STF Set23 - Crime de Desenvolvimento de Rádio Clandestina - Princípio da Insignificância Aplicado

 

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 228.616 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. ANDRÉ MENDONÇA

COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO

HABEAS CORPUS . MATÉRIA NÃO APRECIADA PELO ÓRGÃO IMPETRADO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIME DE DESENVOLVIMENTO CLANDESTINO DE ATIVIDADES DE TELECOMUNICAÇÃO (ART. 183 DA LEI Nº 9.472, DE 1997). INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO JURÍDICA PROVOCADA. PRECEDENTES. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. NEGATIVA DE SEGUIMENTO. CONCESSÃO DA ORDEM, DE OFÍCIO.

1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão pelo qual a 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 2.331.628/SP.

2. Colhe-se dos autos que o paciente foi condenado, em 1a instância,

a 2 anos de detenção, no regime inicial aberto, e ao pagamento de 10 dias-

4. Interposto agravo ao STJ, a Ministra Presidente não conheceu do recurso. Seguiu-se o agravo regimental do qual resultou o ato apontado como coator.

5. Neste habeas corpus , os impetrantes apontam ofensa ao sistema acusatório, tendo em vista a condenação do paciente mesmo diante do pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público Federal em sede de alegações finais. Alegam a ocorrência de erro sobre a ilicitude do fato, a resultar na isenção de pena, nos termos do art. 21 do Código Penal. Sustentam, ainda, a atipicidade material da conduta, com fundamento no princípio da insignificância, argumentando que o aparelho utilizado pelo paciente tinha apenas 4,23W de potência.

6. Requerem, em âmbito liminar e no mérito, seja determinado ao STJ o exame da matéria de fundo do recurso especial ou, caso assim não se entenda, que sejam analisadas e acolhidas por esta Suprema Corte as razões expostas, absolvendo-se o paciente.

É o relatório.

Decido.

7. As questões suscitadas neste habeas corpus não passaram pelo crivo do STJ. No ato apontado como coator, a 5a Turma limitou-se a manter a decisão agravada por seus próprios fundamentos, ou seja, a ausência de impugnação específica dos fundamentos pelos quais fora inadmitido o recurso especial, o que atraiu a incidência do verbete nº 182 da Súmulado STJ. A atuação originária do STF acarretaria supressão de instância e ado STJ. A atuação originária do STF acarretaria supressão de instância e a ampliação indevida da competência prevista no art. 102 da CRFB. Assim decidiram o Plenário e ambas as Turmas: HC nº 109.430-AgR/DF, Rel.p. 20/04/2020; e HC nº 163.568/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. do Acórdão Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 13/08/2019, p. 30/08/2019.

8. Verificada a inadequação da via eleita, a concessão da ordem de ofício é providência excepcional , a ser implementada somente quando constatada flagrante ilegalidade, abuso de poder ou mesmo teratologia na decisão impugnada. Entendo ser o caso dos autos, no que diz respeito à possibilidade de incidência do princípio da insignificância.

9. O princípio em questão surgiu no Direito Romano, no entanto restringia-se ao âmbito cível, com suporte no brocardo de minimis non curat praetor (o magistrado não deve se ocupar de assuntos irrelevantes). Na década de 1970, foi introduzido ao Direito Penal, a partir dos estudos de Claus Roxin. Tem por finalidade limitar o campo de incidência do tipo penal, evitando-se a punição de comportamentos criminosos irrelevantes que resultem em lesão inexpressiva ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Afasta-se a tipicidade material da conduta - não obstante formalmente típica - quando, como dito, não demonstrada lesão substancial ao bem jurídico. Conforme preleciona Assis Toledo:

"(...) segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção ao bem jurídico. Não deve se ocupar de bagatelas."

(TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal , São Paulo: 5a ed. Saraiva, 2002, p. 133).

10. Seu postulado decorre da interpretação dos seguintes princípios basilares do Direito Penal, que se inter-relacionam:

"(i) da intervenção mínima (o direito penal só deve ser utilizado como ultima ratio (ii) da fragmentariedade (o direito penal é um" sistema descontínuo de ilicitudes ", que somente se destina a proteger determinadas ofensas a certos bens jurídicos, sendo vedada a analogia para preencher lacunas sob o pretexto de resguardá-los); (iii) da subsidiariedade (só se deve lançar mão do direito penal caso outros ramos do direito não sejam capazes de oferecer uma resposta satisfatória); e (iv) da lesividade (não há crime sem lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico pertencente a outrem)."

(BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro . Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 82-94; grifos nossos).

11. No HC nº 84.412/SP (Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. 19/10/2004, p. 19/11/2004), o Supremo Tribunal Federal definiu vetores para aplicação do princípio da bagatela, a saber: "(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada." Essas diretrizes, desde então, têm norteado a atuação dos Ministros desta Corte.

12. Na hipótese, a aplicação do princípio foi afastada pelo Juízo de origem, por compreender que, de acordo com a prova técnica produzida, a conduta do paciente tinha a potencialidade de "causar interferência em serviços devidamente autorizados pela ANATEL". Além disso, de acordo com a jurisprudência do STJ , o princípio não seria aplicável, por se tratar de delito de perigo abstrato. Eis o trecho pertinente da sentença, mantida pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região:

"(...) Já o fato de a potência que operava o rádio ao ser apreendido ser mínima, como alegam as partes, não enseja a aplicação do princípio da insignificância, visto que a potencialidade de causar interferência em serviços devidamente autorizados pela ANATEL restou clara quando da realização da pericia no equipamento apreendido (quesito V das fls. 91/92).

(...)

Ainda neste sentido, embora a defesa tenha requerido a aplicação do princípio da insignificância este incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas:

(a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Entretanto, o bem jurídico tutelado pelo art. 183 da Lei 9.472/97 está consubstanciado no adequado e seguro funcionamento dos serviços de comunicação regularmente instalados no país. O funcionamento clandestino de aparelhos em frequência capaz de interferir no regular funcionamento dos serviços de comunicação devidamente autorizados impede a aplicação do princípio da insignificância.

No presente caso, ficou evidenciado que o réu desenvolveu clandestinamente atividade de telecomunicação, como antes fundamentado. O próprio fiscal da ANATEL deixou claro, ao ser ouvido, que, da maneira como vinha sendo utilizado o aparelho, de forma indevida, havia sim a necessidade de autorização da ANATEL. Além disso, mais uma vez relembre-se a observação feita pelo perito no laudo de fls. 88/92 ao afirmar a possibilidade de haver interferências em outros meios de comunicação - MÓVEL AERONÁUTICO, RADIONAVEGAÇÃO POR SATÉLITE, etc.

Ademais, há jurisprudência pacifica do Superior Tribunal de Justiça no sentido de ser impossível a incidência, em delitos como o apurado, do princípio da insignificância , posto tratar-se de delito formal de perigo abstrato." (e-doc. 2,

p. 389-390; grifos nossos).

13. O entendimento veiculado, porém, contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Com efeito, esta Corte tem reconhecido a insignificância penal das condutas enquadradas, em tese, no tipo penal do art. 183 da Lei nº 9.472, de 1997, quando a potência do equipamento transmissor não ultrapassa 25W , parâmetro estipulado no art. § 1º, da Lei nº 9.612, de 1998, para se considerar de baixa potência um serviço de radiodifusão comunitária.

"Art. 1º Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em frequência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço.

§ 1º Entende-se por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado a comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros." (grifos nossos).

14. Nesse sentido:

"Agravo regimental no habeas corpus. 2. Ambas as turmas do Supremo Tribunal Federal têm aplicado o princípio da insignificância, nos casos que envolvem clandestinidade de rádio com transmissor de até 25 Watts . 3. Programação da rádio com alcance de até um quilômetro, com potência de 20W.

4. Aplicação do princípio da insignificância. 5. Agravo regimental desprovido."

(HC nº 185.355-AgR/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 28/03/2022, p. 04/04/2022; grifos nossos).

"Habeas Corpus. Penal. Desenvolvimento de atividades clandestinas de telecomunicação. Artigo 183 da Lei nº 9.472/97. Princípio da insignificância. Possibilidade, em razão das particularidades do caso concreto. Precedente. Inexistência de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. Demonstração da ausência de periculosidade social da ação e do reduzido grau de reprovabilidade da conduta. Ordem concedida. 1. O exame pericial elaborado pela ANATEL, que demonstrou que a suposta operação de rádio clandestina seria de baixa potência, não comprovou a sua efetiva interferência nos serviços de comunicação devidamente autorizados, o que demonstra a ausência de potencialidade lesiva ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal incriminador . 2. A constatação da fiscalização de que a programação da rádio ‘era basicamente constituída de conteúdo evangélico’ (fl. 9 do anexo

3) permite concluir a ausência de periculosidade social da ação e o reduzido grau de reprovabilidade da conduta do paciente, o que abre margem para a observância do postulado da insignificância, já que preenchidos os seus vetores. 3. Ordem concedida."

(HC nº 122.507/ES, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma,

15. Sendo assim, avalio que, na espécie, a conduta do paciente pode ser considerada insignificante, não se verificando lesão jurídica relevante ao bem jurídico protegido, em razão da baixíssima potência do aparelho transmissor , de 4,23W , conforme o relatório de fiscalização da Anatel (e- doc. 2, p. 29), assim como da inexistência de outras circunstâncias que revelem especial gravidade da conduta.

j. 19/08/2014, p. 07/10/2014; grifos nossos).

16. A ausência de lesividade da ação foi reconhecida, inclusive, pelo Ministério Público Federal, que postulou, em duas ocasiões, a absolvição do paciente : em alegações finais (e-doc. 2, p. 306) e nas contrarrazões ao

recurso de apelação (e-doc. 2, p. 439).

17. Nesse cenário, sob o prisma dos princípios da intervenção mínima, lesividade, fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal, que, como dito, alicerçam a teoria da insignificância, entendo evidenciada a atipicidade material da conduta.

18. Por todo o exposto, nego seguimento ao habeas corpus, mas, com base no art. 192 do RISTF, concedo a ordem, de ofício, para absolver o paciente , nos termos do art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal, da imputação veiculada no processo-crime nº 0000190-03.2017.4.03.6125, originário da 1a Vara Federal de Ourinhos/SP .

Comunique-se, com urgência. Publique-se. Brasília, 7 de setembro de 2023.

Ministro ANDRÉ MENDONÇA

Relator

(STF - HC: 228616 SP, Relator: ANDRÉ MENDONÇA, Data de Julgamento: 07/09/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08/09/2023 PUBLIC 11/09/2023)

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