STJ 2023 - Absolvição em Crime de Contrair Despesas no Último Quadrimestre - Art. 359-C do CP - Prefeito Municipal
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
Inteiro Teor
HABEAS CORPUS Nº 800745 - SP (2023/0032585-0)
RELATOR : MINISTRO JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJDFT)
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus , com pedido liminar, impetrado contra acórdão assim ementado (fl. 101):
Assunção de obrigação no último ano de mandato ou legislatura (artigo 359-C, do Código Penal) Recurso defensivo - Preliminares de ofensa ao princípio da identidade física do juiz, inépcia da denúncia, ausência de fundamentação e ilicitude de prova Inexistência Nulidades processuais não evidenciadas Rejeição Conjunto probatório suficiente para o reconhecimento da prática delitiva Absolvição Impossibilidade Atipicidade da conduta Inocorrência Dosimetria penal Pena motivadamente dosada, necessária e suficiente para reprovação e prevenção do delito Sentença mantida Recurso desprovido.
Consta dos autos que o paciente foi condenado à pena de 1 ano de reclusão, em regime aberto, substituída por prestação de serviços à comunidade, pela prática do delito tipificado no art. 359-C.
Sustenta a impetrante, em síntese, que o acórdão impugnado seria nulo por ausência de motivação, não tendo sido analisados os pontos devolvidos no recurso de apelação. Salienta que existiria nulidade pela violação do princípio da identidade física do juiz, bem como o crime imputado não teria se caracterizado diante da ausência do elemento subjetivo do tipo.
Questiona a ausência de provas suficientes da materialidade e do dolo, consignando que houve a criação de dúvida razoável na instrução que conduziria à absolvição do paciente. Acrescenta que todas as despesas realizadas pelo paciente eram necessárias, pois haveria a previsão de entrada de recursos em favor do município; que existiria dúvida sobre a origem dos restos a pagar e que não seriam de total responsabilidade do paciente, já que advindo de gestões anteriores.
Requer, liminarmente e no mérito, que sejam reconhecidas a nulidade do acórdão impugnado e a atipicidade da conduta.
Indeferida a liminar e prestadas as informações, o Ministério Público manifestou-se pelo não conhecimento ou denegação.
Na petição de fls. 175/209, a parte reforça as alegações.
No tocante à alegação de ausência de apreciação de teses defensivas, extrai-se do acórdão (104/110):
Apela o réu, suscitando a nulidade do processo, por (a) violação ao princípio da identidade física do Juiz, (b) ausência de fundamentação da sentença, (c) inépcia da denúncia e (d) ilicitude da prova pericial produzida na fase inquisitiva. Quanto ao mérito, pugna pela absolvição, alegando, em síntese, atipicidade da conduta, em razão da não comprovação da materialidade e por ausência de dolo, assim como insuficiência probatória. Subsidiariamente, requer a redução da reprimenda imposta.
[...]
De outro lado, inexiste mácula processual a ser reconhecida na espécie, salientando-se que a aventada ilicitude da prova será analisada com o mérito recursal.
Inicialmente, não se dessume dos autos a alegada ofensa à norma inserta no artigo 399, § 2º, do Código de Processo Penal.
É cediço que o princípio da identidade física do juiz da causa não se reveste de caráter absoluto, comportando flexibilização, inclusive em face de outros primados que regem o processo penal, mormente o da garantia da razoável duração do processo.
No vertente caso, embora a instrução processual tenha sido presidida pela ilustre Juíza Samara XXXXXX (fls. 428/429), verifica-se que ela determinou a baixa dos autos em cartório, sem prolação de decisão, tendo em vista ter cessado sua designação para atuar na Comarca de Teodoro Sampaio, conforme ato publicado no DJE de 07.05.2021 (vide fls. 456), admitindo-se, assim, a mitigação do princípio em apreço e, por efeito, o sentenciamento da ação pelo ilustre Juiz que a sucedeu, eis que justificado o afastamento da magistrada que presidiu a fase instrutória e sua desvinculação do feito.
[...]
Não se pode desprezar, em paralelo, que as provas orais colhidas nas audiências de instrução foram gravadas (registros audiovisuais - fls. 428/429 e 430/431), circunstância que enfraquece a tese invocada pela Defesa, diante da ausência de prejuízo na hipótese concreta.
[...]
Outrossim, de inépcia da denúncia não se cogita, pois, diversamente do sustentado, a conduta imputada ao apelante foi satisfatoriamente narrada na exordial, que bem abordou as circunstâncias fáticas e delitivas indispensáveis ao tipo incriminador denunciado.
[...]
Em outras palavras, a denúncia encontra- se em total conformidade com o disposto no artigo 41, do Código de Processo Penal, pois demonstra, de forma clara e objetiva, a materialidade da prática delitiva denunciada, com todas as suas circunstâncias, operando-se a subsunção da conduta imputada ao tipo penal, de forma satisfatória para a deflagração da ação penal em tela, assim como para o pleno exercício da ampla defesa dos réus.
Anote-se, ainda, que a superveniência de sentença penal condenatória torna prejudicada, a esta altura, a discussão em torno de eventual inépcia da peça exordial, por se encontrar superada a análise relativa à viabilidade da acusação e de se inaugurar a ação penal, sobretudo se implementados a ampla defesa e o contraditório durante a instrução processual, conforme se vislumbrou na espécie.
[...]
Tampouco se verifica deficiência ou ausência de fundamentação da respeitável sentença
impugnada, pois o ilustre Magistrado, ainda que de forma sucinta, indicou os elementos fáticos-probatórios relevantes e idôneos para alicerçar sua convicção quanto ao édito condenatório e fundamentar a pertinente dosimetria.
De toda sorte, cumpre salientar que o atendimento ao primado inserto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, não exige que o Juiz refute pontualmente todas as alegações das partes ou se reporte a cada um dos depoimentos testemunhais colhidos em juízo, podendo sustentar seu convencimento, de forma fundamentada, no cotejo das demais provas coligidas.
Registre-se, nessa linha, que a circunstância de o depoimento da testemunha de defesa José NXXXXXXXXnão ter sido reportado pelo ilustre Magistrado sentenciante não inquina a respeitável sentença de nulidade, porquanto o juiz é livre na apreciação das provas, desde que o faça de forma motivada, como assim se verificou na espécie.
Como se vê do excerto, daquilo que foi alegado na apelação não se verifica a falta de consideração pelo Tribunal de origem, tendo analisado as teses levantadas, embora com conclusão divergente da que almejada pela defesa.
Foi asseverado que a mitigação do princípio da identidade física do juiz ocorreu porque a Juíza atuante no feito "determinou a baixa dos autos em cartório, sem prolação de decisão, tendo em vista ter cessado sua designação para atuar na Comarca de Teodoro Sampaio, conforme ato publicado no DJE de 07.05.2021 (vide fls. 456)".
Saliente-se que "O princípio da identidade física do juiz não pode ser interpretado de maneira absoluta e admite exceções que devem ser verificadas caso a caso, à vista, por exemplo, de promoção, remoção, convocação ou outras hipóteses de afastamento justificado do magistrado que presidiu a instrução criminal" (HC n. 496.662/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 27/9/2022).
Dessa forma, devidamente justificado que a sentença fosse prolatada por outro órgão jurisdicional, salientando-se a ausência de prejuízo pelas audiências terem sido gravadas.
Quanto à alegação de inépcia da denúncia, "o entendimento do STJ é no sentido de que a superveniência da sentença penal condenatória torna esvaída a análise do pretendido reconhecimento de inépcia da denúncia, isso porque o exercício do contraditório e da ampla defesa foi viabilizado em sua plenitude durante a instrução criminal" (AgRg no AREsp n. 537.770/SP, Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 4/8/2015, DJe 18/8/2015).
Portanto, não há flagrante ilegalidade constatada.
Quanto ao pleito absolutório, o acórdão impugnado está assim fundamentado (fls. 111/122):
exercício financeiro, e deixou parcelas a serem pagas no exercício financeiro seguinte, sem a contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa, tudo sem autorização legislativa.
Conforme narrado na exordial, o acusado foi Prefeito do Município de Euclides da Cunha Paulista no período de setembro de 2015 a dezembro de 2016 . Na condição de Chefe da Administração Pública Municipal, nos dois últimos quadrimestres do seu mandato, ordenou e autorizou a assunção de obrigações de despesas que não podiam ser cumpridas integralmente dentro da sua gestão e com parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que houvesse suficiente disponibilidade de caixa para tanto (cf. relatórios de empenhos de fls. 20/141).
Ainda segundo a inicial, a respeito dos valores empenhados irregularmente, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo apontou balancete demonstrando restos a pagar liquidados e não liquidados em 31/12/2016, comparativamente a 30/04/2016, no montante de R$ 3.602.452,16 (três milhões, seiscentos e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e dois reais e dezesseis centavos).
Assim, narra a exordial, o réu contraiu obrigações nos dois últimos quadrimestres do seu mandato postergando o pagamento ao exercício seguinte, sem suficientes recursos em caixa para saldá-las, no importe de R$ 3.602.452,16 (três milhões, seiscentos e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e dois reais e dezesseis centavos), referente a empenhos deixados para a nova gestão, com afronta ao artigo 42 da Lei Complementar nº. 101/2000.
Pois bem.
A materialidade delitiva, diversamente do sustentado, restou demonstrada pelos documentos de fls. 19/141, laudo contábil de fls. 197/216, parecer negativo emanado do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (fls. 237/253), assim como pela prova oral colhida em Juízo.
A autoria, do mesmo modo, recai, com segurança, sobre o apelante.
Na fase inquisitiva e em Juízo, o acusado negou ter autorizado aos setores responsáveis que contraíssem obrigações para serem pagas fora do mandato ou as que constam como restos a pagar. Alegou que assumiu a Prefeitura quando restava apenas um ano e três meses para o término do mandato e o Município já contava com muitas dívidas. Aduziu que se preocupou em suprir as despesas essenciais, mas que era leigo sobre essas questões. Afirmou que havia a perspectiva de receber verba suplementar de repatriação, mas o montante não foi repassado ao Município (fls. 168 e 428/429 - registro audiovisual).
No entanto, a prova produzida sobre o crivo do contraditório edificou-se satisfatoriamente em desfavor do apelante.
A testemunha Cristian XXXXX declarou ser o atual Prefeito de Euclides da Cunha Paulista e que quando assumiu a gestão municipal, constatou a existência de restos a pagar do ano de 2016, em torno de quatro milhões de reais a título de déficit orçamentário. Destacou que o Tribunal de Contas rejeitou as contas do Município relativamente ao período anterior, oportunidade em que foram apuradas diversas irregularidades. Em sua gestão, foi contratada uma auditoria terceirizada para também apurar as contas relativas aos quatro anos anteriores e o respectivo relatório foi encaminhado ao Ministério Público e à Delegacia Civil (fls. 430/431 - registro audiovisual).
Samanta Silva, testemunha de acusação, afirmou que exerce a função de contadora do Município de Euclides da Cunha Paulista há dez anos. Rememorou que à época dos fatos, o Tribunal de Contas do Estado encaminhou diversas notificações e alertas, via e- mails, sobre os déficits orçamentários apurados a cada bimestre, após as respectivas publicações dos balancetes. Em função dos alertas, os gastos deveriam ser reduzidos, exceto com saúde e educação, mas as Pastas continuaram a realizar despesas normalmente. Recordou-se que no final do exercício de 2016, foi apurada a existência de restos a pagar de cerca de quatro milhões de reais, mas a disponibilidade financeira para tanto era de pouco mais de um milhão de reais, de modo que restou um déficit orçamentário superior a três milhões de reais para o exercício seguinte (fls. 430/431).
[...]
Em compasso com a prova oral colhida em Juízo, o laudo pericial contábil de fls. 198/216 acerca dos documentos de fls. 20/141 (relatórios de empenhos emitidos pela Prefeitura Municipal de Euclides da Cunha Paulista nos dois últimos quadrimestres de 2016 e empenhos a pagar do mesmo período), apontou que "o montante de empenhos a pagar, pela Prefeitura Municipal de Euclides da Cunha Paulista, no período de maio a dezembro de 2016, foi de R$ 3.518.854,18".
O mesmo se depreende do parecer do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, consoante o qual houve a desaprovação da prestação de contas da Prefeitura Municipal de Euclides da Cunha Paulista, do exercício de 2016, porque, dentre outras irregularidades, fora constatada a infringência ao artigo 42, da Lei de Responsabilidade Fiscal, em razão da ausência de cobertura monetária para as despesas empenhadas e liquidadas nos dois últimos quadrimestres daquele mandato (vide fls. 237/254).
O mencionado parecer revelou que na data de 31.12.2016, o saldo de "restos a pagar liquidados" do Município correspondia a R$ 4.784.088,48 (quatro milhões setecentos e oitenta a quatro mil oitenta e oito reais e quarenta e oito centavos), enquanto a disponibilidade de caixa totalizava apenas R$ 1.181.636,32 (um milhão cento e oitenta e um mil seiscentos e trinta e seis reais e trinta e dois centavos), resultando, pois, no déficit orçamentário de R$ 3.602.452,16 (três milhões, seiscentos e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e dois reais e dezesseis centavos) para o mandato seguinte, tendo-se, assim destacado:
"O resultado econômico antes positivo passou a ser negativo; houve redução da situação patrimonial; elevação da dívida ativa e de longo prazo; e a Prefeitura não possuía disponibilidade financeira para sua dívida de curto prazo, pois para cada R$ 1,00 real de dívida possuía somente 0,32 centavos de disponibilidade financeira.
Demais disso, a Prefeitura realizou um elevado percentual de alterações orçamentárias, o que colaborou para o descompasso verificado , como atestou a equipe técnica em seu laudo de fiscalização.
Tudo isso demonstra a ausência de rigoroso acompanhamento da gestão orçamentária e impõe a conclusão de que o Município não deu cumprimento ao artigo 1º, § 1º, da LRF. A situação ainda se agrava tendo em vista que este Tribunal emitiu 5 (cinco) alertas ao Poder Executivo sobre o descompasso entre receitas e despesas e nenhuma providência eficaz foi adotada, nem sequer houve o contingenciamento das despesas, como determina o artigo
9- da mesma Lei Fiscal. Se não bastasse, no final de seu mandato, o Chefe do Executivo não
dispunha de numerário suficiente para fazer frente às despesas inscritas em restos a pagar.
Conforme demonstrativo elaborado pela equipe técnica, a Prefeitura apresentava iliquidez de R$ 2.132.872,30 em 30 04-2016 e, ao final do exercício, passou para uma situação de iliquidez ainda maior, de R$ 3.602.452,16, em descumprimento ao artigo 42 da LRF. O Município foi alertado por 8 (oito) vezes sobre a questão, mas não adotou providências para justar o descompasso entre as disponibilidades financeiras e as exigibilidades.
Sobre essa questão, lembro, por oportuno, as orientações traçadas nos Manuais deste Tribunal, mais precisamente naquele intitulado" Os Cuidados com o último ano de Mandato ":
[...]
Em face de sua previsibilidade, as despesas continuadas, freqüentes, corriqueiras, não geradas, propriamente, entre maio e dezembro, precisam, óbvio, de suporte de caixa. Do contrário, estaria sancionada afronta a fundamento de responsabilidade fiscal, validando-se empenhos sem cobertura financeira e, daí, mais dívida para o mandatário seguinte. De mais a mais, gestores irresponsáveis reservariam numerário para as novas despesas, aquelas contratadas entre maio e dezembro do último ano, deixando descobertas as geradas em época pretérita, às quais, vale ressaltar têm maior vulto; relacionam-se à operação e manutenção da máquina pública.
Diante de tudo isso, aqui se recomenda que, deficitária em 30 de abril do último ano de mandato, recuse a Prefeitura despesa nova; isso, para que possa monetariamente suportar os gastos preexistentes, daí não transferindo mais dívida ao próximo gestor. Para tanto, deve a administração valer-se da limitação de empenho e de rigorosa planificação de caixa" (fls. 247/249).
Em que pese a tentativa do réu e da combativa Defesa técnica em abonar a conduta denunciada, o acurado reexame do acervo probatório coligido traduz inequívoca convicção quanto ao acerto do desate condenatório em relação ao imputado crime contra as finanças públicas, porquanto suficientemente demonstrado que na qualidade de Chefe do Poder Executivo do Município de Euclides da Cunha Paulista, o apelante ordenou e autorizou, nos últimos dois quadrimestres do ano em que encerrava seu mandato, a assunção de obrigações para as quais não deixou disponibilidade de caixa para o correspondente cumprimento no exercício subsequente, em contrariedade à norma inserta no artigo 42, da Lei Complementar nº 101/2000 ( Lei de Responsabilidade Fiscal), amoldando- se, pois, ao delito tipificado no artigo 359-C, do Código Penal.
Como se viu, as provas oral e documental bem revelaram que as obrigações assumidas e autorizadas pelo acusado entre maio e dezembro de 2016 não tiveram contrapartida suficiente de recurso financeiro ou previsão orçamentária para tais pagamentos, tendo finalizado o mandato com déficit na ordem de R$ 3.602.452,16 (três milhões, seiscentos e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e dois reais e dezesseis centavos), considerando as despesas empenhadas no mencionado período.
[...]
Ressalte-se que, mesmo ciente do período em que se encontrava (dois últimos quadrimestres de seu mandato) e da falta de disponibilidade em caixa, não é exigido do agente nenhuma finalidade específica para configuração do delito ou favorecimento pessoal em face da conduta, bastando, pois, o dolo genérico para a caracterização da prática ilícita em tela.
Nessa esteira, restou satisfatoriamente demonstrado o dolo exigido pelo tipo penal em debate, mormente porque o Tribunal de Contas do Estado advertiu o Município de Euclides da Cunha Paulista, expressamente e por oito oportunidades, a respeito do descompasso entre as receitas e as despesas municipais e, mesmo assim, o seu gestor não conteve os gastos não obrigatórios durante o período depurador das finanças públicas (últimos oito meses de mandato), ciente, ainda, que as obrigações assumidas não seriam resgatadas no mesmo exercício e que não haveria saldo no exercício seguinte para honrá-las.
Nesse diapasão, não obstante a invocada carência de recursos do Município, inclusive diante do delicado contexto de sucessões de gestores em um mesmo mandato e das dificuldades econômicas enfrentadas pelo País, certo é que a Defesa não demonstrou que as despesas assumidas e autorizadas nos dois últimos quadrimestres correspondiam a serviços essenciais, obrigatórios ou inadiáveis, tampouco que o réu tenha efetivamente adotado medidas concretas e planejadas para evitar ou minimizar a persistência na prática da conduta defesa por lei, não sendo suficiente as declarações das testemunhas de defesa no sentido de que ele estaria preocupado com a situação financeira e fiscal da municipalidade e de que tinham conhecimento que o Prefeito estaria tomando as providências cabíveis para a contenção de gastos.
O acusado, por seu turno, embora tenha se justificado em razão da crise financeira e das dívidas preexistentes, enquanto ordenador e/ou autorizador de despesas à época, deixou evidente que tinha conhecimento sobre a situação contábil da Prefeitura Municipal, tendo, contudo, contraído obrigações de despesas que não poderiam ser cumpridas na sua gestão, desprovidas, no mais, de contrapartida suficiente de disponibilidade de recursos para o mandatário seguinte.
Como se vê, as instâncias de origem, com apoio nas provas dos autos, concluíram pela presença de elementos de convicção suficientes para embasar a condenação em desfavor do acusado, mormente pela prova testemunhal, documental e técnica realizadas. O paciente, na qualidade de prefeito do Município de Euclides da Cunha Paulista, durante o período que exerceu o mandato (de setembro de 2015 a dezembro de 2016), teria incidido nas penas do art. 359-C do CP:
Ordenar ou autorizar a assunção de obrigação, nos dois últimos quadrimestres do último ano do mandato ou legislatura, cuja despesa não possa ser paga no mesmo exercício financeiro ou, caso reste parcela a ser paga no exercício seguinte, que não tenha contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos
Consignou-se que "as provas oral e documental bem revelaram que as obrigações assumidas e autorizadas pelo acusado entre maio e dezembro de 2016 não tiveram contrapartida suficiente de recurso financeiro ou previsão orçamentária para tais pagamentos, tendo finalizado o mandato com déficit na ordem de R$ 3.602.452,16" (fl. 118).
Asseverou-se que uma das testemunhas ouvidas, atual prefeito do município, "constatou a existência de restos a pagar do ano de 2016, em torno de quatro milhões de reais a título de déficit orçamentário. Destacou que o Tribunal de Contas rejeitou as contas do Município relativamente ao período anterior, oportunidade em que foram apuradas diversas irregularidades" (fl. 113), diante desse cenário, contratou auditoria particular, cujos resultados foram entregues ao Ministério Público e à Autoridade Policial.
Ainda foi destacado que o Tribunal de Constas de São Paulo rejeitou as constas do município, diante da violação do art. 42 da LRF, por falta de cobertura monetária para as obrigações empenhadas e liquidadas nos últimos dois quadrimestres do mandato. Além disso, segundo o Tribunal de contas e a testemunha SamantaXXXXXXXXXX, contadora do município, foram diversos alertas e notificações sobre os déficits orçamentários, de modo a evidenciar a ciência pelo paciente dos fatos, sem que isso correspondesse à redução dos gastos, tampouco contingenciamento, mas ocorreu o inverso, aumento de despesas. Consta do parecer da Corte de contas que (fls. 116/117):
Conforme demonstrativo elaborado pela equipe técnica, a Prefeitura apresentava iliquidez de R$ 2.132.872,30 em 30-04-2016 e, ao final do exercício, passou para uma situação de iliquidez ainda maior, de R$3.602.452,16, em descumprimento ao artigo 42 da LRF. O Município foi alertado por 8 (oito) vezes sobre a questão, mas não adotou providências para justar o descompasso entre as disponibilidades financeiras e as exigibilidades.
Contudo, apesar da conclusão a que chegaram as instâncias ordinárias, o Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de se manifestar a respeito do delito do art. 359-C do CP.
No HC n. 723.644/SP, decidiu-se que "É essencial que todos os elementos da norma penal incriminadora estejam satisfeitos para que se possa submeter o réu às consequências previstas. A condenação pelo art. 359-C do Código Penal deve especificar despesas contraídas nos dois últimos quadrimestres do mandato, que não puderam ser pagas no mesmo exercício financeiro ou no exercício seguinte. Essa análise não pode ser global, considerando a iliquidez total do caixa, sob pena de prejudicar a ampla defesa." (HC n. 723.644/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 9/3/2023.).
Nessa ordem de ideias, diante da não especificação da despesas ou despesas contraídas nos dois últimos quadrimestres, a Sexta Turma afastou a incidência do art. 359-C do CP.
Dos autos não é possível extrair raciocínio diverso, ou seja, indicação específica da despesas ou despesas contraídas, considerando a constante referência ao fato de que "as obrigações assumidas e autorizadas pelo acusado entre maio e dezembro de 2016 não tiveram contrapartida suficiente de recurso financeiro ou previsão orçamentária para tais pagamentos, tendo finalizado o mandato com déficit na ordem de R$ 3.602.452,16" (fl. 118).
Apesar de não ser possível visualizar a devida relação de tipicidade com o delito previsto no art. 359-C do CP, nos termos do art. 383 do CPP, nada impede que os fatos em questão possuam adequação com outro crime, a exemplo das condutas previstas no DL 201/67, aplicáveis a prefeitos municipais.
Nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal, essa hipótese pode levar à correção da imputação pelo Juízo, não necessariamente à absolvição do paciente.
Ante o exposto, concedo parcialmente o habeas corpus para afastar a prática do crime do art. 359-C do CP, com determinação de novo julgamento da apelação para que se verifique adequação com outro tipo penal, como entender de direito.
Comunique-se.
Publique-se.
Intimem-se.
Brasília, 14 de dezembro de 2023.
(STJ - HC: 800745, Relator: JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), Data de Publicação: 15/12/2023)
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