STJ Abr25 - Quebra de Sigilo Ilegal - Apropriação Indébito - Investigação Feita Por Escritório de Advocacia da Empresa Vítima - Acesso Bancário através de Documentos Encontrados nos Pertences do Réu, dentro do Ambiente de Trabalho - Provas Ilícitas - Necessidade de Ordem Judicial

   Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)

DECISÃO

Trata-se de recurso em habeas corpus, com pedido liminar, interposto por W A M, contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO no julgamento do Habeas Corpus Criminal n. 2158810-39.2023.8.26.0000.

Extrai-se dos autos que contra o paciente foi instaurado inquérito policial pela suposta prática do crime de apropriação indébita. Inconformada, a defesa do recorrente impetrou habeas corpus, tendo sido denegada a ordem, nos termos do acórdão assim ementado (e-STJ, fl. 143).

“Habeas corpus. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. Pedido de trancamento do inquérito policial instaurado com base em sindicância interna realizada pela empresa vítima. Alegação de que os Advogados que participaram da sindicância pertencem ao mesmo escritório que já patrocinou o paciente em ações pessoais anteriormente, de forma que os documentos teriam sido obtidos mediante violação de sigilo, sendo as provas ilícitas. Inadmissibilidade. Embora referidos profissionais pertençam ao mesmo escritório de advocacia, o paciente havia sido assistido nas ações pessoais por equipe de Advogados diversa daquela que está patrocinando a empresa-vítima. Ademais, tais atuações de deram em processos diferentes, com objetos distintos e sem simultaneidade. Além disto, a notícia crime foi assinada por Advogados de outro escritório. Assim, não ficou evidenciada a existência de conflito de interesses. Alegação de quebra do sigilo profissional que consiste em mera presunção, porquanto não foi apontado nenhum elemento concreto comprovando que os Advogados tivessem obtido acesso às ações judiciais e documentos acobertados pelo sigilo fiscal e bancário do paciente, até porque apenas os procuradores habilitados possuem acesso aos processos. Investigação lastreada em sindicância interna e em documentos da própria pessoa jurídica, não em documentos pessoais e sigilosos do paciente. Ordem denegada.”

No presente recurso, sustenta o recorrente que sofre constrangimento ilegal consistente na instauração de inquérito policial com base em sindicância e investigação interna realizadas por escritório de advocacia contratado pela empresa em que trabalhava.

Contudo, alega que determinados sócios do referido escritório de advocacia já haviam representado os interesses do recorrente até o ano de 2022, “em ações de divórcio, reconhecimento de união estável e indenizatória.” (e-STJ, fl. 165), sustentando que, por esse motivo, “diversos sócios tiveram acesso à documentos sensíveis de sua vida” (e-STJ, fl. 165), configurando prova ilícita.

Ainda, sustenta a ilicitude dos elementos de informação colhidos, eis que foi acostado aos autos cópia imagem de “documento autorizando transferência de fundos entre duas contas correntes, a do RECORRENTE e de sua mãe”, documento este que, segundo o recorrente, “estava dentro de um envelope fechado na gaveta de sua mesa, com a identificação do RECORRENTE como remetente e como destinatário o banco Bradesco, para onde seria enviado” e, por estar acondicionado em um envelope, caracteriza-se como uma correspondência, e por isso, é “protegido por sigilo bancário em razão da natureza dos dados ali inseridos.” (e-STJ, fls. 166/168).

Assim, pugna o recorrente pelo desentranhamento dos autos do referido inquérito policial dos elementos de informação produzidos de maneira ilícita (e-STJ, fls. 156/169). O pedido liminar foi indeferido (e-STJ, fls. 188/189). Foram prestadas informações (e-STJ, fls. 195). ` Quanto às informações prestadas pelo Juízo de origem (e-STJ, fls. 197/205), a princípio, não referem-se aos autos de inquérito policial n. 1502745-10.2023.8.26.0506. O Ministério Público Federal opinou pelo provimento parcial do recurso (e-STJ, fls. 211/213).

É o relatório. Decido.

Inicialmente, sustenta o recorrente que determinados sócios do escritório de advocacia responsável pela realização da sindicância que deu causa à instauração do inquérito policial já haviam representado os interesses do recorrente até o ano de 2022, razão pela qual busca o reconhecimento da ilicitude dos elementos de informação acostados aos autos de inquérito policial.

A esse respeito, o Tribunal de origem, quando da análise da questão aventada, consignou (e-STJ, fl. 145/147):

“Consta que o inquérito policial foi instaurado para apurar a suposta prática do delito de apropriação indébita, sem prejuízo da configuração de eventuais outros crimes, porque, no decorrer do ano de 2017 e seguintes, o paciente e outros investigados teriam desviado dinheiro durante anos da clínica "SEMEAR FERTILIDADE - REPRODUÇÃO HUMANA LTDA", onde o paciente trabalhava no setor de contabilidade (fls. 11/53). Com efeito, não há que se falar em ilicitude das provas, com o seu consequente desentranhamento dos autos e o trancamento do inquérito policial. O impetrante argumenta que o escritório de advocacia "Brasil Salomão e Matthes", que defendeu o paciente em ações de divórcio, indenizatória e de dissolução de união estável1 , também participou da sindicância interna da empresa-vítima, que culminou na instauração do inquérito policial. Todavia, verifica-se que os Advogados que representaram o paciente nas ações cíveis mencionadas foram os Drs. Ricardo Sordi Marchi, Daniela Meca Borges, Marcelo Tadeu Xavier Santos e Thaís Pereira Ramazza (fls. 93/114), ao passo que os causídicos que atuaram na sindicância interna da empresa-vítima foram os Drs. Daniel de Lucca e Castro e Marília Meorim Ferreira de Lucca e Castro (fls. 87/92). Embora referidos profissionais pertençam ao mesmo escritório de advocacia, o paciente havia sido assistido nas ações pessoais por equipe de Advogados diversa daquela que está patrocinando a empresa-vítima. Ademais, tais atuações de deram em processos diferentes, com objetos distintos e sem simultaneidade. Anote-se, ainda, que a notícia crime foi assinada e encaminhada ao Ministério Público pelos Advogados Maria Cláudia de Seixas, Naiara de Seixas C. Caparica e Theuan Carvalho Gomes, integrantes do escritório "Cláudia Seixas - Sociedade de Advogados" (fls. 14/53) e que também participaram da sindicância. Assim, não ficou evidenciada a existência de conflito de interesses. Além disto, a alegação de que houve quebra do sigilo profissional consiste em mera presunção, porquanto não foi apontado nenhum elemento concreto comprovando que os Advogados que participaram da sindicância tivessem obtido acesso aos autos das ações judiciais e documentos acobertados pelo sigilo fiscal e bancário do paciente, até porque apenas os procuradores habilitados possuem acesso aos processos. Observa-se, ainda, que a investigação se iniciou com base em notitia criminis encaminhada pela empresa-vítima ao Ministério Público, que foi lastreada em sindicância interna e em documentos da própria pessoa jurídica, não em documentos pessoais e sigilosos do paciente.”

Pois bem. Apesar dos elementos aduzidos pelo requerente, razão não lhe assiste. Inicialmente, da análise dos autos, conforme apontado no acórdão combatido, verifica-se que o requerimento pela instauração do respectivo inquérito policial não foi realizado por advogados do escritório “Brasil Salomão”, mas sim, por profissionais integrantes do escritório “Cláudia Seixas Sociedade de Advogados” (e-STJ, fls. 14/49).

Ainda, como apontado pelo próprio recorrente, a atuação dos advogados do escritório “Brasil Salomão” se deu posteriormente ao término de sua relação com o referido escritório, eis que “A sociedade de advogados "Brasil Salomão e Matthes" atuou em favor do RECORRENTE até o dia 10/08/2022 (ações de divórcio e dissolução de união estável) e até o dia 03/10/2022 (ação indenizatória), quando apresentou substabelecimento sem reserva de poderes. Já a participação dos Advogados sócios daquele escritório, Daniel de Lucca e Castro e Marília Meorim Ferreira de Lucca e Castro na sindicância interna da empresa contra o RECORRENTE, ficou explicitada a partir dos dias 05 e 06/04/2023, conforme consta nas atas notariais (fls. 89/92).” (e-STJ, fl. 164).

A esse respeito, apesar do teor do art. 15, § 6º, da Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB), sua interpretação deve ser realizada em conjunto com o contido no art. 21, da Resolução n. 2/2015 - CFOAB (Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil), que prevê que “O advogado, ao postular em nome de terceiros, contra ex-cliente ou ex-empregador, judicial e extrajudicialmente, deve resguardar o sigilo profissional.” Ou seja, da interpretação sistemática das citadas normas, é possível concluir que o Advogado pode atuar em face de ex-cliente, desde que resguarde o sigilo necessário.

Nesse aspecto, vale rememorar que o próprio recorrente, quando de suas razões recursais, apontou que “não há como o RECORRENTE demonstrar, com elementos concretos, que suas informações, acessadas e arquivadas naquele escritório, foram efetivamente utilizadas para embasar as investigações contra ele encetadas” (e-STJ, fl. 165), de modo que as alegações do recorrente consistem em meras presunções, como bem apontado pelo Tribunal a quo.

Ainda, sustenta o recorrente que houve o acesso a uma autorização para transferência de valores entre contas correntes, a qual estava armazenada em sua gaveta da mesa de trabalho, dentro de um envelope lacrado, contendo sua identificação como remetente e tendo como destinatária a agência bancária.

Argumenta, ainda, que tal documento é protegido, tanto por se tratar de correspondência quanto por conter informações bancárias. Sobre o ponto, decidiu o Tribunal de origem (e-STJ, fl. 147):

“Igualmente, no que tange à autorização de transferência bancária que estaria em nome do paciente e que foi localizada em sua gaveta na mesa de trabalho na referida empresa (fls. 38), também não se constata a alegada violação de sigilo. Isto porque, conforme consignado pela d. Procuradoria, o documento: "foi endereçado a ele na qualidade de contador da empresa. Ele, portanto, recebeu o envelope em nome da empresa, como funcionário desta, sendo irrelevante que seu nome constasse como destinatário. Desse modo, não prospera a alegação de violação de sigilo das correspondências, pois, o sigilo não era oponível à pessoa do paciente, mas sim à empresa-vítima, tendo aquele atuado como mero proposto desta. E para reforçar a licitude da prova, o próprio impetrante, na petição inicial, reconheceu que o envelope foi encontrado dentro da gaveta de sua mesa de trabalho na empresa e seria remetido ao banco através de malote da empresa" (fls. 137). Portanto, inexiste constrangimento ilegal a ser sanado.”

No que tange à alegada violação do sigilo de correspondência, observa-se que o recorrente não demonstrou, de forma inequívoca, que o documento encontrava-se no interior de envelope lacrado, identificado com o seu nome como remetente. Assim, inexistindo comprovação de que se tratava efetivamente de correspondência protegida pelo sigilo constitucionalmente garantido, não há que se falar em afronta ao direito à inviolabilidade da correspondência previsto no art. 5º, XII, da Constituição Federal.

Contudo, quanto à suposta violação do sigilo bancário, o modo pelo qual procedeu a empresa vítima não se coaduna com a jurisprudência desta Corte Superior.

O direito ao sigilo bancário e financeiro não é absoluto, podendo ser relativizado mediante prévia determinação judicial devidamente fundamentada.

Dessa forma, apesar de o documento em questão ter sido localizado na sede da empresa vítima, especificamente no interior da gaveta do recorrente, tal fato não autoriza a utilização dos dados pelos representantes da empresa, eis que obtiveram as informações de movimentação financeira do recorrente sem a prévia ordem judicial para o acesso a tais documentos sigilosos.

Sendo assim, inadmissível que os dados sigilosos obtidos diretamente pela empresa sejam por ela repassados ao Ministério Público ou à autoridade policial, para uso em ação penal, pois não precedida de autorização judicial.

Nesse sentido: PENAL. PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. RECURSO ESPECIAL. ILICITUDE DA PROVA. QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO. MOVIMENTAÇÕES FINANCEIRAS REPASSADAS DIRETAMENTE AO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA EMPRESA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. FONTE INDEPENDENTE DE PROVA E DESCOBERTA INEVITÁVEL. NÃO OCORRÊNCIA. DEPENDÊNCIA CAUSAL E CRONOLÓGICA DA PROVA ILÍCITA. NULIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO. 1. No caso, a abertura de inquérito policial com a posterior quebra do sigilo bancário deu-se mediante a propositura de notitia criminis pela empresa vítima com base em documento apócrifo, que continha extratos bancários da recorrente obtidos sem autorização judicial, que demonstrariam movimentações não condizentes com a remuneração percebida no exercício da sua atividade laboral junto a respectiva pessoa jurídica. 2. A devassa nas contas da investigada com a posterior utilização na esfera penal de dados sigilosos, obtidos diretamente pela empresa vítima, sem a imprescindível autorização judicial prévia, configura nulidade da prova, na medida em que obtida por meio de ilícita quebra do sigilo bancário. 3. A teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree) e a doutrina da fonte independente (independent source doctrine) são provenientes do mesmo berço, o direito norte-americano. Enquanto a primeira estabelece a contaminação das provas que sejam derivadas de evidências ilícitas, a segunda institui uma limitação à primeira, nos casos em que não há uma relação de subordinação causal ou temporal. (v. Silverthorne Lumber Co v. United States, 251 US 385, 40 S Ct 182, 64 L. Ed. 319, 1920 e Bynum v. United States, 274, F.2d. 767, 107 U.S. App D.C 109, D.C.Cir.1960) (HC 222.652/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/09/2014, DJe 03/10/2014). 4. Não há se falar em fonte independente de prova ou em descoberta inevitável, porquanto a prova ilícita, decorrente dos extratos bancários obtidos pelos representantes da empresa vítima sem a prévia autorização judicial, possuía relação de dependência causal e cronológica com as demais provas produzidas. 5. Recurso especial provido para restabelecer a sentença que absolveu a recorrente em razão da ilicitude dos meios de prova. (REsp n. 1.417.567/MG, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 29/6/2018; grifo nosso.)

Ademais, deixa-se de reconhecer a existência de eventuais provas ilícitas por derivação, eis que não há nos autos elementos suficientes para se verificar o nexo probatório entre o documento ora questionado e a obtenção de demais provas ou elementos de informação. Diante do exposto, com fundamento no art. 34, inciso XVIII, alínea “c”, do RISTJ, dou parcial provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, para determinar o desentranhamento dos autos de investigação do documento bancário obtido sem autorização judicial e indicado nas razões de recurso (e-STJ, fl. 167), eis que obtido sem autorização judicial. Publique-se. Intimem-se.

Relator

JOEL ILAN PACIORNIK

(STJ - RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 190931 - SP (2023/0436478-7) RELATOR : MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK, Publicação no DJEN/CNJ de 14/04/2025. )

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