÇÃO DAS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS . OITIVA DAS VÍTIMAS EFETIVADA EM DESCOMPASSO COM AS DIRETRIZES PREVISTAS NO ART. 12 DA LEI N. 13.431/2017 . NULIDADE DO ATO PROCESSUAL E DAQUELES QUE O SUCEDERAM. Agravo regimental improvido. Habeas corpus concedido de ofício, nos termos do voto.

(STJ - AgRg no AREsp: 2603472 GO 2024/0117256-7, Relator.: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Julgamento: 11/02/2025, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJEN 11/03/2025)

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NO VOTO (RESUMO)

VOTO-VISTA Trata-se de agravo regimental interposto por S F da S contra decisão monocrática da Presidência desta Corte que não conheceu do recurso especial ante a ausência de indicação dos dispositivos de lei federal tidos como violados (Súmula 284/STF). Nas razões, asseverou que o recurso especial fundamentou flagrante cerceamento de defesa, expondo de forma clara, direta, coesa e concisa os motivos que levaram a defesa a recorrer ao Egrégio Superior Tribunal de justiça. Dessa forma, não se sustenta a argumentação levantada na denegação do recurso (fl. 881). Alegou, ainda, que o recurso especial interposto atendeu a todos os requisitos legais, não havendo o que se falar em "recurso inadmissível ou prejudicado". Ressalta-se que foram devidamente especificados todos os fundamentos necessários para que este fosse remetido à apreciação desta Corte Superior, nos termos do artigo 105, III, "a", da Constituição Federal (fl. 881). Por fim, adentrando no mérito do recurso inadmitido, aduziu que o indeferimento da produção de uma prova cuja produção foi deferida pelo magistrado e que, posteriormente, sua ausência foi ignorada em prejuízo do recorrente, caracteriza nítido cerceamento de defesa. Enfatiza-se que as provas indeferidas tratam-se da oitiva das vítimas que buscavam desmentir as acusações feitas à época da sentença, fato que teria o condão de absolver o requerente. Dessa forma, é patente a violação do conteúdo disposto no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal (fl. 881). Pugnou, assim, pela reforma da decisão agravada. Os autos foram distribuídos ao eminente Ministro Antonio Saldanha Palheiro (fl. 893). Em seu voto, o Relator manteve a decisão agravada

(....)

Ressalto, no entanto, que diviso ilegalidade flagrante no processamento da ação penal, apta a ensejar a concessão de habeas corpus de ofício. Explico. A denúncia imputou ao agravante a prática dos crimes de estupro de vulnerável contra os seus dois filhos gêmeos (fls. 592/593)

[...] O denunciado praticou vários atos libidinosos diversos da conjunção carnal com as vítimas K. A. S e R. A. S, irmãos gêmeos de 11 (onze) anos de idade, consistentes em obrigar R. A. S por, pelo menos, três vezes, a se despir para, em seguida, penetrar seu pênis no ânus daquela criança, e, de igual modo, tentado a mesma prática contra K. A. S, no entanto, ao tentar a penetração, esta não suportou e se desvencilhou do ato, no entanto, foi obrigada, por várias vezes, a praticar ato de masturbação no denunciado, sob ameaça de que, se contassem para alguém, principalmente a mãe, iria matá-los e também à sua irmã, tudo isto visando o desafogo de sua concupiscência. Apurou a investigação preliminar policial que o denunciado é pai biológico das vítimas, e, devido à dificuldade financeira, estas passaram a residir com o denunciado, no entanto, por começarem a apresentar comportamentos estranhos, foram encaminhadas para acompanhamento psicológico, oportunidade em que relataram todos os atos libidinosos praticados pelo pai biológico ao conselho tutelar, às psicólogas, e à patroa de sua mãe, e também à própria mãe, culminando no encaminhamento de ambas para oitiva em sede de produção antecipada de prova perante a psicóloga da Equipe Interprofissional, onde se concluiu a verossimilhança das afirmações feitas. Com a intervenção dos profissionais de psicologia, foi possível aferir que a vítima R. A. S foi estuprada pelo denunciado por, pelo menos, três vezes no período acima mencionado, tendo o denunciado, para tanto se utilizado do chamado poder reverencial com requinte de ameaças para consecução de suas investigas criminosas. Assim, os atos libidinosos eram praticados pela madrugada quando o denunciado chegava embriagado das festas de forró, sempre obrigando um dos infantes a ingerir remédio sob a alegação de que era para dor de garganta, posto que, fatia com que uma das vítimas caísse em sono profundo. Foi possível aferir, ainda, que a vitima K. A. S foi estuprada pelo denunciado por, pelo menos, duas veze, tendo o denunciado, para tanto, se utilizado do mesmo modus operandi que perfaz a investida criminosa contra a outra vítima, no entanto, ao tentar penetrar o pênis no ânus desta vítima, não conseguiu seu intento, pois dada a hiperatividade daquela criança, ela não permitiu a consecução do ato, ao que foi espancada e devolvida para sua mãe sob a alegação de que estava “muito custoso”, mas, por outras vezes, o denunciado conseguiu fazer com que a aludida vítima o masturbasse.” [...]

A instrução processual transcorreu regularmente, tendo sido proferida sentença condenatória calcada na palavra das vítimas robustecida por estudo psicológico, além do depoimento da genitora e de outras duas pessoas que tiveram contato com as vítimas e ouviram delas o relato da prática delitiva (fls. 597/600 - grifo nosso):

[...] A materialidade do delito encontra-se devidamente comprovada, consoante – evento n. 3 pdf do processo físico – Inquérito Policial n. 142/2018; RAI n. 6546629; certidões de nascimento; relatório do conselho tutelar; termo de depoimento da genitora dos menores; termo de depoimento de Sylvana Vyctoria de Souza; relatório psicólogico realizado pela equipe interprofissional e demais elementos colacionados nos autos. A autoria, de igual modo, é inconteste nos autos, especialmente pelo depoimento das vítimas colhidos em avaliação interdisciplinar e prova oral colhida em audiência de instrução e julgamento. A vítima R. A. S, à época do estudo com 10 (dez) anos, afirmou para a equipe que sofreu violência sexual e que esta foi praticada pelo acusado S F da S. Disse que os abusos iniciaram no ano de 2017 e que só pararam em 2018, após a denúncia. Narrou que os abusos ocorreram na casa em que moravam, perto do “regional”, dentro do quarto. De seus relatos, consta “tava indo no meu pai. S. Casa, perto do regional, de noite, no quarto dele, pegava no meu bilau, enfiou o pau naquele lugar, no meu cu, muitas vezes, sentia dor, fiquei assado”. O estudo ressalta que a vítima narrou que o acusado abusava dele e do irmão, porém em momentos diferentes. Asseverou que o réu dava comprimidos para um dormir e abusava do outro. Relatou que o irmão era obrigado a masturbar o pai, no entanto, quando se recusava, era agredido por ele, informou que como o irmão se recusava, acabou indo morar com a mãe. A vítima também relatou que sofria ameaças pelo acusado “não era para contar pra minha mãe, ele ia até o inferno para matar nóis”. No que pertine a revelação da violência, informou que seu irmão contou para a empregadora da mãe, que posteriormente relatou para a genitora e procuraram o conselho tutelar. Com relação a vítima R. A. S, a equipe concluiu: “A avaliação psicológica também sinalizou comportamentos e características emocionais de vítimas de abuso sexual, más não exclusivas desse grupo, dentre elas: retraimento, trizeta, inadequação, rejeição, baixa estima, desconfiança, defensividade, preocupações sexuais, desamparo, ansiedade, culpa e conflito de identidade de gênero. A criança vem empregando um esforço consciente, hipervigilante, constante e intenso para manter o ego intacto diante dos lutos vividos: o real (perda da função paterna) e o simbólico (perda/violação do corpo infantil). As características gerais, que se referem a avaliação das afirmações em seu conjunto quanto a estrutura lógica estão em consonância com a narrativa da vítima nos demais depoimentos e com a fala do irmão K. R foi capaz de situar-se dentro de um contexto temporal e realizar descrição e ações e reações mútuas entre ele e o acusado como: reprodução de conversações; descrição dos locais em que sofreu o abuso; e o sofrimento psicológico ligado a cena de abuso. A prática sexual descrita pela vítima se deu por meio de indução de vontade. E os atos, de acordo com ele, envolveram contato físico (toque, penetração anal), assim como contato físico (assédio). Portanto, diante do exposto, pode-se afirmar que é elevada a probabilidade de que a criança R A de S tenha de fato vivenciado as situações de violência que relatou. Observou-se a presença de aspectos emocionais dolorosos significativos relacionados ao abuso descrito pela vítima e sentimento de impotência diante da violação exposta. A criança afirmou em oitiva que S F da S foi o autor da violência.” A vítima K. A. S, à época do estudo com 10 (dez) anos de idade, afirmou para a equipe que sofreu violência sexual e que esta foi praticada pelo acusado Sr F da S. Disse que o pai, S, o levava para o quarto e lhe obrigava a masturbá-lo. Afirmou que tentou estuprá-lo, mas que não permitiu. Narrou que “meu pai o S tirou minha roupa, tirou a dele. Fez eu pegar o pipi dele. Ele queria fazer comigo. Enfiar o pipiu em mim”. Consta no relatório, que a vítima narrou que o acusado abusava dele e de seu irmão R, na casa em que moravam e que a violência ocorria a noite, em momentos distintos e no quarto do réu. Disse também, que quando reagia a tentativa de abuso, o pai lhe agredia e o devolvia para o quarto, bem como dava-lhe remédios para dor de garganta e que após receber o medicamento, dormia, não podendo visualizar o que acontecia com o irmão. O estudo narra que a vítima declinou que o abuso ocorreu uma vez, e que logo pediu para retornar para a casa da mãe. O infante também informou que o réu fazia ameaças de matar a família, caso ele revelasse o abuso. No que pertine a revelação da violência, informou que contou para a empregadora de sua mãe, que posteriormente relatou para a genitora e procuraram o conselho tutelar. Com relação a vítima K. A. S, a equipe concluiu: “Foi possível verificar que o infante demonstrou sofrimento com prejuízo no funcionamento psicológico. Indicadores emocionais de dispersividade, fragilidade, ansiedade, preocupações sexuais, insegurança e medo ligado ao abuso foram expostos. Tensão, retraimento, descontentamento, comportamentos regressivos, características como a falta de confiança e necessidade de apoio também foram averiguadas. K foi capaz de realizar uma leitura adequada das situações e não apresentou interpretações delirantes de fatos e situações. A memória da criança mostrou-se preservada e seu discurso demostrou coerência, bem como averiguou-se consonância com o relato do irmão, também vítima, R A de S. As características gerias, que se referem à análise das afirmações de seu conjunto quanto a estrutura lógica estão em consonância com a consistência e coerência da narrativa da vítima nos demais depoimentos dos autos. K também foi capaz de situar-se dentro de um contexto temporal e realizar descrição e ações e reações mútuas entre ele e o acusado, assim como mencionar a presença de uma terceira pessoa (o irmão) que também relata situação abusiva semelhante. Portanto, diante de todo o contexto exposto, pode-se afirmar que é elevada a probabilidade de que a criança K A de S tenha de fato vivenciado as situações de abuso sexual que relatou no processo em estudo. O infante certificou em oitiva psicológica que S F da S foi o autor da violência.” Em reforço aos relatos das vítimas, a prova oral produzida em Juízo foi no mesmo sentido. A informante D A de S, afirmou em Juízo: “ (...) que os filhos passaram uma temporada com o genitor pois estava passando por dificuldades, e que o acusado apenas efetuaria prestação alimentícia após a realização de exame de DNA. Aduziu que à época dos fatos, trabalhava como diarista para S V, e que os filhos contaram primeiro para S, que então lhe chamou em sua residência e contou os relatos das vítimas. Aduziu que R lhe relatou que o réu segurou sua mão e começou a colocar e que estava doendo muito, e que o réu lhe falava que não iria doer. Que segundo a vítima, o acusado falou que ia colocar só um pouco, e que em virtude do ato, fezes vieram à tona. Relatou que o réu fez uma espécie de remédio de boldo e deu para a vítima ingerir. Que o R ficou mais prejudicado, pois K tem uma natureza mais forte. Em virtude disto, o réu dava um remédio para K afirmando-lhe que era para garganta e que com este remédio dormia. Que segundo K, o réu lhe colocava para segurar seu pênis. Sobre a quantidade de vezes, afirmou que as vítimas relataram que foram várias (...) Aduziu que os filhos mudaram muito após os abusos. Informou que os filhos moraram com acusado por cerca de 1 (um) ano, e que segundo os relatos das vítimas, os abusos ocorriam com frequência diária. Afirmou que R lhe disse que ficava assado. Declinou que R sempre reclamava de assadura e dor de barriga”. Mídia constante no ev. n. 4. A testemunha M L, Conselheiro Tutelar, afirmou em Juízo: “Recebi uma denúncia no plantão e encaminhei ao órgão competente. Quando eu cheguei na casa, tinham três pessoas na casa, a mãe, a patroa e uma vizinha. Elas começaram a me contar a história, os fatos, de que os meninos tinham sofrido abuso. Informou que a história foi revelada inicialmente para a patroa da genitora, que os menores não queriam ir para a residência do genitor, de um período de 6 (seis) meses, mais ou menos. Afirmou que pelos relatos, K não aceitou a penetração anal. E que R afirmou que houve penetração anal e que sentiu dor de barriga e diarreia. Que segundo R, ocorreram, pelo menos, 3 (três) vezes. Afirmou que não se recorda de mais detalhes, pois a atuação do conselho é bem inicial e que encaminharam os menores aos órgãos competentes.” Mídia constante no ev. n. 4. A testemunha M, Psicóloga, afirmou em Juízo: “Eu atendi algumas vezes o R. Não tivemos muito seguimento no acompanhamento dele, porque ele se fechou muito. Sempre que se tratava do assunto ele demonstrava uma raiva muito grande e que se fosse para tratar disso ele não viria mais. Demonstrou muita revolta sobre o genitor e os olhos sempre lacrimejando.” Mídia constante no ev. n. 4. As testemunhas S M e J F, arroladas pela defesa, nada trouxeram para o esclarecimento dos fatos. Os depoentes apenas trouxeram informações abonativas de conduta do réu. Mídias constantes nos evs. n. 5 e 65. A testemunha S V de S, afirmou em Juízo: “Cheguei em São Luís e contratei a Daniela para que me ajudasse nos cuidados. Ela trabalhou comigo 1 (um) ano até que essa história eclodiu. A Daniela levava periodicamente os filhos para o trabalho. Depois de 1 (um) ano, os meninos não queriam mais frequentar a casa do pai e ambos se recusavam a ir. Até então o pai era idolatrado pelos meninos. Um dia eu questionei e o K me disse que não queria ir e ficou com o olho cheio de lágimas. Com essa situação eu falei para Daniela observar. Um dia eu fui levar um fardo de alimentos na Casa da Daniela e o K me chamou para entrar e me pediu para conversar com a mãe para que não os levassem mais até a residência do pai. Então eu perguntei porque, e ele me contou que o pai o colocava para masturbá-lo. E que segundo K, o pai o dava comprimidos para dormir e ficava com R, que deixava. Com essas informações, eu chamei a Daniela que logo foi e estava acompanhada de R. Que R contou que o pai estava fazendo besteiras com ele. Que foi penetrado várias vezes e que se ele não aceitasse, apanhava na cabeça e lhe falava que tinha ser forte e suportar. Declinou que antes dos fatos virem à tona, um dia R chegou em sua casa com muitas dores abdominais e o levou na farmácia para ser medicado. Afirmou que no dia que tomou conhecimento dos abusos, R lhe disse que aquele dia da farmácia o acusado tinha feito os abusos e que lhe deu boldo. R lhe disse que todas as vezes que fazia isso, saía uma gosma e que sentia muita dor de barriga no outro dia. Relatou que Daniela apresentou certa resistência em denunciar e que falou que o réu a mataria. Relatou que passaram-se duas semanas até que o Conselho Tutelar foi acionado por uma vizinha de Daniella, chamada Relda. Relatou que Karine lhe contou que também sofreu abusos do acusado, e que Daniella não a deixava expor os fatos.” Mídia ev. n. 6. Interrogado em Juízo, o acusado exerceu seu direito de permanecer em silêncio, afirmando apenas que trata-se de uma armação da genitora dos infantes. [...]

Em sede de apelação, a defesa do agravante suscitou a nulidade da sentença, aduzindo que, antes mesmo da prolação do título condenatório, teria juntado escritura pública em que a irmã materna das vítimas (K A de S) se retratava das acusações que tinha promovido contra o recorrente em outro processo, noticiando, ainda, que as vítimas nesta ação penal mentiram sobre tais acontecimentos. Para melhor compreensão, transcrevo o que constou da preliminar na apelação (fls. 654/655):

[...] 1. RETRATAÇÃO DAS VÍTIMAS. ANULAÇÃO DO FEITO PARA COLHEITA DE NOVO DEPOIMENTO. Antes mesmo de que fosse proferida a sentença no presente feito, o então advogado de defesa juntou, à movimentação nº 61, uma escritura declaratória feita por K A de S, irmã materna das vítimas do presente feito e que também protagoniza, como vítima, outra ação penal na qual acusa seu padrasto, o ora recorrente, de crimes contra a dignidade sexual. Em tal escritura declaratória, K, agora maior de idade, retrata de suas acusações contra o recorrente nos autos de nº 0168271-37.2016.8.09.0146, ao tempo em que fala que ela e seus meio-irmãos (as vítimas deste feito), todos eles, mentiram sobre tais acontecimentos. Não fora possível à família reduzir a termo a retratação das vítimas no presente feito em razão de elas serem menores de idade, o que impede a lavratura de uma escritura declaratória, mas não impede que sejam elas ouvidas novamente para - agora mais velhas - possam falar abertamente, com maior maturidade e credibilidade, as razões pelas quais mentiram na instrução deste feito. A família encaminhou a esta defesa, a fim de revestir de legitimidade tais declarações, um documento assinado pelas vítimas no qual eles promovem a retratação. Assim sendo, havendo dúvidas em relação às provas que fundam a condenação do recorrente, a defesa requer seja a sentença anulada e sejam os autos devolvidos ao primeiro grau para que, em contraditório judicial, a retratação das vítimas possa ser colhida e sopesada pela magistrada a quo, a fim de que, ao fim do processo, possa ela prolatar nova sentença. [...]

Em sede de contrarrazões, o órgão ministerial postulou pela manutenção da acusação, enquanto que o assistente da acusação consignou que as cartas de retratação não serviam de nenhuma forma para fundamentar uma absolvição, sendo necessário que as vítimas fossem submetidas a novas avaliações psicológicas para melhor apuração dos fatos (fl. 699). Distribuído o recurso no âmbito do Tribunal a quo, o Relator determinou a conversão do julgamento em diligência para que as vítimas e a genitora fossem reinquiridas, especificando as condições (fls. 711/713 - grifo nosso):

[...] Na espécie, analisando cautelosamente os presentes autos, verifico, salvo melhor juízo, a necessidade da conversão do julgamento do feito em diligência, a fim de determinar que o juízo a quo reinquira as vítimas anteriormente ouvidas (em sede de depoimento especial), a fim de esclarecer pontos relevantes sobre a retratação, em tese, escrita por elas (mov. 104), bem como ouvir, novamente, a genitora dos menores. Justifica-se. Sabe-se que tratando-se de crime sexual praticado contra menor de 14 anos, como no caso, a vulnerabilidade é presumida, independente bem como de eventual consentimento da vítima (Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.). Nesse contexto, importante frisar que estamos diante de um caso complexo, não só pela idade das vítimas (que atualmente possuem 15 anos), como também por todo o contexto fático (envolve o ascendente dos ofendidos), situação que denota na necessidade de uma maior atenção por parte dos julgadores, principalmente no que se refere as provas produzidas e se estas estão aptas a indicar a autoria e materialidade delitiva do acusado. Com isso, é importante registrar que durante toda a instrução processual os menores foram ouvidos por equipe especializada (na presença de psicólogos) e, estes em seus relatórios, concluíram que é elevada a probabilidade de que as crianças tenham de fato vivenciado as situações de violência relatadas (estupros) - mov. 3, fls. 110/131. Ressalta-se que durante a instrução dos autos, foram juntados diversos relatórios que enunciam o abalo psicológico dos ofendidos e, ainda, da genitora destes (mov. 3, fls. 161/162, 216, 217/218). Além disso, tem-se que diversos testemunhos judicializados (movs. 4 a 7), de certa forma, corroboram com a tese acusatória. Todavia, não obstante todo o narrado, já em sede recursal, o apelante juntou, em conjunto com as razões recursais, uma possível retratação das vítimas, já que o teor do documento aduz que os ofendidos teriam faltado com a verdade para poder prejudicar seu genitor, o que se contrapõe a todas as provas produzidas durante a instrução criminal. É evidente que não se pode acreditar tão somente em uma folha de papel escrita, já que até mesmo pairam dúvidas sobre sua autenticidade (se realmente foram escritas pelos ofendidos e, em caso afirmativo, se a escrita foi por “livre e espontânea vontade” ou se realizada alguma coação em desfavor das vítimas), razão pela qual a reinquirição destas e da genitora, perante o juízo a quo, com a presença de psicólogos habilitados para tanto, torna-se manifestamente necessária, tudo isso com a nítida intenção de ter esclarecidas quaisquer dúvidas que poderiam surgir no julgamento do caso. Neste ponto, importante destacar que o que se tenta com a respectiva diligência é evitar injustiças, seja condenando o acusado sem que ele tenha cometido o delito, seja absolvendo o apelante exclusivamente por uma única “prova” (retratação), descredibilizando todos os relatórios confeccionados por profissionais especializados juntados aos autos. Ao teor do exposto, nos termos do artigo 616 do Código de Processo Penal c/c artigo 138, inciso XXI, do Regimento Interno do Estado de Goiás, determino a conversão do julgamento do feito em diligência e, assim, devolvo os autos à origem para que, no prazo de 60 (sessenta) dias, em caráter meramente supletivo, seja realizada a reinquirição das vítimas, bem como da sua genitora, a fim de dirimir dúvidas acerca da retratação juntada no mov. 104. Destaco, por fim, que a reinquirição deverá ser realizada na presença de psicólogos do quadro de servidores do Poder Judiciário do Estado de Goiás, requisitando-se a respectiva junta médica um servidor para acompanhar a realização da solenidade, devendo o profissional auxiliar na elaboração das perguntas aos ofendidos. Realizada a audiência, deverão os profissionais presentes confeccionarem um relatório complementar conclusivo acerca dos depoimentos prestados, devendo, antes dos autos serem devolvidos a esta instância, ser dada nova vista às partes.

Com o retorno dos autos ao primeiro grau de jurisdição, o Juízo processante determinou que a diligência fosse cumprida pela Junta Médica do Poder Judiciário, tendo aquele órgão recusado praticar o ato, sob o argumento de que seria de incumbência da Equipe Interprofissional Forense da 10ª Região (comarca de Iporá/GO), circunstância essa que culminou na devolução dos autos ao Tribunal a quo, tendo o Relator autorizado que o ato fosse realizado pelo órgão indicado (fls. 726/727).

Em primeira instância, foi efetivada a oitiva das vítimas e da genitora por analista judiciário (assistente social), que resultou na elaboração do relatório juntado às fls. 742/747. Cientificado do ato, a defesa manifestou discordância com as condições em que a oitiva foi realizada, pugnando pela renovação do ato e, subsidiariamente, pela absolvição do réu considerando o teor do relatório apresentado (fls. 770/774).

Após tramite regular, a apelação foi levada a julgamento, sendo o apelo desprovido. Do aresto, transcrevo o excerto do voto condutor que analisou o teor do relatório apresentado e sua repercussão na imputação (fls. 811/813):

[...] Nesse contexto, descabida a tese absolutória fundada na retratação extrajudicial das vítimas após a prolação da sentença condenatória (mov. 104), e no novo Relatório Social – Equipe Interprofissional (mov. 148), contendo novos relatos das vítima e da genitora. Isto porque, a retratação extrajudicial das vítimas após a sentença não tem valor probante, pois contraria o devido processo legal. Outrossim, o laudo psicológico complementar coligido à movimentação 123 também não é suficiente para afastar a responsabilidade penal do apelante. Infere-se dos autos que a Equipe Interprofissional Forense da 10ª Região Judiciária procedeu à nova escuta especializada das vítimas e à nova entrevista da genitora, confeccionando relatório complementar. As vítimas R. A. S. e K. A. S., atualmente com 15 anos, desmentiram os fatos relatados na primeira escuta, afirmando que foram convencidos e instruídos pela irmã mais velha a revelarem falsamente as situações de abuso sexual para prejudicar o genitor. Por sua vez, D A de S, genitora das vítimas, disse não acreditar nos abusos sexuais inicialmente relatados pelos filhos, afirmando enfrentar desafios para cuidar dos adolescentes, os quais foram afastados da comunidade escolar, vêm praticando atos infracionais, burlando as regras e descumprindo as medidas socioeducativas impostas. Asseverou que o pai deveria participar da vida dos filhos, especialmente por sua condição financeira favorável a garantir-lhes uma vida melhor. A assistente social, Ana Angelyk da Veiga Jardim B. Santos, concluiu que os adolescentes sofreram "um tipo de violência silenciosa e não velada quando foram expostos a revelar um abuso que atualmente desmentem. Segundo disseram, contaram à profissional responsável pela primeira escuta, situações implantadas por terceiros, com o fim último de prejudicar o genitor" (mov. 148). Entretanto, a retratação das vítimas e da genitora, de forma contraditória e isolada das demais provas judicializadas, ouvidos anos depois de terem revelado o fato delituoso e quem o praticou não constitui elemento hábil a isentar o réu, já que incoerente com os demais elementos do conjunto probatório jurisdicionalizados. Sobre o tema, a jurisprudência: [...] Ora, sabido que o abuso sexual intrafamiliar é uma dinâmica complexa e perturbadora, que envolve ameaças, barganhas, sigilo, dependência financeira e emocional. Como bem salientado pela Promotora de Justiça (mov. 152) “a retratação da vítima, em casos de violência sexual intrafamiliar, não é algo incomum, inclusive em feitos que já foram albergados pela coisa julgada. Tal fenômeno pode ocorrer por nutrir a vítima diversos sentimentos em relação ao próprio abusador, ou por experimentar culpa pela degradação familiar que a revelação do estupro causou, na maioria das vezes, com o afastamento e segregação do provedor da família.” Destarte, os novos depoimentos se mostram insuficientes a desconstituir aqueles já prestados no curso da instrução e incapazes de desfazer a sentença condenatória.

Nesse cenário, me parece nítida a ilegalidade. É certo que o art. 616 do Código de Processo Penal traduz uma faculdade do julgador de segunda instância nos recursos de apelação, em determinar que o feito seja baixado em diligência ou não. Assim, o Tribunal poderá reinquirir testemunhas, interrogar novamente o réu e determinar outras diligências se assim achar conveniente (EDcl no AgRg no HC n. 748.014/DF, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 27/4/2023, DJe de 2/5/2023 - grifo nosso).

Sucede que, determinada a nova oitiva das vítimas com base nessa previsão legal, seria de rigor a observância do rito previsto no art. 12 da Lei n. 13.431/2017, inclusive para fins de oportunizar o efetivo contraditório por parte do órgão acusatório e da defesa (grifo nosso):

Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento: I - os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais; II - é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos; III - no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo; IV - findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco; V - o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente; VI - o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.

No caso, não foi realizada nova audiência, mas apenas uma entrevista por um único servidor, sem participação das partes e em manifesto descompasso com as diretrizes estabelecidas na norma em comento, de modo que me parece nítida a nulidade do ato e daqueles que o sucederam, inclusive o julgamento da apelação. Sobre a possibilidade de novo depoimento especial, confira-se:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO EM AÇÃO PENAL. DEPOIMENTO ESPECIAL DE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL. VONTADE EXPRESSA EM PRESTAR NOVO DEPOIMENTO. REVITIMIZAÇÃO. AUSÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. I. Caso em exame1. Agravo regimental interposto pelo MPF contra decisão que deferiu pedido de reconsideração do réu e determinou a expedição de Carta de Ordem para realização de novo depoimento especial de vítima de violência sexual. 2. A vítima, agora com 19 anos, manifestou expressamente o desejo de prestar novo depoimento, apesar de já ter sido ouvida em produção antecipada de prova quando tinha 16 anos. II. Questão em discussão3. A questão em discussão consiste em saber se é possível a realização de novo depoimento especial da vítima, maior de idade, que expressou desejo de ser ouvida novamente, sem que isso configure revitimização. III. Razões de decidir4. A decisão considerou que a manifestação de vontade da vítima, maior e capaz, deve ser respeitada, resguardando sua autonomia e permitindo o novo depoimento, desde que observadas as diretrizes da Lei n. 13.431/2017. 5. A potencial revitimização e o risco de violência institucional foram ponderados, mas a vontade expressa da vítima em prestar novo depoimento foi considerada preponderante. 6. A decisão destacou que a fase instrutória da ação penal é essencial para a busca da verdade e que a manifestação de vontade da vítima não pode ser presumida como viciada. IV. Dispositivo e tese7. Agravo regimental desprovido. Tese de julgamento: "1. A manifestação de vontade expressa da vítima maior de idade e capaz em prestar novo depoimento deve ser respeitada, podendo ser observadas as diretrizes da Lei n. 13.431/2017." Dispositivos relevantes citados: Lei n. 13.431/2017, arts. 3º, parágrafo único, 4º, IV, 9º, 11, § 2º, 12. (AgRg no RCD na APn n. 1.075/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Corte Especial, julgado em 4/12/2024, DJEN de 9/12/2024)

Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental, mas concedo habeas corpus de ofício, a fim de declarar a nulidade do ato que resultou na elaboração do relatório juntado às fls. 742/747 e, por conseguinte, do acórdão que julgou a apelação criminal, determinando que seja efetivada a oitiva das vítimas e da genitora em audiência, inclusive com observância do rito previsto no art. 12 da Lei n. 13.431/2017.



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