STJ Jun25 - Dosimetria Irregular -Embriagues ao Volante - Bis In Idem :(i) circunstâncias com bis in idem na forma qualificada do art. 303, §2º, do CTB; (ii) Consequências com bis in idem - lesão grave, somada à influência do álcool, constitui elemento inerente ao tipo qualificado do artigo 302, § 2º do CTB

 Carlos Guilherme Pagiola

DECISÃO

Trata-se de recurso especial interposto por João Henrique Lima Beserra, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição da República, contra o v. acórdão prolatado pelo eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas.

Consta dos autos que o ora recorrente foi condenado como incurso nas sanções do art. 303, § 2º, da Lei nº 9.503/97, à pena de 04 (quatro) anos de reclusão, em regime aberto, além da proibição de obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor pelo mesmo período, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos (fls. 168-180).

A decisão foi mantida pelo Tribunal de origem (fls. 250-255). Nas razões do recurso especial, interposto com fundamento no art. 105, inciso III, alínea “a” da Constituição Federal, a parte recorrente sustenta que o acórdão violou o artigo 59 do Código Penal, ao manter a valoração negativa das circunstâncias judiciais referente às consequências e circunstâncias do crime com base em fundamentação inidônea.

Argumenta que as circunstâncias do crime foram valoradas com base no estado psicomotor alterado do recorrente e na invasão de local de circulação de pedestre, o que seria inerente ao tipo penal previsto no art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro, configurando bis in idem (fls. 261-269).

O recorrente requereu o provimento do recurso especial para reformar o acórdão, redimensionando a dosimetria da pena mediante o afastamento da valoração negativa das vetoriais das circunstâncias e das consequências do crime, fixando a pena-base em seu patamar mínimo legal.

Em caso de manutenção das circunstâncias negativas, pleiteia a aplicação do critério de aumento de 1/6 sobre a pena mínima ou 1/8 entre a pena mínima e máxima para cada vetorial valorada negativamente. Apresentadas as contrarrazões (fls. 275-278), o recurso foi admitido na origem e os autos encaminhados a esta Corte Superior (fls. 281-283).

É o relatório. DECIDO.

Cinge-se a controvérsia a analisar a alegação de violação ao artigo 59 do Código Penal, suscitada pelo recorrente João Henrique Lima Beserra, no que tange à valoração das circunstâncias judiciais referentes às circunstâncias e consequências do crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor.

O recorrente sustenta que o Tribunal de Justiça de Alagoas manteve a valoração negativa dessas circunstâncias com base em fundamentação inidônea, configurando bis in idem, uma vez que os elementos utilizados para tal valoração já foram considerados na qualificadora do crime e nas causas de aumento de pena.

Ademais, a defesa argumenta que a fundamentação utilizada para valorar negativamente as consequências do crime é genérica e não especifica os prejuízos não suportados pelo recorrente, sendo que o valor de reparação dos danos já foi fixado na sentença.

Por fim, o recorrente pleiteia o redimensionamento da dosimetria da pena, fixando-a em seu patamar mínimo legal ou, subsidiariamente, aplicando o critério de aumento de 1/6 sobre a pena mínima ou 1/8 entre a pena mínima e máxima para cada vetorial valorada negativamente.

Pois bem.

Inicialmente, cumpre observar que a individualização judicial da pena, embora deva observar os parâmetros e limites estabelecidos pelo legislador, consiste em atividade que está inserida no âmbito de discricionariedade do magistrado.

Este, ao sopesar as circunstâncias do caso examinado, aplica a sanção que julgar mais adequada, em decisão devidamente fundamentada, atendendo, assim, ao livre convencimento motivado.

Por estar estreitamente vinculada à analise de provas e fatos, providência que compete às instâncias ordinárias, às Cortes Superiores cabe tão somente avaliar se o julgador, ao efetuar a dosimetria da pena, atuou dentro da margem legal e constitucional.

Em outras palavras, se a reprimenda desbordou dos limites da proporcionalidade e se a decisão apresenta motivação idônea. Não se trata de uma revisão da pena estabelecida pelo magistrado, portanto, mas apenas do seu controle de legalidade (REsp n. 1.887.511/SP, Terceira Seção, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 1/7/2021).

Nos termos dos arts. 59 e 68 do Código Penal, na primeira fase da dosimetria da reprimenda, o juiz examinará as circunstâncias judiciais, quais sejam, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima, e, observando o princípio da proporcionalidade e os limites mínimo e máximo previstos para o tipo penal, fixará a pena-base necessária e suficiente para reprovação e prevenção do delito.

No caso dos autos, a controvérsia se restringe a examinar as circunstâncias judiciais relativas às circunstâncias do crime e consequências do delito. O recorrente foi condenado em primeira instância pela prática do crime lesão corporal culposa na direção de veículo automotor qualificada, à reprimenda de 04 (quatro) anos de reclusão, em regime aberto.

Ao analisar as circunstâncias judiciais do delito, o juízo de primeiro grau negativou as vetoriais relativas às circunstâncias do crime e consequências do delito. A primeira foi considerada desfavorável porque o réu, no momento do cometimento da conduta, se encontrava com o estado psicomotor alterado e invadiu a calçada, local destinado aos pedestres, e destruiu uma parede.

A segunda, devido a todos os prejuízos causados à vítima e não suportados pelo réu (fl. 175).

O Tribunal de origem ratificou o entendimento do magistrado primevo, nos seguintes termos (fls. 296-298, grifei):

"No caso dos autos, verifica-se que foi valorada em desfavor do apelante os vetores das circunstâncias do crime e consequências. Quanto às circunstâncias do crime, em sua fundamentação, agiu corretamente o juiz sentenciante, ao descrever como se deu a prática da ação criminosa, as condições e a atitude empregada pelo ora recorrente durante a realização da conduta, dando ênfase ao modus operandi praticado pelo recorrente. Portanto, mantenho a valoração desfavorável ao apelante da circunstancia judicial ora analisada. Em relação às consequências do crime, mesmo sucinto, entendo idônea a valorazação utilizada pelo juiz sentenciante, uma vez que o delito gerou na vítima traumas físicos, rompimento do ligamento do joelho e dores frequentes. Assim, mantenho a sentença, nesse particular. Desse modo, agiu acertadamente o juiz singular ao fixar a pena-base em 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de reclusão. "

No que tange à circunstância judicial das circunstâncias do crime, como cediço, essas se referem ao contexto de execução da infração penal, e nesse ponto o recurso merecer prosperar.

Isso porque, conforme exposto acima, o juízo primevo a negativou com fundamento no estado psicomotor alterado do acusado e o fato de ter invadido a calçada no cometimento da conduta.

Não obstante, esses mesmos elementos foram usados tanto para imputar ao réu a forma qualificada do crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (alteração psicomotora em função da influência de álcool, somado à lesão grave - art. 303, §2º, do CTB), quanto para majorar o crime na terceira fase da pena (praticar o delito na calçada - art. 302, §1º c/c art. 302, §1º, inciso II, todos do CTB).

Nesses termos, resta cristalina a ocorrência do malfadado bis in idem, uma vez que os mesmos elementos do crime foram utilizados tanto para exasperar a pena em mais de uma fase da dosimetria, quanto para qualificar o tipo, incidindo intervalo de pena mais grave, o que demonstra a ilegalidade do decisum a autorizar a atuação desta Corte. No mesmo sentido, mutatis mutandis:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA DA PENA. BIS IN IDEM. OMISSÃO. AUSÊNCIA. MERO INCONFORMISMO. EMBARGOS REJEITADOS. 1. O reconhecimento de violação do art. 619 do CPP pressupõe a ocorrência de omissão, ambiguidade, contradição ou obscuridade tais que tragam prejuízo à defesa. A assertiva, no entanto, não pode ser confundida com o mero inconformismo da parte com a conclusão alcançada pelo julgador, que, a despeito das teses aventadas, lança mão de fundamentação idônea e suficiente para a formação do seu livre convencimento. 2. O acórdão embargado não foi omisso, haja vista que analisou, de maneira clara e devidamente fundamentada, os motivos pelos quais a Corte estadual incorreu no inadmissível bis in idem na dosimetria da pena, com o destaque de que foram sopesados os mesmos elementos - natureza e quantidade de drogas apreendidas - tanto para fins de exasperação da pena-base quanto para justificar a incidência da minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 no patamar de 1/6. 3. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no AgRg no HC n. 589.453/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 3/8/2021, DJe de 13/8/2021.)

Nesses termos, entendo pela revisão do acórdão. Seguindo, quanto às consequências do crime, essas dizem respeito à extensão do dano produzido pela prática criminosa e a sua repercussão em relação ao ofendido. Nessa linha, o Tribunal, ao valorar referia circunstância, o fez com base no fundamento de que "o delito gerou na vítima traumas físicos, rompimento do ligamento do joelho e dores frequentes".

Não obstante, o juízo sentenciante, ao examinar a tipicidade do delito, assim discorreu:

"Conforme relatado, é atribuída ao acusado a prática do crime do crime supracitado, convindo trazer à baila a transcrição da respectiva capitulação legal: Código de Trânsito Brasileiro - Lei Nº 9.503/1997 [...] Art. 303 Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. [...] § 2o A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima. [...] No caso dos autos, a versão do réu não trouxe aos autos elementos capazes de tornar sem efeito as provas produzidas pela acusação, as quais, ao ver desta Magistrada, comprovam tanto a materialidade quanto a autoria do crime previsto pelo art. 303, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro. A conduta típica presente no caput do artigo 303 [s.i.c.] ficou comprovada através dos laudos de fls. 31, e 82-85, que comprovam a ruptura do ligamento cruzado do joelho da vítima, o que causou sequelas que perduraram mais de 30 (trinta) dias, atrapalhando as suas funções habituais e convivência cotidiana, deflagrando a gravidade da lesão, nos termos do art. 129, § 1º, I, Código Penal. Em relação à alteração da capacidade psicomotora por efeito de álcool ou substâncias psicoativas, o requisito restou preenchido, tendo em vista que o auto de apresentação e apreensão (fl. 13) demonstra que o teste etílico realizado pelo réu apontou o teor alcoólico de 1,02 mg/L (um inteiro e dois centésimos) em seus alvéolos pulmonares, o que de pronto caracteriza a alteração da capacidade motora do réu, já que o art. 306 § 1º, I ,do CTB, define que a alteração da capacidade motora ocorre a partir da constatação, através do etilômetro, de 0,3 mg/L (três décimos)."

Com efeito, de fato, o delito gerou na vítima traumas físicos, rompimento do ligamento do joelho e dores frequentes, sendo reconhecida a lesão grave do art. 129, §1º, do Código Penal.

Não obstante, a lesão grave, somada à influência do álcool, constitui elemento inerente ao tipo qualificado do artigo 302, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro - a qual foi considerada no exame da tipicidade pelo juízo primevo - razão pela qual não pode ser usada para negativar as consequências do crime, merecendo o acórdão reforma a fim de se afastar também tal circunstância judicial da dosimetria da pena.

Conforme orientação jurisprudencial consolidada do Superior Tribunal de Justiça, não é possível utilizar elementos constitutivos ou qualificadores do próprio tipo penal para exasperar a pena-base nas circunstâncias judiciais, sob pena de configurar indevido bis in idem.

A gravidade intrínseca do delito já foi devidamente valorada pelo legislador ao estabelecer o preceito secundário mais severo para a conduta qualificada, não sendo admissível sua dupla consideração na individualização da pena. Dessarte, decoto também a negativação das consequências do crime, na primeira fase do cálculo da pena. Mantidos os demais termos da condenação estabelecidos pelas instâncias de origem, passo ao redimensionamento da pena aplicada ao réu, observando o sistema trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal.

PRIMEIRA FASE

Analisando as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal: Em atenção ao princípio do ne bis in idem e à jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, AFASTO a valoração negativa das circunstâncias do crime, uma vez que os mesmos elementos utilizados para sua negativação já são considerados na terceira fase da dosimetria como causa de aumento de pena. Igualmente, AFASTO a valoração negativa das consequências do crime, tendo em vista que a lesão grave por si só já constitui elemento do tipo qualificado previsto no artigo 303, §2º, do Código de Trânsito Brasileiro, não podendo servir para negativar as consequências do delito sob pena de bis in idem. As demais circunstâncias judiciais (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e comportamento da vítima) foram consideradas neutras. Considerando todas as circunstâncias judiciais como neutras, fixo a pena-base no mínimo legal de 2 (dois) anos de reclusão e proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pelo mesmo período da pena privativa de liberdade.

SEGUNDA FASE

Mantenho a atenuante da confissão espontânea prevista no artigo 65, III, "d", do Código Penal. Contudo, em observância à Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece que "a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal", mantenho a pena no mínimo legal de 2 (dois) anos de reclusão e proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pelo mesmo período.

TERCEIRA FASE

Mantenho as causas de majoração previstas no artigo 302, § 1º, incisos I e III, do Código de Trânsito Brasileiro, conforme aplicadas nas instâncias de origem, de modo que fixo a pena definitiva em 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pelo mesmo período.

Isso posto, estabeleço ao condenado JOÃO XXXXXXXXXXXXA, a pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pelo mesmo período da pena privativa de liberdade.

REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA

Considerando a pena aplicada e as circunstâncias do caso, fixo o regime aberto para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE Presentes os requisitos legais, defiro a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, nos termos do artigo 44 do Código Penal, devendo as condições específicas ser definidas pelo Juízo da Execução. Ante o exposto, com fulcro no art. 255, § 4º, inciso III, do Regimento Interno do STJ, dou provimento ao recurso especial, para decotar as circunstâncias judiciais das circunstâncias e consequências do crime, na primeira fase da dosimetria da pena, a redimensionando para 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial aberto, e proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pelo mesmo período da pena privativa de liberdade, substituída a pena corporal por duas restritivas de direitos, mantidos os demais termos do acórdão. Publique-se. Intimem-se.

Relator

MESSOD AZULAY NETO

(STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 2178696 - AL (2024/0406806-4) RELATOR : MINISTRO MESSOD AZULAY NETO, Publicação no DJEN/CNJ de 02/06/2025)

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