STJ Jun25 - Estupro de Vulnerável - Concurso Material Afastado - Continuidade Delitiva Reconhecida
DECISÃO
Trata-se de agravo interposto por V C contra decisão do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL que não admitiu o recurso especial. O agravante foi condenado pela prática dos crimes tipificados no art. 217-A do Código Penal, às penas finais de 93 (noventa e três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de indenização por danos morais às vítimas no importe total de R$ 150.000,00 (fls. 205-217).
A 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça local deu parcial provimento ao apelo defensivo para reduzir a reparação mínima indenizatória para R$ 5.000,00 para cada vítima (fls. 348-359).
O agravante interpôs recurso especial, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, alegando negativa de vigência aos arts. 155 e 386, incisos V e VII, do Código de Processo Penal, por condenação baseada em provas insuficientes (fls. 366-378).
O recurso foi inadmitido na origem, por incidência da Súmula n. 7, STJ, que veda o reexame de provas, e das Súmulas n. 282 e 356, STF, por ausência de prequestionamento (fls. 408-411).
No presente agravo, a defesa sustenta, em síntese, que o recurso especial deveria ter sido admitido, tendo em vista que a matéria é de direito e não envolve reexame de provas, além de haver prequestionamento implícito (fls. 420-425).
O Ministério Público Federal apresentou parecer pelo não conhecimento do agravo (fls. 453-459)
. É o relatório. DECIDO.
Entendo que, no agravo, o recorrente rechaçou os fundamentos de inadmissão do apelo especial. Porém, o recurso especial não deve ser conhecido, uma vez que, como bem fundamentado pela Corte de origem, a impossibilidade de seguimento do recurso se deu com base na incidência da Súmula n. 7, STJ.
Todavia, no que tange à dosimetria da pena, verifico que houve aplicação indevida do concurso material, conforme voto vencido do Relator, uma vez que os crimes se deram nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e forma de execução, além de haver uma unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre eles (fl. 352):
"[...] Já o concurso material, no meu entendimento, deve mesmo ser afastado, pois os crimes se deram em condições de tempo, lugar e modo de execução que demonstram serem uns desdobramento dos outros. Nesse passo, não deixando de considerar que são três vítimas diversas e que os delitos foram praticados com violência presumida e real (pois as vítimas relataram que o réu as forçava e imobilizava, durante muitos dos episódios criminosos), deve ser reconhecida a continuidade delitiva, com a incidência do disposto no parágrafo único do art. 71 do CP. Em complemento, pela quantidade de vítimas e numerosidade excessiva de violações sexuais, o acréscimo decorrente é fixado no patamar máximo, elevando-se ao triplo a sanção aplicada ao fato mais grave. É nesses termos que estou mantendo a condenação do acusado, afastando somente o cúmulo material reconhecido na sentença. [...]".
Ressalto que tal entendimento está em sintonia com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que, afastada a aplicação do concurso material no caso concreto, possível a aplicação da fração máxima de majoração.
Nesse sentido:
"RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. PENAL. ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL. CONTINUIDADE DELITIVA. NÚMERO INDETERMINADO DE ATOS SEXUAIS. FRAÇÃO DE MAJORAÇÃO DA PENA. CRIMES PRATICADOS POR LONGO PERÍODO DE TEMPO. RECORRÊNCIA DAS CONDUTAS DELITIVAS. PRÁTICA INEQUÍVOCA DE MAIS DE 7 (SETE) REPETIÇÕES. POSSIBILIDADE DE MAJORAÇÃO MÁXIMA. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL PROVIDO, COM FIXAÇÃO DE TESE REPETITIVA. 1. A continuidade delitiva, prevista no art. 71 do Código Penal, é instituto da dosimetria da pena concebido com a função de racionalizar a punição de condutas que, embora praticadas de forma independente, estejam inseridas dentro de um mesmo desenvolvimento delitivo. Por opção legislativa e critérios de política criminal, a lei penal afasta excepcionalmente a aplicação do concurso material e impõe uma única punição àqueles casos nos quais os crimes subsequentes possam ser tidos como continuação de um primeiro delito, de acordo com a análise das condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes. 2. A compreensão jurisprudencial uníssona desta Corte Superior firmou-se no sentido de que, diante da prática de apenas 2 (duas) condutas em continuidade, deve-se aplicar o aumento mínimo previsto no art. 71, caput, do Código Penal, qual seja, 1/6 (um sexto). A partir desse piso, a fração de aumento deve ser aumentada gradativamente, conforme o número de condutas em continuidade, até se alcançar o teto legal de 2/3 (dois terços), o que ocorre a partir da sétima conduta delituosa. 3. A adoção do critério referente ao número de condutas praticadas suscita questões específicas nos crimes de natureza sexual, especialmente no delito de estupro de vulnerável, em razão do triste contexto fático que frequentemente se constata nestes crimes. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2023 acerca da violência sexual infantil, ao longo de 2022 houve, no Brasil, 56.820 registros policiais de estupro de vulnerável. Desse total, 72,2% dos casos ocorreram na própria residência da vítima e em 71,5% dos casos o estupro foi cometido por um familiar. 4. A proximidade que o autor do delito de estupro de vulnerável normalmente possui com a vítima, a facilidade de acesso à sua residência e a menor capacidade que os vulneráveis possuem de se insurgir contra o agressor são condições que favorecem a repetição silenciosa, cruel e indeterminada de abusos sexuais. Não raras vezes, cria-se um ambiente de submissão perene da vítima ao agressor, naturalizando-se a repetição da violência sexual como parte da rotina cotidiana de crianças e adolescentes. Nessas hipóteses, a vítima, completamente subjugada e objetificada, não possui sequer condições de quantificar quantas vezes foi violentada. A violência contra ela deixou ser um fato extraordinário, convertendo-se no modo cotidiano de vida que lhe foi imposto. 5. A torpeza do agressor, que submeteu a vítima a abusos sexuais tão recorrentes e constantes ao ponto de tornar impossível determinar o número exato de suas condutas, evidentemente não pode ser invocada para se pleitear uma majoração menor na aplicação da continuidade delitiva. Nos crimes de natureza sexual, o critério jurisprudencial objetivo para a fixação da fração de majoração na continuidade delitiva deve ser contextualizado com as circunstâncias concretas do delito, em especial o tempo de duração da situação de violência sexual e a recorrência das condutas no cotidiano da vítima, devendo-se aplicar o aumento no patamar que, de acordo com as provas dos autos, melhor se aproxime do número real de atos sexuais efetivamente praticados. 6. No caso, a Corte estadual esclareceu que a vítima, com 10 (dez) anos de idade no início das condutas delitivas, foi submetida, por sua mãe e por seu padrasto, a recorrentes atos de natureza sexual, incluindo sexo oral, vaginal e anal, pelo período de 4 (quatro) anos. Estas circunstâncias fáticas tornam plenamente justificada a majoração da pena, em decorrência da continuidade delitiva, na fração máxima de 2/3 (dois terços). 7. Para os fins do art. 927, inciso III, c.c. o art. 1.039 e seguintes, do Código de Processo Civil, fixa-se a seguinte tese:"No crime de estupro de vulnerável, é possível a aplicação da fração máxima de majoração prevista no art. 71, caput, do Código Penal, ainda que não haja a delimitação precisa do número de atos sexuais praticados, desde que o longo período de tempo e a recorrência das condutas permita concluir que houve 7 (sete) ou mais repetições". 8. Recurso especial provido." ( REsp n. 2.050.195/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023.) "[...] 4. No tocante à continuidade delitiva, a exasperação da pena será determinada, basicamente, pelo número de infrações penais cometidas, parâmetro este que especificará no caso concreto a fração de aumento, dentro do intervalo legal de 1/6 a 2/3. Nesse diapasão esta Corte Superior de Justiça possui o entendimento consolidado de que, em se tratando de aumento de pena referente à continuidade delitiva, aplica-se a fração de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5, para 3 infrações; 1/4 para 4 infrações; 1/3 para 5 infrações; 1/2 para 6 infrações e 2/3 para 7 ou mais infrações. 5. No que tange à continuidade delitiva específica, descrita no art. 71, parágrafo único, do Código Penal, além daqueles exigidos para aplicação do benefício penal da continuidade delitiva simples, são concomitantemente requisitos da modalidade específica que os crimes praticados: I) sejam dolosos; II) realizados contra vítimas diferentes; e III) cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. 6. Nos crimes sexuais envolvendo vulneráveis, torna-se bastante complexa a prova do exato número de crimes cometidos. Tal imprecisão, contudo, não deve levar o aumento da pena ao patamar mínimo. Especialmente quando o contexto apresentado nos autos evidencia que os abusos sexuais foram praticados por diversas vezes e de forma constante, até por que perpetrados pelo tio-avô da vítima, em ambiente de convívio familiar, sendo impossível precisar exatamente a quantidade de ofensas sexuais. 7. Na hipótese, as instâncias ordinárias aumentaram corretamente a reprimenda pelo triplo, após considerar a reiteração de crimes de estupro ao longo de meses contra vítimas diversas. 8. Agravo regimental desprovido." ( AgRg no HC n. 706.537/RJ, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 17/12/2021.) "PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRETENSÃO PELA ABSOLVIÇÃO. REEXAME FÁTICO DOS AUTOS. INVIÁVEL EM SEDE DE HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA. PRESENÇA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. DEVIDO O AFASTAMENTO DO CONCURSO MATERIAL E APLICAÇÃO DA CONTINUIDADE DELITIVA. 1. Como bem colocado no voto vencido, que trouxe, inclusive, precedente desta Corte Superior, o fato de o crime ter sido cometido contra vítimas diferentes não impede seja reconhecida a forma continuada, tendo em vista o art. 71, parágrafo único, do Código Penal, que cita vítimas diferentes. Assim, é possível reconhecer a continuidade delitiva na presente hipótese, uma vez que os crimes são da mesma espécie e foram cometidos nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução. 2. Concedo a ordem para afastar o concurso material de crimes entre as vítimas diversas, reconhecer a continuidade delitiva e redimensionar a pena final para 24 anos de reclusão, em regime fechado, mantidos os demais fundamentos do acórdão hostilizado."( HC n. 390.230/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 27/2/2018, DJe de 8/3/2018.)
Portanto, entendo que deve ser concedida, de ofício, ordem de habeas corpus, a fim de afastar o concurso material entre os delitos e aplicar a continuidade delitiva. Ante o exposto, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial, nos termos do art. 253, parágrafo único, inciso II, alínea a, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, mas concedo a ordem de habeas corpus, de ofício, para afastar o concurso material e redimensionar a pena para 56 (cinquenta e seis) anos de reclusão em regime fechado, mantidos os demais termos da condenação. Publique-se. Intimem-se.
Relator
MESSOD AZULAY NETO
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