STJ Jun25 - Dosimetria - Estupro de Vulnerável - Critério de aumento art. 71, parágrafo único do CP afastado para aplicar a continuidade simples (art. 71, caput, do Código Penal) - não cabimento crimes com violência presumida
DECISÃO
Cuida-se de agravo de P C L contra decisão proferida no TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS que inadmitiu o recurso especial interposto com fundamento no art. 105, III, alínea "a", da Constituição Federal, contra acórdão proferido no julgamento da Apelação Criminal n. 1.0000.23.217848-3/001.
Consta dos autos que o agravante foi condenado pela prática do delito tipificado no art. 217-A do CP (estupro de vulnerável), por quatro vezes, na forma do art. 71, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro (crime continuado), à pena de 18 anos de reclusão, em regime inicial fechado (fls. 1483/1484).
Recurso de apelação interposto pela defesa foi parcialmente provido para reduzir a pena aplicada ao acusado ao patamar de 16 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado (fl. 1696). O acórdão ficou assim ementado:
"APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM CONTINUIDADE DELITIVA - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - DECLARAÇÕES DAS VÍTIMAS - RELEVÂNCIA - CONDENAÇÃO MANTIDA - REDUÇÃO DA PENA - NECESSIDADE PELO RECONHECIMENTO DA ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA (ART. 65, INC. III, “D”, DO CP) - ALTERAÇÃO DA REGRA DE UNIFICAÇÃO DAS REPRIMENDAS PELO CRIME CONTINUADO - INVIABILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. As declarações prestadas pela vítima, quando corroboradas por depoimentos testemunhais e pelas circunstâncias do caso concreto, são suficientes para autorizar a prolação de um édito condenatório, notadamente em crimes que são praticados, usualmente, de forma clandestina. 2. Na esteira da atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o acusado que admite a prática delitiva, ainda que parcialmente e com ressalvas, também tem direito subjetivo ao reconhecimento da atenuante prevista no art. 65, inc. III, “d”, do Código Penal, sobretudo se as suas declarações contribuíram para a formação da culpa. 3. A presunção de violência no crime de estupro de vulnerável é absoluta, porque, nestes casos, considera-se que as vítimas que não atingiram a maioridade não agem livremente ao dirigir seus estímulos volitivos ao mundo sensível, de sorte que, eventual consentimento, porquanto racionalmente irrefletido, equivale, eticamente, à prática sexual forçada, mediante violência ou grave ameaça. 4. Constatando-se que o acusado, em circunstâncias análogas de tempo, espaço e modo de execução, praticou uma sucessão de crimes dolosos da mesma espécie, contra vítimas diferentes, mediante emprego de violência (ainda que presumida), e verificando-se, ainda, a existência de circunstâncias judiciais desabonadoras (art. 59 do Código Penal), entende-se perfeitamente possível a aplicação da regra de unificação prevista no art. 71, parágrafo único, do Estatuto Repressivo. " (fl. 1672)
Em sede de recurso especial (fls. 1706/1710), o recorrente apontou violação ao art. 71 do CP, porque ao redimensionar a dosimetria da pena, o TJ afastou a valoração negativa do vetor consequências na primeira fase do cálculo, o que deveria refletir necessariamente na terceira fase no tocante à majoração decorrente da continuidade delitiva específica.
Além disso, observou que o recorrente foi condenado por ter praticado delito com violência presumida e não violência real, o que afasta a incidência do parágrafo único do art. 71 do CP.
Requer a revisão da dosimetria da pena a fim de decotar a majorante específica do artigo 71, parágrafo único, do Código Penal ou, caso assim não se entenda, aplicar o aumento de pena na fração de 1/4, diante da quantidade de vítimas envolvidas.
Contrarrazões do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS (fls. 1714/1716).
O recurso especial foi inadmitido no TJ em razão de óbice da Súmula n. 283 (fls. 1719/1723). Em agravo em recurso especial, a defesa impugnou o referido óbice (fls. 1729/1737).
Contraminuta do Ministério Público (fls. 1742/1745). Os autos vieram a esta Corte, sendo protocolados e distribuídos. Aberta vista ao Ministério Público Federal, este opinou pelo não conhecimento do agravo (fls. 1767/1772).
É o relatório. Decido.
Atendidos os pressupostos de admissibilidade do agravo em recurso especial, passo à análise do recurso especial. Sobre a violação ao artigo 71, parágrafo único, do Código Penal, o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS redimensionou a dosimetria da pena nos seguintes termos do voto do relator:
"Registre-se que, em relação à pena imposta ao acusado, a Defesa pediu a sua redução, bem como a alteração da regra de unificação de penas alusiva à continuidade delitiva, da modalidade prevista no parágrafo único do art. 71 do Código Penal, para aquela descrita no “caput” do mesmo dispositivo legal. [...] 2.1 - Do concurso de crimes Neste ponto, observo que o acusado, mediante mais de uma ação, praticou diversos delitos de mesma espécie (art. 217-A do Código Penal), contra quatro vítimas diferentes (M. H. S., E. C. F. G., R. P. N. S. e M. E. F.), em circunstâncias praticamente idênticas de tempo, espaço e modo de execução. Dessa maneira, de rigor o reconhecimento da figura jurídica do crime continuado (art. 71 do Estatuto Repressivo). Nota-se, por oportuno, que, o MM. Juiz Singular aplicou, no caso concreto, a regra de unificação de penas prevista no art. 71, parágrafo único, do Digesto Penal, de forma a duplicar a reprimenda do sentenciado. Isso porque o art. 71, parágrafo único, do Código Penal estabelece que “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código”. De fato, na espécie, cuida-se de múltiplos crimes dolosos de mesma espécie (art. 217-A do Código Penal), praticados contra quatro (04) vítimas diferentes, e em cuja execução verificou-se a existência de violência, a qual, inclusive, deve ser presumida em caráter absoluto, assim como se passava em relação ao regramento do art. 224, alínea “a”, do Código Penal, conforme orienta o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: [...] E, malgrado a culpabilidade, os antecedentes, a personalidade e a conduta social do réu tenham sido consideradas neutras ou não desfavoráveis no ato sentencial, observo, em contraposição, que as circunstâncias da infração penal são graves, nos termos já expostos neste Voto. Assim, torna-se possível preservar a imposição do regramento normativo prescrito pelo art. 71, parágrafo único, do Código Penal, mesmo porque as provas constantes nestes autos demonstram a habitualidade do agente na prática dos crimes contra a dignidade sexual, enquanto exercia as funções de 'pai social' na instituição [...]. Além disso, é importante esclarecer que, ao contrário do que sustenta a Defesa em suas razões recursais, a aplicação da regra constante no art. 71, parágrafo único, do Código Penal, constitui a medida mais benéfica ao recorrente neste caso específico, porque, a laborar-se com a continuidade simples (prevista no caput do art. 71 do Estatuto Repressivo), a reprimenda final seria expressivamente mais severa. Explico: No caso em testilha, foram múltiplos os abusos sexuais em desfavor de cada uma das 4 (quatro) vítimas, e o tempo de duração da conduta criminosa (de aproximadamente dois anos, com hiatos entre as práticas infracionais) não autorizaria a incidência de apenas uma fração de aumento pelo crime continuado, mas, ao revés, determinaria a verificação da continuidade entre cada plexo delitivo (relativo a cada vítima destes autos) para, ao final, a consolidação da reprimenda ocorrer mediante incidência do concurso material de crimes (art. 69 do Código Penal). Diante desse contexto, afigura-se mais razoável e proporcional (à vista das particularidades do caso concreto), a dobra de uma das penas impostas ao réu (porque idênticas), de modo que concretizo a reprimenda no patamar definitivo de 16 (dezesseis) anos de reclusão.” (fls. 1693/1696).
O Juiz sentenciante, por sua vez, reconheceu a continuidade delitiva prevista no art. 71, parágrafo único, do CP, nos termos dos seguintes fundamentos:
"Reconheço o crime continuado, tendo em vista que o agente, mediante mais de uma ação, praticou quatro crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças, os subsequentes serão havidos como continuação do primeiro. Verifico, também, que os crimes praticados pelo acusado foram dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência e grave ameaça. Assim, a conduta do acusado se amolda ao art. 71, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro. Atento a culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do delito, duplicarei a pena de um dos crimes, observando as regras do parágrafo único, do art. 70 e do art. 75 do CP. [...]. Considerando que o réu é penalmente imputável e plenamente capaz de compreender a ilicitude de seu ato, sendo, portanto, exigível que agisse de forma diversa, a sua culpabilidade mostra-se evidente; quanto aos antecedentes criminais, é primário; quanto à sua personalidade e conduta social, estas não podem ser verificadas, mercê da ausência de elementos que a isto autoriza; os motivos do delito são aqueles inerentes ao próprio tipo penal; as circunstâncias do crime e as consequências do crime são desfavoráveis, já que resultou em abalos graves de ordem psicológica para além do tipo penal; o comportamento da vítima não incentivou nem facilitou a conduta do agente. Assim, atento às circunstâncias analisadas, fixo a pena-base um pouco acima do mínimo legal, em 09 (nove) anos de reclusão. Na segunda fase, ausentes agravantes ou atenuantes, mantenho as penas no mesmo patamar. Na terceira fase, ausente causas de aumento ou diminuição de pena ficam as penas concretizadas, então, em 09 (NOVE) ANOS DE RECLUSÃO. Conforme justificado acima, verificado a incidência do art. 71, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro, duplico a pena, passando a para 18 (DEZOITO) ANOS DE RECLUSÃO." (fls. 1483/1484)
Extrai-se do trecho acima que a Corte estadual, considerando que os crimes de estupro de vulnerável foram praticados contra vítimas distintas (4 vítimas) e mediante violência presumida, manteve a sentença para reconhecer o cabimento da continuidade delitiva específica (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) e não o critério da continuidade simples (art. 71, caput, do Código Penal).
O entendimento aplicado pelo Tribunal a quo não se coaduna com o desta Corte no sentido de que o reconhecimento do crime continuado específico (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) não tem cabimento quando o delito em questão é efetivado com violência presumida.
Nesse sentido (grifos acrescidos): AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CRIMES DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E ESTUPRO DE VULNERÁVEL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. NULIDADE RELATIVA. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. VETORIAIS DA CULPABILIDADE E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E SUFICIENTE. CONTINUIDADE DELITIVA. IMPRECISÃO ACERCA DO NÚMERO EXATO DE EVENTOS DELITUOSOS. FIXAÇÃO DA FRAÇÃO DE AUMENTO. NÃO INCIDÊNCIA DA REGRA DO CONCURSO MATERIAL NEM DA CONTINUIDADE DELITIVA ESPECÍFICA. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADES. 1. Em sendo relativa a competência territorial, ante a ausência de irresignação da parte no momento oportuno, ocorre a preclusão consumativa quanto ao tema. 2. "A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que a pena-base não pode ser fixada acima do mínimo legal com fundamento em elementos constitutivos do crime ou com base em referências vagas, genéricas, desprovidas de fundamentação objetiva para justificar a sua exasperação" (AgRg no AREsp 1121856/ES, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 02/08/2018, DJe 10/08/2018). 3. O Tribunal de origem apreciou concretamente a vetorial da culpabilidade do acusado ao constatar a reprovabilidade da conduta e a maior censura de seu comportamento ao expor que os crimes foram cometidos no seio familiar das vítimas, considerando sobretudo que "o acusado era casado/companheiro da avó das vitimas e era tratado por elas como um avô, pois gozava de inteira confiança dos pais das crianças, que permitiam inclusive, que ele ficasse a sós com elas sem que isso gerasse qualquer tipo de desconfiança". 4. Constatado que os traumas e abusos sexuais suportados pelas vítimas trazem consequências duradouras inclusive nos seus casamentos, bem assim que tais delitos ultrapassaram os limites normais do tipos penais em questão, correta a valoração negativa realizada de modo a justificar o aumento da pena-base. 5. "Nas hipóteses em que há imprecisão acerca do número exato de eventos delituosos, esta Corte tem considerado adequada a fixação da fração de aumento, referente à continuidade delitiva, em patamar superior ao mínimo legal, com base na longa duração dos sucessivos eventos delituosos" (AgRg no AREsp n. 455.218/MG, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/12/2014, DJe de 5/2/2015). 6. "A jurisprudência desta Corte Superior decidiu que, nas hipóteses de crimes de estupro ou de atentado violento ao pudor praticados com violência presumida, não incide a regra do concurso material nem da continuidade delitiva específica" (REsp n. 1.602.771/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 17/10/2017, DJe de 27/10/2017). 7. Agravo regimental improvido. (AgRg no HC n. 787.683/PE, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do Tjdft), Sexta Turma, julgado em 4/3/2024, DJe de 7/3/2024; sem grifos no original.) AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DE TORTURA. REEXAME DO DOLO. NÃO CABIMENTO. SÚMULA 7/STJ. ESTUPRO DE VULNERÁVEL CONTRA VÍTIMAS DISTINTAS. CRIME CONTINUADO. VIOLÊNCIA REAL. AUSÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A pretensão recursal de rever a conclusão da instância a quo acerca do dolo empregado pela ré, para fins de classificação da conduta no delito de tortura, importa revolvimento do conjunto fático do autos, o que não comporta análise na via eleita. Incidência da Súmula 7 do STJ. 2. A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) é real, sendo inviável aplicar limites mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base, exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer violência real (PET no REsp n. 1.659.662/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 14/5/2021.) 3. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp n. 2.165.385/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 8/9/2023; sem grifos no original.) É certo que "a dosimetria da pena está inserida no âmbito de discricionariedade regrada do julgador, estando atrelada às particularidades fáticas do caso concreto e subjetivas dos agentes, elementos que somente podem ser revistos por esta Corte em situações excepcionais, quando malferida alguma regra de direito" (AgRg no AREsp 864.464/DF, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, DJe 30/5/2017).
Este é o caso, devendo ser parcialmente provido o recurso especial a fim de que o critério adotado pelo TJ mineiro (de continuidade delitiva específica) seja substituído pelo critério da continuidade delitiva simples prevista no art. 71, caput, do Código Penal. Além disso, a conclusão ora externada não demanda revolvimento fático-probatório, visto que - reitera-se - os fatos restaram descritos e confirmados pelo acórdão recorrido.
Portanto, os autos devem ser devolvidos ao TJ, a fim de que retome o julgamento do recurso de apelação defensivo, agora adotando na terceira fase da dosimetria o critério de continuidade delitiva simples (art. 71, caput, do Código Penal), devendo ser observada a impossibilidade de reformatio in pejus na adoção da fração de aumento da reprimenda.
Ante o exposto, conheço do agravo para conhecer parcialmente do recurso especial e, nessa extensão, com fundamento na Súmula n. 568 do STJ, dou-lhe parcial provimento, determinando o retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que esse prossiga no julgamento do recurso de apelação defensivo, adotando na terceira fase da dosimetria o critério de continuidade delitiva simples (art. 71, caput, do Código Penal).
Relator
JOEL ILAN PACIORNIK
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