STF Set23 - Trancamento de Inquérito junto ao STJ - Investigação contra Desembargador - Prorrogação sem Justificativas - Foro de Prerrogativas
Inteiro Teor
HABEAS CORPUS 228.152 DISTRITO FEDERAL
RELATOR : MIN. GILMAR MENDES
COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DECISÃO: Trata-se de habeas corpus impetrado por XXXXXX e outros em favor de THIAGO XXXXXXXXXXXX contra decisão do Superior Tribunal de Justiça nos autos do Inq 1.404/DF que deferiu a prorrogação de prazo para investigação.
Colho do ato coator:
"Tendo a autoridade policial encaminhado a esta Corte o Ofício nº 129454/2023 - DELECOR/DRCOR/SR/PF/BA (fls. 100.361), por meio do qual requereu dilação de prazo para continuidade das apurações, foi dada vista dos autos ao Ministério Público Federal, que opinou favoravelmente à prorrogação pelo prazo de 90 (noventa) dias, dada a necessidade de"conclusão das diligências pendentes, sobretudo a análise da ação de improbidade administrativa nº 1058672- 75.2021.4.01.3300".
" Assim, acatando-se a manifestação do Ministério Público Federal e o pedido da autoridade policial, e considerando-se que se trata de investigação complexa, com alto volume de documentos, DEFERE-SE o pedido de prorrogação do prazo para a continuidade das investigações, pelo período de 90 (noventa) dias, a contar da data em que a autoridade policial seja comunicada da prorrogação. "(eDOC 18)
A defesa alega, em síntese, excesso de prazo da investigação criminal em curso, iniciada em 25.05.2020, por ter se iniciado, de fato, no contexto do Inq 1.099/DF, que teve seu início em 14.03.2016.
A Procuradoria Geral da República opinou pela denegação da ordem. (eDOC 25)
É o relatório.
Decido.
Em que pese a instauração formal do Inq 1.404 ter se dado em 25.05.2020, a investigação iniciou-se no ambiente do Inq 1.099/DF, fato evidenciado pelas sucessivas autorizações deferidas para todos os inquéritos de forma conjunta, como atestado pelo eminente Ministro Relator do Superior Tribunal de Justiça, cito:
"Em 27.05.2020, foi autorizada a instauração do inquérito - com o número 1.404/DF - e determinadas as primeiras medidas investigativas, com o compartilhamento das provas produzidas nos Inquéritos n. 1.099 e 1.134 e a expedição de ofício voltado à obtenção dos dados oriundos da quebra do sigilo bancário e fiscal do ora paciente, nos autos do processo n. 1002403.55.2017.4.01.3300, em curso na primeira instância.
"Em 21.03.2021, foi deferido pedido do Ministério Público Federal, com a expedição de ofício ao Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região e ao juízo da 3a Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia, com a finalidade de acesso aos autos de interesse da investigação.
"Diante da dificuldade na obtenção de cópias dos dados sigilosos constantes da Ação de Improbidade Administrativa n. 1002403.55.2017.4.01.3300, foi determinada a expedição de novo ofício ao juízo de primeiro grau, em 1º.03.2022, diligência que apenas alcançou seu fim em agosto de 2022, com o acesso dos dados pela autoridade policial.
"Sobrevieram o compartilhamento dos autos da Ação de Improbidade Administrativa n. 1013914-11.2021.4.01.3300, em setembro de 2022, e da Ação de Improbidade Administrativa n. 1058672-75.2021.4.01.3300 (no conexo Inq. 1.099/DF), em outubro de 2022.
"Importante ressaltar que as investigações levadas a efeito no Inq 1.404/DF dialogam com aquelas em curso nos inquéritos Inq 1.134/DF e 1.099/DF - este último objeto de recente ordem de trancamento oriunda do Supremo Tribunal Federal ( HC n. 222.197 /DF) -, todas relacionadas a possíveis atos criminosos praticados no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região, razão pela qual a prorrogação dos inquéritos vem ocorrendo de forma conjunta.
"Anote-se ainda que a continuidade das investigações levou à propositura de denúncia, em relação a determinados fatos, em 21.10.2021, gerando a Ação Penal 981/DF, na qual figuram como denunciados a Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região, M. A. A. do N., e o advogado A. H. de A. C. S., citados na hipótese criminal relativa ao paciente.
"Os investigados A. H. de A. C. S. e T. B. F. de A. apresentaram pedidos de trancamento do inquérito, pendentes de apreciação diante da remessa do feito ao Ministério Público Federal, para prévia manifestação, em 16.05.2023.
"Por fim, aponto que a última prorrogação do prazo do inquérito ocorreu em 06.02.2023, por 90 dias, no âmbito do Inq. 1.099/DF, medida estendida aos inquéritos conexos. Posteriormente, a autoridade policial solicitou nova prorrogação do prazo, por meio de ofício datado de 16.05.2023 (autos do Inq n. 1.134/DF), pontuando que"ainda existem diligências pendentes, tais como oitivas, resposta a documentos que foram solicitados, inclusive ao TRT 5a Região", estando a decisão quanto à prorrogação pendente de apresentação de parecer pelo Ministério Público Federal, com remessa em 16.05.2023". (eDOC 23, p.3-4)
O objeto do desmembramento se restringiu aos seguintes pontos da investigação antecedente Inq. 1.099:
"Fato 1: Caso XXXXXX - supostas manobras destinadas
a beneficiar parte Executada nos autos do processo nº 00000131- 79.2014.5.05.0014;
"Fato 2: Caso TV XXXXXX - suposta atuação irregular do Paciente em carga do processo 0000566-29.2010.5.05.0035 enquanto substituía o expediente da 35a Vara do Trabalho do TRT-5;
"Fato 3: Caso Hotel XXXXXXX - suposta atuação irregular do Paciente em leilão de imóvel por ele realizado;
"Fato 4: Caso Praia XXXXXX - suposta atuação irregular na condução do processo nº 0001330-73.2014.5.05.0132, o que teria prejudicado locatário de imóvel levado à hasta pública"
A partir da experiência das Cortes Internacionais e de Direitos Humanos, consoante aponta Nereu Giacomolli [O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 326], os critérios para aferição, em concreto (STF, HC 116.029, Ministra ROSA WEBER), da violação da duração razoável dos procedimentos de apuração e de julgamento, são indicados: [a] natureza e espécie do caso penal concreto; [b] complexidade da investigação do caso; [c] comportamento procedimental do arguido, postergando, limitando ou restringindo a atividade de persecução penal; e, [d] conduta e justificativas das autoridades estatais quanto ao motivo da demora.
Ainda que se tolere a prorrogação de investigações em casos de manifesta complexidade ou de atividade evasiva defensiva, a hipótese concreta envolve 4 (quatro) situações bem definidas, com facilidade de aquisição dos documentos, localização das pessoas envolvidas, com plena possibilidade de execução das diligências complementares a tempo e modo. Não se trata de caso complexo, com especificidades aptas à prorrogação indefinida da situação jurídicas dos envolvidos. Ademais, a defesa não se noticiou qualquer evasiva defensiva.
Vale destacar que, como demonstrado pela defesa (eDOc 1 p.17-18), as dilações do prazo investigativo não resultaram em nenhum relatório de investigação acostado aos autos de modo substancial, de modo que o simples prazo investigativo mostra-se desnecessário e irrazoável, com similitude fático-normativa com o julgamento do caso anterior ( HC 222.197, de minha relatoria). O fato de ter sido exercida a Ação Penal em relação a evento autônomo corrobora o excesso de prazo da presente investigação, desprovida de avanços significativos.
No julgamento da Reclamação 46353, o Min. Ricardo Lewandowski asseverou:
" Destarte, não fosse apenas o evidente excesso de prazo que macula a investigação, a qual já perdura por mais de 4 (quatro) anos, sem qualquer resultado consistente, forçoso é concluir que ela está ancorada apenas nas declarações dos delatores, sem que encontrem conforto em quaisquer elementos externos de corroboração, a exemplo de provas documentais ou testemunhais, aptos a indicar o cometimento dos crimes imputados ao reclamante ".
Essa é a orientação jurisprudencial desta Suprema Corte, conforme se pode constatar nos seguintes precedentes monocráticos: Inq 4.429/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes; Inq 4.442/DF, Rel. Min. Roberto Barroso. A propósito, transcrevo a elucidativa ementa do último precedente:
"PROCESSO PENAL. INQUERITO. ENCERRAMENTO DO PRAZO PARA CONCLUSAO DAS INVESTIGACOES SEM APRESENTACAO DE RELATORIO POLICIAL OU MANIFESTACAO CONCLUSIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ARQUIVAMENTO. POSSIBILIDADE.
"1. A mera instauração de um Inquérito pode trazer algum tipo de constrangimento às pessoas com foro por prerrogativa de função. [...] Ponderados esses dois interesses, somente se deve afastar de antemão uma notícia-crime quando completamente desprovida de plausibilidade.
"2. No entanto, isso não significa que os agentes públicos devam suportar indefinidamente o ônus de figurar como objeto de investigação, de modo que a persecução criminal deve observar prazo razoável para sua conclusão.
"3. No caso dos autos, encerrado o prazo para a conclusão das investigações, e suas sucessivas prorrogações, o Ministério Público, ciente de que deveria apresentar manifestação conclusiva, limitou-se a requerer a remessa dos autos ao Juízo que considera competente. Isso significa dizer que entende não haver nos autos elementos suficientes ao oferecimento da denuncia, sendo o caso, portanto, de arquivamento do inquérito. 4. [...] 5. Inquérito arquivado".
É disso que se trata. Embora as diligências requeridas e deferidas, o contexto dos autos autoriza inferir que desde 2016 o paciente e os demais investigados estão submetido às contingências de apuração criminal, com prorrogações, diligências, decisões cautelares e outras providências, sem que houvesse a finalização da etapa de investigação criminal, nem a colheita de indicadores robustos quanto à responsabilidade penal.
Destaque-se que o pedido de prorrogação noticiado nas informações como sendo o necessário à finalização dos atos de investigação não restou satisfeito, autorizando concluir a perseverança da situação de incerteza, com violação da devida duração razoável da etapa de investigação.
Rômulo de Andrade Moreira (O direito à duração razoável da investigação criminal. Conjur) aponta:
"Seria um grave equívoco hermenêutico e um atentado mesmo aos direitos fundamentais limitar a expressão ‘duração razoável do processo’ à segunda fase da persecutio criminis , ou seja, a fase judicial propriamente dita; pelo contrário, deve-se também entender que a fase investigatória (preliminar ao exercício da ação penal) não admite igualmente dilações indevidas".
Consoante asseverei ao julgar o HC 107.263/SP, Segunda Turma, DJe 05/09/2011, tenho reiteradamente afirmado que não se deve banalizar a persecução criminal, pois tal atitude está a afrontar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, entre nós, tem base positiva no art. 1º, III, da Constituição Federal.
Como consabido, na acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do humano em objeto dos procedimentos e ações estatais. O Estado vincula-se ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.
A propósito, em comentários ao artigo 1º da Constituição alemã, Günther Dürig acentua que a submissão do humano a procedimento estatal indefinido e sua degradação como objeto de processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana ["Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs ."] (MAUNZ/DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1 18). Não é difícil perceber os danos que a mera existência de procedimento penal impõe ao indivíduo, sobretudo no presente caso, em que a reputação dos investigados é afetada pela demora irrazoável do desfecho do caso concreto.
É com base nessa função de garantia dos direitos fundamentais que a Segunda Turma determinou, de ofício, o arquivamento de inquérito pendente sem que houvesse justa causa para prosseguimento das investigações (Pet-AgR 7.354, Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 6.3.2018). Em outro feito, o Min. ALEXANDRE DE MORAES determinou o arquivamento de inquérito, concluído havia meses com relatório policial pelo arquivamento, sem ulterior impulso pelo Ministério Público Federal ( Inq 4.429, decisão de 8 de junho de 2018). O Min. ROBERTO BARROSO determinou providência semelhante em inquérito de sua relatoria - Inq 4.442, decisao de 6.6.2018. Naquele feito, bem observou o eminente Ministro que a prerrogativa pública de realizar apurações não significa que os agentes públicos investigados deveriam suportar indefinidamente o ônus de figurar como objeto de investigação, de modo que a persecução criminal deve observar prazo razoável para sua conclusão.
Em todos os precedentes acima mencionados, procurou-se não submeter os investigados a procedimentos infindáveis, sem robusto e concreto avanço investigativo, por prazo desarrazoado e destituído de elementos mínimos de materialidade e autoria delitivas.
Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir o relevante papel atribuído ao Poder Judiciário de controlar a investigação preliminar, limitando eventuais abusos na persecução penal e resguardando direitos e garantias fundamentais (BERNARDO, Isabella da Conceição. Manual de Inquérito, Processamento e Julgamento de Autoridades com Foro de Prerrogativa de Função e de Imunidades e Inviolabilidades de determinados agentes. Rio de Janeiro: Multifoco, 2022, p. 43-52). Penso, inclusive, que essa função do inquérito enquanto instrumento de controle e seleção se aplica inclusive em sua fase inicial, sob pena de se admitir a instauração ou prorrogação de investigações que se demonstram, desde já, infundadas ou inviáveis, inclusive quanto à duração razoável, consoante, aliás, decidido no julgamento da ADI 6298 (Juiz das Garantais).
Leonardo Marcondes Machado [Manual de Inquérito Policial. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 141] bem resume o contexto:
"A garantia da duração razoável impõe ao sistema de justiça criminal uma persecução penal limitada no tempo, de maneira que se realize"sem dilações indevidas", o que também se projeta ao momento específico da investigação preliminar. Esse lapso temporal deve ser marcado pelo equilíbrio, a impedir extremos condenáveis. Não se busca instantaneidade tampouco eternidade. A persecução criminal não pode ser uma via rápida (à moda fast food), uma vez que violaria garantias indispensáveis a uma estrutura democrática e compatível com o
Estado de Direito. De outro lado, também não pode transformar-se em castigo sem fim, cujas penas persecutórias se arrastam indefinidamente ao longo do tempo e da vida dos sujeitos alcançados pelo sistema de justiça criminal em nítida ofensa à dignidade da pessoa humana".
Ante o exposto, concedo a ordem para determinar o trancamento do Inquérito 1.404 do Superior Tribunal de Justiça, em relação aos fatos e aos investigados, diante da violação da duração razoável da investigação ( CF, art. 5º, LXXVIII) e da dignidade da pessoa humana ( CF, art. 1º, III).
Publique-se.
Intimem-se.
Comunique-se ao relator do Inq 1404 junto ao STJ.
Brasília, 6 de setembro de 2023.
Ministro GILMAR MENDES
Relator
Documento assinado digitalmente
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(STF - HC: 228152 DF, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 06/09/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 06/09/2023 PUBLIC 08/09/2023)
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