STJ Mar25 - Absolvição Art. 33 da Lei de Drogas - Ausência de Materialidade - Baseada em Áudios

  Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)

DECISÃO

FRANCISCO JXXXXXXalega sofrer coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará na Apelação n. 0023088-56.2022.8.06.0001.

Neste writ, a defesa a requer a absolvição do paciente pela prática do delito de tráfico de drogas. Para tanto, afirma não haver materialidade da conduta imputada ao paciente, "face a ausência de apreensão de substância entorpecente, a qual não pode ser suprimida por prova testemunhal e interceptações telefônicas" (fl. 5).

Nesse sentido, alega inexistir laudo toxicológico preliminar nem definitivo a constatar a efetividade do delito pelo qual foi condenado. Indeferida a liminar (fls. 334-335) e prestadas as informações (fls. 340-343 e 349-352), veio o parecer do Ministério Público Federal (fls. 354-364), que opinou pelo não conhecimento do habeas corpus.

Decido.

O Juiz sentenciante concluiu pela condenação do ora paciente e demais acusados pelo delito de tráfico de drogas, sob os fundamentos a seguir, verbis:

Os áudios 21857222. WAV; 21849890. WAV, 21903804. WAV; 21914959. WAV; 22000494. WAV; 22000510. WAV, acostados aos autos às págs. 2739 e em mídias físicas em secretaria desta vara, comprovam que o acusado Francisco Johny Ferreira Martins fornecia drogas, notadamente pó (cocaína), para os traficantes Mara e José Alves. Os trechos captados comprovam, ainda, que o fornecimento não era esporádico, mas com habitualidade, e que Francisco Jonhy exercia uma espécie de liderança, visto que Mara ajustava pagamentos de valores relacionados a droga recebida e reclamava das vendas, em razão da concorrência com outros traficantes, que assediariam e aliciariam um “pivete” de nome Pedro Bruno, que era o responsável por fazer “os corre” das drogas, solicitando providências do acusado em análise, conhecido como “GAROTO”. Assim, resta comprovado que Francisco Jonhy praticou os crimes de tráfico de drogas, no núcleo do tipo FORNECER drogas, bem como o crime de associação para o tráfico de drogas, com Mara e José Alves. [...] Assim, restam configurados 02 (dois) crimes autônomos de tráfico e de associação para o tráfico de drogas pelo acusado Francisco Jonhy, visto que este FORNECEU drogas em dias e contextos diferentes (inclusive substâncias diferentes) para MARA/JOSÉ ALVES (Cocaína), e para FRANCISCO GUSTAVO (Crack). Pela escuta dos áudios, percebe-se que a associação não se deu de forma eventual, mas, sim, de modo estável/habitual, já que “GAROTO” questionou FRANCISCO GUSTAVO sobre a aceitação e qualidade da droga e, em outra ocasião, ressaltou sua fidelidade no fornecimento da droga, bem como que não entregaria à companheira/namorada daquele, mas exclusivamente ao mesmo. Logo, assiste razão ao Ministério Público, devendo FRANCISCO JOHNY ser condenado pelos crimes do art. 33 e 35 da Lei de Drogas, por duas vezes, em relação aos fatos criminosos 8 e 11 narrados na denúncia (fls. 238-240, grifei). A Corte local confirmou a materialidade do delito de tráfico de drogas, sob a seguinte motivação: A materialidade restou demonstrada pelos depoimentos testemunhais colhidos ao longo da persecução penal. Uma vez constatada a materialidade do ilícito, há de se afirmar que também inexiste dúvida acerca de sua autoria, a qual restou devidamente comprovada pelos depoimentos testemunhais, que reproduziram com clareza as circunstâncias da prisão no curso da instrução criminal. Ressoa dos autos que Assim, constata-se que o réu integrou organização criminosa comandada pelo policial militar Jeovane, evidenciando-se que o réu era responsável pelo fornecimento de entorpecentes aos demais traficantes, inclusive fornecendo drogas aos casais, também réus, M. C e F. R, e para F. G e E. Não obstante, restou comprovado que F. J. F se associou para o tráfico, com o escopo de comercializar drogas, conjuntamente com M. C e F. R. Conforme se extrai das mídias acostadas aos autos, resultantes de interceptação telefônica, restou bem delineado e patenteado que o hodierno réu inclusive exercia certa liderança sobre os demais traficantes, senão, vejamos. Extrai-se do áudio 21857222. WAV, que a corré M. C realiza chamada telefônica para F. J indagando se este tem "pó" (termo usual para cocaína), ao que o réu F. J. F. M responde que havia acabado, comprovando que, com efeito, o réu F. J. F. M vendia entorpecentes aos demais membros. Para efeitos de melhor esmiuçamento da conduta criminosa do ora apelante, transcreve-se, ipsis literis, o conteúdo colhido mediante interceptação telefônica: [...] A corré M. C comenta ainda que, amanhã, fará o pagamento do “dinheiro do pó” e pede a JOHNY o telefone de ROMULO (FRANCISCO RÔMULO FERREIRA MARTINS, irmão de JOHNY), pois quer saber se este teria referida substância entorpecente. Minutos após, às 21h17min (21857227. WAV), MARÁ liga para RÔMULO e pergunta se este tem "pó" e ROMULO confirma. MARA então pergunta se ele faz "10gramas" do mesmo jeito do JHONY. ROMULO pergunta por quanto “ele” fez, se é a "8". MARA confirma. ROMULO pergunta se “tá embaçado” aí, MARA diz que sim e diz que o CHINÊS (policial) “tá lá em cima” sozinho. Para além disso, dos áudios colhidos ao longos dos ciclos interceptivos (21849890. WAV, 21903804. WAV, 21914959. WAV, 22000494. WAV, 22000510. WAV, 22027337. WAV e 22007704. WAV) observou-se que JHONY exerce liderança sobre parte dos traficantes que atuam no bairro Bom Jardim, o que explica o motivo de MARA, em conversa telefônica, queixar-se com o líder sobre certos concorrentes que estariam prejudicando as suas vendas. Além disso, constatou-se que JHONY também fornecia drogas para o casal FRANCISCO GUSTAVO E EVILANE atuantes, também, no bairro Bom Jardim. Tem-se que JHONY era conhecido popularmente como "GAROTO". É o que se observa do o áudio 21857760. WAV onde GAROTO entra em contato com GUSTAVO para saber se o pessoal gostou das "pedras" (termo usual para crack). GUSTAVO, então, responde que não houve reclamações, só que acharam a mercadoria um pouco amarelada. Por fim, GUSTAVO diz que aciona GAROTO, quando tiver dinheiro. Em outro diálogo (áudio 21875157. WAV), datado de 13/06/16, GUSTAVO relata para GAROTO que brigou com a esposa e pergunta se esta “vai pegar” alguma droga com GAROTO. Este responde que só coloca droga na "mão de GUSTAVO" e o avisa sobre “uma inteira" (um quilo de substância entorpecente) que vai já chegar para ele (GUSTAVO). Faz-se mister transcrição de excerto da sentença que demonstra o vínculo associativo do ora apelante com os demais réus, bem como que ele forneceu entorpecentes aos demais acusados: 'No que concerne ao acusado Francisco Gustavo Vitoriano Pinheiro, pelo menos 02 (dois) áudios captados comprovam a materialidade e a autoria dos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico com Francisco Jhony Ferreira Martins, “Garoto”, a saber: 21857760. WAV e 21875157. WAV, pág.2739. No primeiro áudio mencionado, Gustavo mantém um diálogo com Garoto, que lhe indaga sobre a aceitação de pedras (crack) que lhe teriam sido entregues para comercialização, ocasião em que Gustavo afirmar que, apesar da cor amarelada, não recebeu reclamação e que posteriormente se acerta com Garoto, ou seja, lhe repassa o dinheiro da droga que estava devendo. Já o segundo, Gustavo indaga “Garoto” sobre o fornecimento de droga para sua companheira vender, mas este nega e afirma que só entrega a Gustavo e que se ele quiser é que repasse a Eveline. Por fim, Garoto confirma que tem “uma inteira”/ 1kg de drogas, para lhe entregar.' De fato, é de fácil intelecção que o réu incorreu nas condutas criminosas que lhes são atribuídas, não havendo que se falar em absolvição por ausência de provas, uma vez que restou comprovado que o réu fornecia drogas, havendo se associado com M. C e J. A , e com F. C, para a prática da mercancia de entorpecentes, pelo que julgo improcedente o pleito de absolvição por falta de provas, ante o acervo probatório robusto que há nos autos, conforme alhures assinalado (fls. 40-41, grifei).

Em relação à materialidade do delito, esclareço, a caracterização do crime de tráfico de drogas prescinde de apreensão de droga em poder de cada um dos acusados; basta que, evidenciado o liame subjetivo entre os agentes, haja a apreensão de drogas com apenas um deles para que esteja evidenciada, ao menos em tese, a prática do delito em questão.

Assim, a mera ausência de apreensão de drogas na posse direta do agente "não afasta a materialidade do delito de tráfico quando estiver delineada a sua ligação com outros integrantes da mesma organização criminosa que mantinham a guarda dos estupefacientes destinados ao comércio proscrito", conforme bem decidido por ocasião do julgamento do HC n. 536.222/SC, de relatoria do Ministro Jorge Mussi (5ª T., DJe de 4/8/2020).

A Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça também já teve a oportunidade de debater essa matéria, ocasião em que salientou:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVAS ACERCA DA MATERIALIDADE DO DELITO. EXISTÊNCIA DE OUTROS ELEMENTOS APTOS A COMPROVAR A PRÁTICA DO CRIME. IRRELEVÂNCIA. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. IMPRESCINDIBILIDADE DE APREENSÃO DE DROGAS NA POSSE DIRETA DO AGENTE. ORDEM CONCEDIDA, COM EXTENSÃO, DE OFÍCIO AOS CORRÉUS. No julgamento do HC n. 350.996/RJ, de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, a Terceira Seção reconheceu, à unanimidade, que o laudo toxicológico definitivo é imprescindível para a comprovação da materialidade dos delitos envolvendo entorpecentes, sem o qual é forçosa a absolvição do acusado, admitindo-se, no entanto, em situações excepcionais, que a materialidade do crime de tráfico de drogas possa ser demonstrada por laudo de constatação provisório, desde que ele permita grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo e haja sido elaborado por perito oficial, em procedimento e conclusões equivalentes. Por ocasião do julgamento dos EREsp n. 1.544.057/RJ, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca (DJe 9/11/2016), a Terceira Seção desta Corte uniformizou o entendimento de que a ausência do laudo toxicológico definitivo implica a absolvição do acusado, por ausência de provas acerca da materialidade do delito, e não a nulidade da sentença. Foi ressalvada, no entanto, a possibilidade de se manter o édito condenatório quando a prova da materialidade delitiva estiver amparada em laudo preliminar de constatação, dotada de certeza idêntica ao do definitivo, certificado por perito oficial e em procedimento equivalente, que possa identificar, com certo grau de certeza, a existência dos elementos físicos e químicos que qualifiquem a substância como droga, nos termos em que previsto na Portaria n. 344/1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. Pelo que decidido nos autos dos EREsp n. n. 1.544.057/RJ, é possível inferir que, em um ou outro caso, ou seja, com laudo toxicológico definitivo ou, de forma excepcionalíssima, com laudo de constatação provisório, é necessário que sejam apreendidas drogas. Em outros termos, para a condenação de alguém pela prática do crime de tráfico de drogas, é necessária a apreensão de drogas e a consequente elaboração ao menos de laudo preliminar, sob pena de se impor a absolvição do réu, por ausência de provas acerca da materialidade do delito. Pelo raciocínio desenvolvido no julgamento dos referidos EREsp n. 1.544.057/RJ, também é possível depreender que, nem mesmo em situação excepcional, a prova testemunhal ou a confissão do acusado, por exemplo, poderiam ser reputadas como elementos probatórios aptos a suprir a ausência do laudo toxicológico, seja ele definitivo, seja ele provisório assinado por perito e com o mesmo grau de certeza presente em um laudo definitivo. O art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 apresenta-se como norma penal em branco, porque define o crime de tráfico com base na prática de dezoito condutas relacionadas a drogas - importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer -, sem, no entanto, trazer a definição do elemento do tipo "drogas". Segundo o parágrafo único do art. 1º da Lei n. 11.343/2006, "consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União." Portanto, a definição do que sejam "drogas", capazes de caracterizar os delitos previstos na Lei n. 11.343/2006, advém da Portaria n. 344/1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (daí a classificação doutrinária, em relação ao art. 33 da Lei n. 11.343/2006, de que se está diante de uma norma penal em branco heterogênea). Vale dizer, por ser constituída de um conceito técnico-jurídico, só será considerado droga o que a lei (em sentido amplo) assim reconhecer como tal. Mesmo que determinada substância cause dependência física ou psíquica, se ela não estiver prevista no rol das substâncias legalmente proibidas, ela não será tratada como droga para fins de incidência da Lei n. 11.343/2006. No entanto, para a perfectibilização do tipo previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, é necessário mais do que isso: é necessário que a substância seja efetivamente apreendida e periciada, para que se possa identificar, com grau de certeza, qual é o tipo de substância ou produto e se ela(e) efetivamente encontra-se prevista(o) na Portaria n. 344/1998 da Anvisa. A caracterização do crime de tráfico de drogas prescinde de apreensão de droga em poder de cada um dos acusados; basta que, evidenciado o liame subjetivo entre os agentes, haja a apreensão de drogas com apenas um deles para que esteja evidenciada, ao menos em tese, a prática do delito em questão. Assim, a mera ausência de apreensão de drogas na posse direta do agente "não afasta a materialidade do delito de tráfico quando estiver delineada a sua ligação com outros integrantes da mesma organização criminosa que mantinham a guarda dos estupefacientes destinados ao comércio proscrito", conforme decidido por ocasião do julgamento do HC n. 536.222/SC, de relatoria do Ministro Jorge Mussi (5ª T., DJe de 4/8/2020). Na hipótese dos autos, embora os depoimentos testemunhais e as provas oriundas das interceptações telefônicas judicialmente autorizadas tenham evidenciado que a paciente e os demais corréus supostamente adquiriam, vendiam e ofereciam "drogas" a terceiros - tais como maconha, cocaína e crack -, não há como subsistir a condenação pela prática do delito descrito no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, se, em nenhum momento, houve a apreensão de qualquer substância entorpecente, seja em poder dela, seja em poder dos corréus ou de terceiros não identificados. Apesar das diversas diligências empreendidas pela acusação, que envolveram o monitoramento dos acusados, a realização de interceptações telefônicas, a oitiva de testemunhas (depoimentos de policiais) etc., não houve a apreensão de droga, pressuposto da materialidade delitiva. Assim, mesmo sendo possível extrair dos autos diversas tratativas de comercialização de entorpecentes pelos acusados, essas provas podem caracterizar o crime de associação para o tráfico de drogas, mas não o delito de tráfico em si. Ao funcionar como regra que disciplina a atividade probatória, a presunção de não culpabilidade preserva a liberdade e a inocência do acusado contra juízos baseados em mera probabilidade, determinando que somente a certeza pode lastrear uma condenação. A presunção de inocência, sob tal perspectiva, impõe ao titular da ação penal todo o ônus de provar a acusação, quer a parte objecti, quer a parte subjecti. Não basta, portanto, atribuir a alguém conduta cuja compreensão e subsunção jurídico-normativa, em sua dinâmica subjetiva - o ânimo a mover a conduta -, decorre de avaliação pessoal de agentes do Estado, e não dos fatos e das circunstâncias objetivamente demonstradas. Uma vez que houve clara violação da regra probatória inerente ao princípio da presunção de inocência, não há como subsistir a condenação da acusada no tocante ao referido delito, por ausência de provas acerca da materialidade. Permanece hígida a condenação da ré no tocante ao crime de associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343/2006), haja vista que esta Corte Superior de Justiça entende que, para a configuração do referido delito, é irrelevante a apreensão de drogas na posse direta do agente. Precedentes. Embora remanescente apenas a condenação pelo crime de associação para o tráfico de drogas, deve ser mantida inalterada a imposição do regime inicial fechado. Isso porque, embora a acusada haja sido condenada a reprimenda superior a 4 e inferior a 8 anos de reclusão, teve a pena-base desse delito fixada acima do mínimo legal, circunstância que, evidentemente, autoriza a fixação de regime prisional mais gravoso do que o permitido em razão da pena aplicada. Ordem de habeas corpus concedida, a fim de absolver a paciente em relação à prática do crime previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, objeto do Processo n. 0001004-55.2016.8.12.0017, por ausência de provas acerca da materialidade do delito. Extensão, de ofício, dos efeitos da decisão a todos os corréus, para também absolvê-los no tocante ao delito de tráfico de drogas. (HC n. 686.312/MS, Rel. Ministro Sebastão Reis Júnior, Rel. p/ acórdão Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., julgado em 12/4/2023).

E qual é a razão de ser desse entendimento?

Segundo Luciana Boiteaux et al., é possível constatar que o tráfico de drogas obedece a uma complexa organização que segue padrões hierarquizados, com diferentes graus de importância e de participação na estrutura do comércio ilegal de entorpecentes, o que aponta para "diferentes papéis nas 'redes' do tráfico, desde as atuações mais insignificantes até as ações absolutamente engajadas e com domínio do fato final" (WIECKO, Ela. (coord.). Tráfico de Drogas e Constituição: um estudo jurídico-social do art. 33 da Lei de Drogas diante dos princípios constitucionais-penais. Brasília: SAL - Ministério da Justiça. Série Pensando o Direito, v. 1, 2009, p. 80).

Nessa complexa estrutura de "rede", há diversos atores interligados uns aos outros. Sem pretender analisar todos os papéis sociais existentes dentro da hierarquia do tráfico (que envolve diferentes graus de participação e importância dentro do grupo), menciono que, segundo Rafael Barbosa, há os "olheiros" ou "fogueteiros", indivíduos cuja missão é avisar os superiores sobre a chegada da polícia; o "vapor", responsável pela venda e pela distribuição de drogas; há, também, aqueles incumbidos do fluxo das mercadorias ilícitas; há, ainda, os "donos do morro", aqueles que mandam e ficam com boa parte dos lucros auferidos com o comércio de drogas (Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. EDUFF, 1998, p. 88).

A realidade prática nos mostra que muitos dos que integram organizações criminosas direcionadas ao tráfico de drogas, inclusive os chefes desses bandos, dificilmente são flagrados na posse direta da droga, pois tal papel é delegado àquelas pessoas que ocupam posição de menor "prestígio" dentro da estrutura do narcotráfico.

No entanto, nem por isso, deixam de responder pela prática do crime de tráfico de drogas, caso evidenciado o liame subjetivo entre os agentes. Todavia, no caso dos autos, da detida leitura da denúncia e sentença, percebo todo o arcabouço probatório, relativamente ao crime de tráfico de drogas – cometido pelo ora paciente –, foi baseado nos áudios extraídos das interceptações telefônicas.

A peça acusatória, embora haja narrado a apreensão de drogas na posse direta do paciente, o faz a partir dos relatos captados entre ele e o corréu Francisco Gustavo Vitoriano Pinheiro, o "Gustavo", que, por sua vez, também foi condenado pelo delito de tráfico, com base, exclusivamente, nos áudios das interceptações telefônicas, verbis:

Inicialmente, ressalte-se que, apesar de inexistir apreensão da droga e realização de perícia, é possível aferir a materialidade dos crimes de tráfico e associação para o tráfico a partir da prova constante dos autos, qual seja, interceptação telefônica legalmente autorizada, em que são identificáveis a prática pelos acusados de vários dos núcleos dos tipos, como vender, transportar, guardar, etc. Sublinhe-se que a ausência de apreensão de entorpecentes diretamente com os acusados, por si só, não descaracteriza a materialidade do delito de tráfico, sobretudo face ao farto acervo probatório colhido nos autos. [...] No que concerne ao acusado Francisco Gustavo Vitoriano Pinheiro, pelo menos 02 (dois) áudios captados comprovam a materialidade e a autoria dos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico com Francisco Jhony Ferreira Martins, “Garoto”, a saber: 21857760. WAV e 21875157. WAV, pág.2739. No primeiro áudio mencionado, Gustavo mantém um diálogo com “Garoto”, que lhe indaga sobre a aceitação de pedras (crack) que lhe teriam sido entregues para comercialização, ocasião em que Gustavo afirma que, apesar da cor amarelada, não recebeu reclamação, e que posteriormente se acerta com “Garoto”, ou seja, lhe repassa o dinheiro da droga que estava devendo. Já no segundo áudio, Gustavo indaga “Garoto” sobre o fornecimento de droga para sua companheira vender, mas este nega e afirma que só entrega a Gustavo, e que se ele quiser é que repasse a Eveline. Por fim, “Garoto” confirma que tem “uma inteira”/ 1kg de drogas, para lhe entregar. Ou seja, o áudio 21857760. WAV comprova a prática dos núcleos do tipo do art. 33 da Lei de Drogas, nas modalidades ADQUIRIR e EXPOR A VENDA, sem autorização e/ou em desacordo com a autorização legal, notadamente a substância entorpecente crack (fls. 221-234, destaquei).

Logo, deve prevalecer o cerne do julgado no HC n. 686.312/MS (Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe 19/4/2023), de que "para a condenação de alguém pela prática do crime de tráfico de drogas, é necessária a apreensão de drogas e a consequente elaboração ao menos de laudo preliminar, sob pena de se impor a absolvição do réu, por ausência de provas acerca da materialidade do delito".

Diante desse cenário, considerando que não houve apreensão de nenhuma substância ilícita em poder de nenhum dos acusados e, portanto, não consta dos autos nem mesmo o laudo preliminar, deve ser mantida a absolvição pela prática da conduta prevista no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, por ausência da materialidade delitiva. À vista do exposto, concedo a ordem, a fim de reconhecer a tipicidade da conduta prevista no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 e absolver o paciente da prática do respectivo delito. Publique-se e intimem-se.

Relator

ROGERIO SCHIETTI CRUZ

(STJ - HABEAS CORPUS Nº 963013 - CE (2024/0444304-0) RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Publicação no DJEN/CNJ de 12/03/2025)

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