STJ Mar25 - Crime de Expor a Venda Alimentos Impróprios para o Consumo - Absolvição - Ausência de Perícia do Corpo de Delito - Ausência de Materialidade, mesmo se expirado o prazo de validade do produto - Ferimento ao Art. 158 do CPP
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA em favor de EDINA BUSS DE SOUZA contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (Apelação Criminal n. 5025940-50.2022.8.24.0038).
Depreende-se dos autos que a paciente foi denunciada pela prática, em tese, do crime previsto no art. 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/1990, c/c art. 18, § 6º, da Lei n. 8.078/1990, na forma do art. 69 do Código Penal, por manter em depósito e expor à venda mercadorias em condições impróprias ao consumo em seu estabelecimento comercial.
Após a instrução processual, o juízo de primeiro grau absolveu a paciente com fundamento no art. 386, II, do Código de Processo Penal, por entender que, para a configuração do delito, era necessária a realização de perícia técnica para comprovar a impropriedade dos produtos para consumo, o que não teria ocorrido no caso.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, defendendo a prescindibilidade de laudo pericial, porquanto a consumação do crime previsto no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990 ocorreria com a mera realização dos comportamentos descritos no tipo penal, sem necessidade de efetivo prejuízo para consumidores determinados ou perigo concreto. O Tribunal deu provimento ao recurso ministerial para condenar a paciente, nos termos de acórdão assim ementado (e-STJ fl. 25):
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO - ART. 7º, IX, DA LEI N. 8.137/1990, C/C ART. 18, § 6º, I E II, DA LEI N. 8.078/1990. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO DA ACUSAÇÃO. DESNECESSIDADE DE PERÍCIA TÉCNICA PARA A COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO CRIME PREVISTO NO ART. 18, § 6º, I E II, ÚLTIMA PARTE, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ENTENDIMENTO PACIFICADO EM INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. CRIME FORMAL E DE PERIGO ABSTRATO. AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS POR MEIO DA PROVA ORAL E DOCUMENTAL. PRESUNÇÃO DE ATUAÇÃO PROBA DOS FISCAIS SANITARISTAS. SENTENÇA REFORMADA. DOSIMETRIA. APLICAÇÃO DA PENA NO MÍNIMO LEGAL. SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL POR DUAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
A defesa opôs embargos de declaração, alegando omissão referente à possibilidade de acordo de não persecução penal e à concessão de indulto natalino previsto no Decreto n. 11.302/2022. O recurso foi acolhido, porém sem efeitos infringentes, mantendo-se a condenação. Eis a ementa (e-STJ fl. 31):
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM APELAÇÃO CRIMINAL. OMISSÃO. PLEITOS DE OFERTA DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E DE CONCESSÃO DE INDULTO. ENTENDIMENTO ATÉ ENTÃO PREVALECENTE DE QUE O ANPP SOMENTE PODE SER OFERTADO ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE DE JUSTIÇA. CONCESSÃO DO INDULTO QUE ENCONTRA ÓBICE NO ART. 12 DO DECRETO N. 11.302/2022. ADEMAIS, BENESSE QUE DEVE SER ANALISADA PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO. EMBARGOS ACOLHIDOS PARA SANAR A OMISSÃO, SEM EFEITOS INFRINGENTES.
No presente habeas corpus, sustenta a impetrante que houve constrangimento ilegal no acórdão que condenou a paciente mesmo sem a realização de laudo pericial que comprovasse a materialidade do delito.
Argumenta que, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o crime previsto no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990 não é de perigo abstrato, mas sim de perigo concreto, exigindo a comprovação da efetiva impropriedade dos produtos para o consumo, por meio de exame pericial técnico, nos termos dos arts. 158 e 159 do Código de Processo Penal.
Por fim, aduz que, subsidiariamente, deveria ser reconhecido o direito da paciente ao acordo de não persecução penal, à concessão do indulto natalino previsto no Decreto n. 11.302/2022, à substituição das duas penas restritivas de direito impostas por apenas uma pena restritiva e multa, ou à redução da prestação pecuniária para o valor mínimo legal (e-STJ fls. 3/22).
A liminar foi indeferida por ausência dos requisitos necessários (e-STJ fls. 235/237).
As informações foram prestadas (e-STJ fls. 247/248 e 250/275).
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não conhecimento do writ, afirmando que a impetração constitui indevida utilização do habeas corpus como substitutivo de recurso próprio, e que não há constrangimento ilegal a sanar.
No mérito, sustentou que: a) não há necessidade de laudo pericial para a caracterização do delito em questão, quando possível a constatação da impropriedade do produto por outros meios probatórios; b) o acordo de não persecução penal constitui prerrogativa do Ministério Público, não sendo direito subjetivo do acusado; c) o indulto natalino previsto no Decreto n. 11.302/2022 não se aplica ao caso, porque houve recurso da acusação e porque o benefício não se estende às penas restritivas de direitos; d) a substituição da pena privativa de liberdade e a escolha das penas restritivas de direitos encontram-se no âmbito da discricionariedade vinculada do julgador (e-STJ fls. 281/291).
É o relatório. Decido.
Inicialmente, saliento que "a Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sedimentou orientação no sentido de não admitir habeas corpus em substituição a recurso próprio ou a revisão criminal, situação que impede o conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que se verifica flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal" (AgRg no HC n. 921.445/MS, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 3/9/2024, DJe de 6/9/2024).
Não obstante, o parágrafo único do art. 647-A do CPP admite a concessão de ordem de habeas corpus de ofício pelo tribunal, "ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal", quando verificada violação ao ordenamento jurídico que implique restrição à liberdade de locomoção.
No presente caso, apesar de não conhecer do habeas corpus, vislumbro constrangimento ilegal a ser sanado de ofício, uma vez que o entendimento adotado pelo Tribunal de origem destoa da jurisprudência firmada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça.
Vejamos.
Conforme relatado, busca a defesa, no presente habeas corpus, a absolvição da paciente por ausência de laudo pericial para comprovar a materialidade do crime, ou, subsidiariamente, a conversão do julgamento em diligência para oferecimento de acordo de não persecução penal, a concessão de indulto, a substituição das penas restritivas de direitos ou a redução da prestação pecuniária.
O impetrante alega que a condenação por crime contra as relações de consumo (art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990) sem a realização de perícia técnica constitui constrangimento ilegal, pois, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, trata-se de crime não transeunte, que deixa vestígios materiais, exigindo análise técnica para comprovar a efetiva impropriedade dos produtos para consumo, mesmo que estejam com prazo de validade vencido.
O Tribunal de origem fundamentou a decisão sobre a questão da seguinte forma:
"Isso porque este Tribunal de Justiça julgou Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva, ocasião em que foi fixada a seguinte tese jurídica 'O crime tipificado no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990 prescinde da produção de prova pericial para a constatação da materialidade quando o produto estiver fora do prazo de validade (art. 18, § 6º, I, da Lei n. 8.078/1990) ou em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação (art. 18, § 6º, II, última parte, da Lei n. 8.078/1990)'. [...] Ficou assentado, portanto, que os crimes consistentes em ter em depósito ou expor à venda produtos com o prazo de validade vencido ou em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação - exatamente como o delito ora praticado - prescindem da realização de perícia técnica nas mercadorias apreendidas para a comprovação da materialidade delitiva, pois tais irregularidades podem ser verificadas por meio de simples constatação visual e porque, por serem crimes formais e de perigo abstrato, não exigem demonstração da existência de lesão ou dano." (e-STJ fls. 28/29)
A jurisprudência de ambas as turmas da Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, contudo, firmou-se no sentido de que o crime previsto no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990 exige a realização de perícia para comprovação da materialidade delitiva, conforme disposto no art. 158 do Código de Processo Penal.
A propósito:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. ART. 7º, INCISO IX, DA LEI N. 8.137/1990. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. PRODUTOS IMPRÓPRIOS PARA CONSUMO. PROVA PERICIAL. INEXISTÊNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 158 DO CPP. RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO. 1. A materialidade do crime do art. 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/1190 demanda a realização de exame pericial, a fim de atestar se as mercadorias são impróprias para o consumo, inclusive em relação aos produtos com prazo de validade vencido. Precedentes. 2. O relatório elaborado por fiscais agropecuários, "com base na avaliação do estabelecimento, das condições de manipulação do produto e do produto 'in loco'", não tem o condão de dispensar a prova técnica no objeto apreendido para atestar, de fato, se ele é nocivo ao consumo. Assim, está configurada a hipótese excepcional de falta de justa causa para a ação penal. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no RHC n. 146.246/RS, de minha relatoria, Sexta Turma, julgado em 17/4/2023, DJe de 19/4/2023, grifei.) AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. ART. 7º, INCISO IX, DA LEI N. 8.137/90. TER EM DEPÓSITO PARA A VENDA PRODUTOS COM CONDIÇÕES IMPRÓPRIAS AO CONSUMO. 1) DELITO QUE DEIXA VESTÍGIOS. PROVA PERICIAL. NECESSIDADE. 2) OFENSA A ARTIGOS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. INADEQUAÇÃO DA ANÁLISE EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO COL . SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - STF. 3) AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que a conduta tipificada no art. 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/90 - ter em depósito para vender produtos impróprios para o consumo - deixa vestígios, razão pela qual a perícia é indispensável para a demonstração da materialidade delitiva, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal - CPP. Precedentes. 2. O recurso especial é via inadequada para apreciação de ofensa a artigos e princípios constitucionais, no caso, suposta violação aos arts. 5º, inciso XXXII, e 170, incisos IV e V, ambos da Constituição Federal - CF, sob pena de usurpação de competência do col. Supremo Tribunal Federal. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.903.043/SC, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 3/8/2021, DJe de 6/8/2021, grifei.)
Na hipótese, conforme consta dos autos, não foi realizada perícia técnica nos produtos apreendidos, tendo a materialidade delitiva sido demonstrada com base no Relatório de Fiscalização da Vigilância Sanitária Municipal, no auto de intimação e em fotografias, além dos depoimentos dos fiscais sanitaristas.
Todavia, conforme a jurisprudência consolidada deste Superior Tribunal de Justiça, tais elementos probatórios não são suficientes para a comprovação da materialidade do delito previsto no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990, sendo indispensável a realização de laudo pericial que ateste efetivamente a impropriedade dos produtos para consumo, mesmo em relação àqueles com prazo de validade vencido.
A propósito:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DO ART. 7.º, INCISO IX, DA LEI N.º 8.137/90. NÃO ELABORADO LAUDO PARA COMPROVAR QUE AS MERCADORIAS MANTIDAS EM DEPÓSITO E EXPOSTAS À VENDA ERAM IMPRÓPRIAS AO CONSUMO HUMANO. AUSÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DELITIVA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA O EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Para a comprovação de prática das condutas delitivas previstas no art. 7.º, inciso IX, da Lei n.º 8.137/90, é imprescindível a elaboração de laudo pericial que comprove ser a mercadoria imprópria (nociva) para o consumo humano, mesmo se expirado o prazo de validade do produto. 2. "A realização de mero laudo de constatação não é suficiente para atestar que a mercador ia é efetivamente imprópria para o consumo, sendo imprescindível a realização de perícia técnica. Precedente" (RHC 91.502/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 12/12/2017, DJe 01/02/2018). 3. Agravo regimental desprovido" (AgRg no HC 453.004/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 15/10/2019, DJe 25/10/2019, grifei.)
Assim sendo, verifico a existência de constrangimento ilegal na condenação da paciente sem a realização do devido exame pericial, imprescindível para a comprovação da materialidade delitiva, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal. Ante o exposto, não conheço do habeas corpus e concedo a ordem, de ofício (art. 647-A do CPP), para reconhecer a nulidade por falta de materialidade do delito e, por consequência, absolver a paciente das imputações feitas, com fundamento no art. 386, inciso VII do CPP. Publique-se. Intimem-se.
Relator
ANTONIO SALDANHA PALHEIRO
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