STJ 2023 - Corrupção - Inépcia da Denúncia - Oferecer Cargos para o Legislativo Votar com o Governo é Praxe Nacional (Toma lá, dá Cá) - Trancamento de Ação Penal - Crime Formal que Exige Ato de Ofício
Inteiro Teor
HABEAS CORPUS Nº 701006 - SC (2021/0334551-3)
RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ
DECISÃO
ROGERIO MEDEIROS alega sofrer coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina no HC
Informam os autos que o paciente foi denunciado, no bojo da Operação Seival, por suposta prática do delito previsto no art. 317, § 1º, do Código Penal. A defesa pleiteia, em síntese, o trancamento da ação penal ao argumento da atipicidade da conduta e/ou da ausência de justa causa.
O Ministério Público Federal opinou pelo não provimento do recurso ordinário em habeas corpus.
Decido.
Inicialmente, consigno que o RHC n. 141.650 - cuja decisão em que concedi a ordem em favor de corréu é invocada pela defesa -, oferece situação em tudo similar a destes autos.
Decido.
I. Contextualização
A denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal, em relação ao acusado, apresenta a seguinte narrativa (fls. 33-39, destaquei):
[...]
1. Contextualização:
No ano de 2017, foi deflagrada a denominada Operação Seival, decorrente de intensa investigação que desvendou a existência de extensa e complexa organização criminosa formada por agentes públicos, profissionais técnicos e empresários e voltada para a prática de delitos contra a administração pública, notadamente corrupção passiva e ativa e fraudes em licitações relacionadas a obras e oferecimento de materiais, com atuação intensa no Município de Laguna nos anos de 2016 e 2017, o que culminou na propositura das Ações Penais n. 0002834-17.2017.8.24.0040, 0002835-02.2017.8.24.0040 e 0002836-84.2017.8.24.0040.
[...]
Após a deflagração da primeira fase da operação, os integrantes da organização Antônio XXXXx ("Tono") e Adílio XXXXXXX celebraram acordos de colaboração premiada com o Ministério Público de Santa Catarina e a Polícia Civil de Santa Catarina, devidamente homologados nos autos n. 0015156- 58.2018.8.24.0000, cujos anexos ensejaram a instauração de diversos Inquéritos Policiais e Procedimentos Investigatórios Criminais, no âmbito da Polícia Civil e do Ministério Público.
Os fatos trazidos pelas colaborações evidenciaram que a organização criminosa até então desvendada era ainda maior e mais complexa, espraiando-se por outros órgãos e entidades do Município e enredando outros vereadores do partido político que dirige os Poderes Executivo e Legislativo do Município de Laguna, bem como envolvendo a prática de vários outros crimes contra a administração pública.
As colaborações premiadas foram corroboradas por documentos apresentados, depoimentos colhidos, conversas telefônicas interceptadas e documentos apreendidos ainda na primeira fase da operação e confecção de relatórios de investigação, ensejando, nesta segunda fase da operação, diversas ordens cautelares de busca e apreensão, prisões preventivas e temporárias, sendo a principal relacionada a estes autos a cautelar de n. 0000003- 88.2020.8.24.0040.
Os novos documentos apreendidos e depoimentos colhidos após a deflagração da Operação Seival II também corroboram o conteúdo das colaborações, sendo que o presente feito se referirá aos fatos narrados nos Anexos 9/2018 da colaboração de XXXX Marcelino e 11 e 39/2018 de Antônio XXXXXXXXXX("Tono"), de modo que os demais anexos e crimes a estes relacionados serão tratados em procedimentos próprios.
[...]
4. Recondução para Presidência da Câmara de Vereadores para o biênio 2019/2020:
4.1 Conjuntura Política:Após toda negociata ilícita para ser eleito Presidente da Câmara de Vereadores no biênio2017/2018, XXXXXXXX ("Amiguinho"), sabendo o quanto lhe custou oconvencimento ilícito dos vereadores, queria, desde logo, garantir sua recondução para obiênio 2019/2020, "pagando uma e levando duas". Foi assim que, após apenas pouco mais de 6 meses do desempenho do mandato de vereador ePresidente da Câmara, em 10 de julho 2017, XXXXXXXXxx editou a Resolução n.7/2017 da Mesa Diretora, alterando o art. 16 do Regimento Interno, para que a eleição da MesaDiretora para o segundo biênio do mandato deixasse de ser realizada "no último semestre dosegundo ano de cada legislatura" e passasse a ser realizada juntamente com a eleição da MesaDiretora para o primeiro biênio, que ocorre no dia da posse - 1º de janeiro do ano em que seiniciam os mandatos, prevendo que "caso" não tenha sido realizada a eleição para o segundobiênio, esta deverá ser realizada na primeira sessão ordinária após a publicação da presenteResolução"(art. 2º), o que, evidentemente, era a situação para a qual confeccionada talResolução. Como visto, os vereadores ROBERTO XXXXXXXxx, ROGÉRIO XXXXXXS e VALDOMIROXXXXXx (" Macho ") não receberam nenhuma vantagem embora tenhamvotado em CLEOSMAR para Presidência da Câmara no biênio 2017/2018. Contudo, tinham conhecimento de que CLEOSMAR (" Amiguinho ") pagou aos demais vereadores na primeira eleição e estava usando a mesma" estratégia "na tentativa de garantir a reeleição, conforme comprova a conversa interceptada na primeira fase da Operação Seival entre VALDOMIRO (" Macho ") e ROGÉRIO: (...) Os citados vereadores que não receberam valores nem cargos comissionados - ROBERTO XXXXXX, XXXXXX (" Macho ") e ROGÉRIO XXXXXX - iniciaram uma movimentação, possivelmente também com emprego de vantagens indevidas, para formação de um chapa de oposição a CLEOSMAR, o qual, por seu turno, deu continuidade às práticas imorais, ilegais e criminosas para garantir sua manutenção na função da presidência no segundo biênio. Tal movimentação também foi acompanhada pela interceptação telefônica deferida na primeira fase da Operação Seival, conforme, exemplificativamente, demonstram conversas mantidas, em15/07/2017, por ROBERTO e VALDOMIRO (" Macho ") e por este e ROGÉRIO: (...) Portanto, as conversas interceptadas confirmam a forma como CLEOSMAR obteve suas eleições para Presidente da Câmara de Vereadores de Laguna, inclusive a existência dos pagamentos narrados no item 3, os quais eram de conhecimento dos vereadores. CLEOSMAR, inconformado com a movimentação para formação e apoio de uma nova chapa esentindo-se credor dos vereadores com os quais havia negociado a primeira eleição, passou a pressionar aqueles que recém havia comprado com cargos comissionados para eleição da Presidência para o biênio 2017/2018, exonerando as pessoas indicadas pelos que ameaçavam compor ou apoiar chapa diversa, começando por XXXXXXXXXX OSMAR XXXXXXXX(" Osmar do Gás "). Assim, CLEOSMAR exonerou, em 27/06/2017, Leonardo CXXXXXXXx, admitido em1º/02/2017 por indicação de RODRIGO; GuXXXXXXXXXXXXx, admitidos em 1º/02/2017 por indicação de PATRICK; Jonathas XXXXXXxx, admitido em 07/02/2017, e Adairton XXXXXXXXXx, admitido em 09/02/2017, por indicações de OSMAR. Na sequência, em 17/07/2017, foram exonerados aqueles indicados por THIAGO - XXXXXXX e José CXXXXXXXXXX (admitidos em 04/04/2017); RHOOMENING (" Pingo ") - Guilherme CXXXXXXx e Patrícia de OXXXXXXXx(admitidos em 9 e 1º/02/2017); e ADILSON - AXXXXX da Silva e Gabriel XXXXXXX (admitidos em 17 e 1º/02/2017). Tais exonerações nas mesmas datas, poucos meses após a admissão, de pessoas vinculadas a vereadores específicos e a conjuntura política que existia em torno da reeleição para presidência comprovam que realmente as admissões dos cargos comissionados estavam relacionadas à troca por apoio político e votos na eleição para
Mesa Diretora, especialmente ao cargo de Presidente, conforme narrado no item 3. A eleição para o biênio 2019/2020 somente não se realizou naquele momento porque CLEOSMAR, sabendo que, na data prevista para o pleito pela Resolução n. 7/2017 (primeira sessão ordinária após sua publicação - 17/07/2017), não possuía maioria para recondução e que perderia para a outra chapa que estava sendo formada, suspendeu a realização da votação sob o fundamento de que existia um Mandado de Segurança (n. 0301454-80.2017.8.24.0040) impetrado por ROGÉRIO MX discutindo o ato normativo editado, contudo, não havia qualquer decisão que determinasse a suspensão da eleição. Essa manobra de CXXX também foi noticiada pela mídia local: [...]
4.2 Crimes de Corrupção Ativa e Passiva:
Foi assim que, no período compreendido entre a segunda metade do mês de julho e dezembro de 2017, no Município de Laguna, CLEOSMAR FXXXXXXS, vulgo" Amiguinho ", no exercício e em razão de seu cargo de vereador e na função de Presidente da Câmara de Vereadores, com objetivo de ser reconduzido para tal função para o biênio 2019/2020, cuja eleição foi realizada em 11/12/2017, com auxílio de ANTÔNIO XXXXXX (" Tono "), solicitou para si vantagens indevidas, consistentes nos votos mediante retribuições dos vereadores VALDOMIRO XXXXXXx (" Macho "), ADILSON PAULINO (" Adilson Dois Irmãos "), THXXXXXxE, OSMAR VIEIRA (" Osmar do Gás "), PATRICXXXXXXXXXXXxK MATTOS DE OLIVEIRA,RXXXXXXXxS, ROBEXXXXXXXXXXS, RHOOMENING SXXXXXXXxES (" Pingo ") e ROGXXXXXXXOS, também no exercício e em razão de seus mandatos de vereadores, oferecendo e prometendo a eles vantagens indevidas consistentes em valores em dinheiro e cargos em comissão para determiná-los a não formarem chapa de candidatura diversa e a darem seus votos a CLEOSMAR, tendo eles recebido e aceitado as promessas de tais vantagens. Para tanto, CLEXXXXXXxxES, com auxílio de ANTÔNIO (" Tono "), ofereceu e prometeu e VALDXXXXXXXxRADE (" Macho ") aceitou a promessa e depois recebeu dois cargos em comissão de Assistente da Presidência, para os quais foram, realmente, nomeados os indicados por" Macho ": Rômulo Ângelo Vieira, admitido em 21/08/2017; e Michele Araújo Silva, admitida em 03/10/2017. A RXXXXXXxE MORAES, CLEOSMAR, com auxílio de ANTÔNIO (" Tono "), ofereceu e prometeu e o primeiro aceitou a promessa e depois recebeu a devolução do cargo em comissão que havia recebido por ocasião da eleição do primeiro biênio e a concessão de mais um cargo em comissão, sendo que o indicado LeoXXXXXXXXXa foi readmitido em16/08/2017 e Paulo RobXXXXXXxor foi admitido em 23/01/2018. Para ROBXXXXXXXxES, CLEOSMAR, com auxílio de ANTÔNIO (" Tono "), ofereceu e prometeu e o primeiro aceitou a promessa e depois recebeu um cargo em comissão, para o qual ROBERTO indicou LauXXXXXXXX admitida em 1º/03/2018 como Assessora Especial
Legislativa. Do mesmo modo, para RXXXXXXXx, CLEOSMAR, com auxílio de ANTÔNIO (" Tono "), ofereceu e prometeu e o primeiro aceitou a promessa e depois recebeu um cargo em comissão, para o qual ROGÉRIO indicou FilliXXXXXXXXXXs, admitido em1º/03/2018 como Assessor Especial Legislativo. (...)
10. Capitulação: Assim agindo, os denunciados praticaram os crimes previstos nos seguintes dispositivos: (...)
m) ROXXXXXXXS, art. 317, § 1º, Código Penal (item 4.2)". [...] (fls. 13-65)
II. Atipicidade da conduta e ausência de justa causa
A defesa aduz ser atípica a conduta imputada ao recorrente, ao argumento de que a vantagem de caráter econômico é circunstância indispensável na modalidade "receber". Assevera que "não é imputada qualquer vantagem em dinheiro ao paciente, mas a simples indicação de cargo comissionado".
Conforme reiterada jurisprudência desta Corte Superior, o trancamento do processo em habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando ficarem demonstradas, de maneira inequívoca e a um primeiro olhar, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade, situações estas que não constato caracterizadas na espécie.
Tendo em vista que a denúncia é uma peça processual por meio da qual o órgão acusador submete ao Poder Judiciário o exercício do jus puniendi , o legislador estabeleceu alguns requisitos essenciais para a formalização da acusação, a fim de que seja assegurado ao investigado o escorreito exercício do contraditório e da ampla defesa. Na verdade, a própria higidez da denúncia opera como uma garantia do réu.
Segundo o disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".
Por sua vez, no juízo de admissibilidade da acusação, em grau de cognição superficial e limitado, prevê o art. 395 do CPP:
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
I - for manifestamente inepta; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.
Logo, a denúncia deve ser recebida se, atendido seu aspecto formal (art. 41, c/c o art. 395, I, ambos do CPP) e identificada a presença tanto dos pressupostos de existência e validade da relação processual quanto das condições para o exercício da ação penal (art. 395, II, do CPP), a peça vier acompanhada de lastro probatório mínimo a amparar a acusação (art. 395, III, do CPP).
A inicial descreve, em síntese, ter o investigado aceitado e recebido a indicação de um cargo em comissão na estrutura da Câmara Legislativa do Município de Laguna/SC em troca do compromisso de não compor chapa diversa e de votar favoravelmente àquela encabeçada por CleZZZZZZZ para o cargo de presidente do legislativo municipal ("Do mesmo modo, para RXXXX MEXXXXXXS, CLEOSMAR, com auxílio de ANTÔNIO ("Tono"), ofereceu e prometeu e o primeiro aceitou a promessa e depois recebeu um cargo em comissão, para o qual ROGÉRIO indicou Fillipe VXXXXXX, admitido em1º/03/2018 como Assessor Especial Legislativo").
O crime de corrupção é formal, o que torna prescindível a prática do ato de ofício. O contexto da eleição para Presidência da Câmara Legislativa do Município de Laguna - SC, para o biênio 2017/2018, de acordo com a inicial acusatória, era de utilização de meios ilícitos para obtenção de votos.
É certo que a vantagem indevida exigida para caracterização do crime de corrupção passiva vai além do mero recebimento de valores. Sabe-se, também, que a troca de votos por indicações a cargos comissionados - toma lá dá cá - é da praxe parlamentar brasileira. Infelizmente, ainda que se possa considerar esse comportamento imoral, não é ilegal, desde que ausentes outros desdobramentos.
Na hipótese, a inicial acusatória, especificamente em relação ao recorrente, não descreve elementos que permitam identificar, com mínima segurança, o recebimento de vantagem que possa ser considerada ilícita pelo agente político investigado.
O reconhecimento da coação ilegal, apenas por ausência de requisito formal da denúncia, não consubstancia juízo de inocência, mas de mera constatação de que não foram demonstradas todas as evidências necessárias para justificar a persecução penal.
III. Dispositivo
À vista do exposto, concedo a ordem , a fim de declarar a inépcia da denúncia, apenas em relação ao recorrente, no Processo n. 5004618- 36.2020.8.24.0040/SC, da Vara Criminal da Comarca de Laguna - SC, sem prejuízo de que nova acusação seja oferecida, com estrita observância dos ditames previstos no art. 41 do Código de Processo Penal.
Comunique-se, com urgência, o inteiro teor deste decisum às instâncias ordinárias.
Publique-se e intimem-se.
Brasília (DF), 02 de outubro de 2023.
Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ
Relator
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(STJ - HC: 701006, Relator: ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: 06/10/2023)
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