STJ 2023 - Estelionato Judicial - Atipicidade da Conduta do Advogado - Promover Ação Judicial sabendo da Inexistência do Direito
Inteiro Teor
HABEAS CORPUS Nº 857248 - AL (2023/0349992-1)
RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, com pedido liminar, impetrado em favor de FRANCISCOXXXXXX contra acórdão do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5a REGIÃO.
Consta dos autos que o paciente foi denunciado por infração art. 171, § 3º, c/c artigo 14, inciso II, do Código Penal, pela suposta prática, por três vezes, do que se costuma denominar, "estelionato judicial", ou seja, de se utilizar, como causídico, nos indicados processos judiciais trabalhistas em que atuou, de tentativas de práticas sabidamente fraudulentas com o fito de auferir vantagens indevidas.
O Tribunal a quo denegou a ordem na impetração que objetivava o trancamento do processo penal, nos seguintes termos:
"PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . ADVOGADO, ORA PACIENTE, CODENUNCIADO PELO COMETIMENTO, EM TESE, NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL, DO DELITO PREVISTO NO ART. 171, § 3º, C/C ARTIGO 14, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL -"ESTELIONATO JUDICIAL". PLEITO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL CORRELATA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA POR ATIPICIDADE DAS CONDUTAS DELINEADAS PELA ACUSAÇÃO. ALEGAÇÃO DE QUE AS CONDUTAS NÃO SÃO PUNÍVEIS NA SEARA PENAL. IMPROPRIEDADE DA PRETENSÃO.
DENÚNCIA FORMAL E TECNICAMENTE HÍGIDA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO ATUAL OU IMINENTE AO EXERCÍCIO PLENO DO DIREITO DE DEFESA. PRECARIEDADE DA CAPITULAÇÃO JURÍDICA DAS CONDUTAS IMPUTADAS, DADA EVENTUAL MODIFICAÇÃO, SE O CASO, POR EMENDATIO LIBELLI OU MUTATIO LIBELLI. DESCRIÇÃO PORMENORIZADA DO EVENTUAL AGIR DOS CODENUNCIADOS NO CONTEXTO OBJETO DA PERSECUÇÃO PENAL REGULARMENTE INSTAURADA. RECEPCIONAMENTO DA DENÚNCIA EFETIVADO A PARTIR DE ADEQUADA FUNDAMENTAÇÃO. DENEGAÇÃO DOS PLEITOS FORMULADOS NA RESPOSTA À ACUSAÇÃO. NÃO COMPROVAÇÃO, SEQUER MINIMAMENTE, DA EXCEPCIONALIDADE DA MEDIDA REQUERIDA.
ADENTRAMENTO NO MÉRITO DA IMPUTAÇÃO - PROCEDÊNCIA OU NÃO DA ACUSAÇÃO. VEDAÇÃO EM SEDE DE WRIT. IMPOSSIBILIDADE DE SUPRESSÃO DA INSTÂNCIA NATURAL PROCESSANTE. ESTREITEZA DA VIA MANDAMENTAL ELEITA. DESCABIDA SUBSTITUIÇÃO DO CONTRADITÓRIO JÁ INSTAURADO NA AÇÃO PENAL. DESNATURAÇÃO DA VIA MANDAMENTAL. AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA DO AVENTADO CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PRESENÇA DE JUSTA CAUSA A LEGITIMAR A ORDINÁRIA TRAMITAÇÃO DA PERSECUÇÃO. MANIFESTAÇÃO MINISTERIAL - CUSTOS LEGIS - EM SENTIDO CONTRÁRIO À PRETENSÃO IMPETRANTE. DENEGADA A ORDEM DE HABEAS CORPUS.
1. Habeas corpus impetrado em prol de advogado objetivando, liminarmente, a suspensão, e, a posteriori, o trancamento da Ação Penal em que foi codenunciado pelo cometimento, em tese, da conduta típica prevista no art. 171, § 3º, c/c artigo 14, inciso II, do Código Penal, pela suposta prática, por três vezes, do que se costuma denominar, in casu , de"estelionato judicial", ou seja, de se utilizar, como causídico, nos indicados processos judiciais trabalhistas em que atuou, de tentativas de práticas sabidamente fraudulentas com o fito de auferir vantagens indevidas.
2. Afirma a impetração, reiteradamente, serem flagrantemente atípicas as condutas descritas na peça acusatória, conforme dominante jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ, pelo que a Denúncia apresentada em desfavor do ora paciente não poderia ser recepcionada pelo juízo impetrado, visto falecer justa causa para a deflagração da persecução penal em comento, importando a continuidade do seu iter em constrangimento ilegal, merecedor de pronta cessação, em razão, ainda, de a imputação consistir, no máximo, infração civil ou administrativa, não se revelando penalmente punível em razão da atipicidade antes aludida.
3. As assertivas formuladas neste writ em torno da atipicidade das condutas imputadas ao advogado denunciado, ora paciente, a partir da alegação de imprestabilidade da peça acusatória, diante do que a defesa entende por imputação de fato não delituoso, in casu , o" estelionato judicial ", não se apresentam isentas de controvérsias, à míngua de comprovação, irrefutável, da inidoneidade dos fundamentos erigidos pelo juízo processante, em sede do decisório confirmatório do recepcionamento da Denúncia, como se vê do seu inteiro teor, em que rejeitadas, fundamentadamente, as questões preliminares suscitadas em sede de Resposta à Acusação, além de haver sido afastada a absolvição sumária dos codenunciados.
4. Não se mostra razoável o reconhecimento, de plano, da mencionada causa extintiva de punibilidade - atipicidade -, em face de a pretensão impetrante demandar análise fático-probatória de todo o plexo indiciário que acompanha a acusação, e que pode sofrer, até mesmo, aditamento, ou ser conferida, para além da imputação originariamente lançada em desfavor do paciente - art. 171, § 3º, c/c artigo 14, inciso II, do Código Penal - novel capitulação jurídica aos fatos.
5. De forma que o juízo acerca da atipicidade aqui reclamada, visto que não evidenciada de plano, exige incursão fático-probatória sobre todos os elementos indiciários que deram azo à peça acusatória, situação, portanto, incompatível com os estreitos limites da via mandamental eleita, à míngua, repita-se, de ausência de prova pré-constituída de sua ocorrência ou de outras causas que a jurisprudência dominante e a legislação adjetiva penal elegeram como autorizativas do trancamento da persecução penal, a exemplo da inexistência de indícios mínimos de autoria ou do próprio fato criminoso, bem como de hipóteses outras de extinção de punibilidade.
6. Por não se evidenciar, de plano, a apenas sugerida atipicidade das condutas delineadas pela acusação, resulta inservível a presente ação mandamental ao escopo de substituir todo o contraditório inato à instrução processual correspondente, ocasião em que a aferição da procedibilidade, ou não, da imputação de cometimento, em tese, dos crimes em referência - art. 171, § 3º, c/c artigo 14, inciso II, do Código Penal - terá o seu deslinde.
7. Não se justifica a imposição, em tudo precoce, de solução de continuidade à condução do iter da persecução penal em comento, à míngua de evidências críveis de ilegalidades, e por sequer se cogitar de hipótese de cerceamento da liberdade de locomoção do codenunciado, ora paciente.
8. Tem-se, no caso concreto, que a admissibilidade prevista no art. 395, do Código de Processo Penal, foi tecnicamente observada pelo juízo processante natural, quanto ao recepcionamento da Denúncia, diante do exame preambular acerca da efetiva presença dos pressupostos processuais, das condições exigidas e da justa causa para a instauração da ação penal, confirmando-se, através da Decisão já referenciada (Id. 4050000.37324841), visto se tratar a peça acusatória apta, ou seja, livre de vícios formais, o que, nos termos do art. 41, desse mesmo CPP, significa conter"a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".
9. Ve-se, in casu , o satisfatório atendimento à processualística penal, por meio do oferecimento e recebimento de peça acusatória cognoscível, com a descrição clara dos eventuais ilícitos penais, e dos quais teria, em tese, o envolvimento, a ser confirmado na instrução, de cada codenunciado - individualização de condutas - nos fatos descritos, e a correspondente subsunção - de natureza provisória - à norma repressora do tipo penal em evidência, que, como consabido, não se revela estanque, definitiva ou imutável, sequer vinculando o juízo processante a, tão-somente, tal enquadramento típico.
10. Existindo indícios razoáveis de autoria, bem como da materialidade delituosa, a ação penal deve prosperar para a apuração judicial dos fatos, permitindo-se o exercício pleno do direito de defesa e de acusação, dentro das regras do devido processo legal, não se demonstrando nestes autos qualquer obstáculo às garantias processuais dos codenunciados.
11. Também não foram satisfatoriamente infirmadas, nesta impetração, as razões estruturantes da respeitável Decisão confirmatória do recebimento da Denúncia, em que rejeitadas, fundamentadamente, as preliminares suscitadas nas Respostas às Acusações (art. 396-A, do CPP), em que denegada a absolvição sumária, reafirmando- se o curso regular da Ação Penal em causa.
12. Ainda quanto ao recepcionamento da Denúncia, não se cogita, nem se exige, adentrar o juízo a quo, nessa fase embrionária, em seara ínsita à valoração, exauriente, e, portanto, desbordante dessa quadra processual da persecutio , acerca da precisa verificabilidade da subsunção das condutas delineadas pelo dominus littis ao tipo penal ideal ou adequado. Afastar-se-ia, do contrário, qualquer possibilidade de se estabelecer, no curso da instrução, e, se o caso, até quando da prolação do veredicto - absolutório ou condenatório -, novel adequação típica, como antes referenciado, a exemplo da incidência dos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli.
13. No que tange à impossibilidade de se promover, na via estreita deste mandamus , avaliação exauriente acerca de toda a dinâmica dos fatos elencados no bojo da peça acusatória em questão, e de se concluir, sumariamente, pela impropriedade das imputações penais formuladas em desfavor do paciente, o que caracterizaria manifesta substituição ao iter da persecução penal correspondente - indevida supressão da instância julgadora -, colha-se a reprodução do conteúdo da ementa da manifestação ministerial produzida pelo Ministério Público Federal - custos legis - doravante acolhido como complementação per relationem à fundamentação deste Voto.
14. Descabe admitir o pleito de trancamento da ação penal associada a este writ, porquanto se encontrar a denúncia formal e tecnicamente hígida, ausente, ainda, qualquer comprovação de prejuízo atual ou iminente ao exercício pleno do direito de defesa, em face da suficiente descrição, individualizada, do eventual agir do paciente
codenunciado no contexto criminoso objeto da persecução penal regularmente instaurada.
15. Não justificada, sequer minimamente, a excepcionalidade da medida de trancamento requerida, impondo-se reconhecer a prevalência do interesse público ínsito à persecução penal em causa, para que o paciente se veja regularmente processado à luz de todas as garantias processuais, inclusive quanto à paridade de armas, até então observadas pelo juízo processante.
16. As proposições defensivas, impropriamente veiculadas neste writ, de imprestabilidade dos elementos até aqui indiciários, devem ser submetidas ao juízo processante, tanto por sua aferição exigir dilação probatória, como também por se tratar de enfrentamento do próprio mérito - procedência ou não - da imputação, resvalando do espectro desta limitada ação mandamental a aferição da atipicidade das condutas, vez que desnatura a específica natureza do habeas corpus.
17. Reafirmada, então, a juridicidade dos fundamentos decisórios de recepcionamento da peça acusatória e de indeferimento das respectivas respostas à acusação, deve, pois, prosseguir a Ação Penal pela evidência de justa causa para tanto, impondo-se, à míngua de adequação da narrativa impetrante às hipóteses previstas nos arts. 647 e seguintes do Código de Processo Penal, denegar a ordem de trancamento aqui reclamada.
18. Denegada a ordem de habeas corpus." (e-STJ, fls. 1726-1729)
Neste habeas corpus , sustenta a impetrante, em síntese, que há atipicidade na conduta imputada de estelionato judicial de ajuizar reclamatórias trabalhistas, em tese, sabendo inexistir o vínculo laboral.
Requer a concessão da ordem para que seja trancado o processo penal por atipicidade formal.
É o relatório.
Decido.
Esta Corte - HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 10/6/2020 - e o Supremo Tribunal Federal - AgRg no HC 180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgR no HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018 -, pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado.
Confira-se o teor da imputação na denúncia:
"Nesse contexto, aproveitando-se do grande número de lides trabalhistas propostas, Agenor XXXXX, sócio da própria empresa XXX XXXXXX Ltda., conforme cópia do contrato social e alterações posteriores (fls. 12/24), arregimentou pessoas que nunca trabalharam na AHI e tampouco na UFAL para moverem ações trabalhistas contra a referida empresa e aquela autarquia federal, visando receber os valores que foram retidos pela UFAL, uma vez que a empresa AHI não possuía recursos para arcar com os débitos trabalhistas.
Todas as ações foram propostas pelo mesmo advogado, Francisco Luiz XXXXXXX, o qual tinha ciência que essas pessoas nunca trabalharam na AHI, como será melhor exposto no tópico relativo à autoria." (e-STJ, fl. 37)
Eis os fundamentos do acórdão impugnado:
"Daí não ser razoável o reconhecimento, de plano, da mencionada causa extintiva de punibilidade - atipicidade -, em face de a pretensão impetrante demandar análise fático- probatória de todo o plexo indiciário que acompanha a acusação, e que pode sofrer, até mesmo, aditamento, ou ser conferida, para além da imputação originariamente lançada em desfavor do paciente - art. 171, § 3º, c/c artigo 14, inciso II, do Código Penal - novel capitulação jurídica aos fatos.
De forma que o juízo acerca da atipicidade aqui reclamada, visto que não evidenciada de plano, exige incursão fático-probatória sobre todos os elementos indiciários que deram azo à peça acusatória (Id. 4050000.37091270), situação, portanto, incompatível com os estreitos limites da via mandamental eleita, à míngua, repita-se, de ausência de prova pré-constituída de sua ocorrência ou de outras causas que a jurisprudência dominante e a legislação adjetiva penal elegeram como autorizativas do trancamento da persecução penal, a exemplo da inexistência de indícios mínimos de autoria ou do próprio fato criminoso, bem como de hipóteses outras de extinção de punibilidade.
Por não se evidenciar, de plano, a apenas sugerida atipicidade das condutas delineadas pela acusação, resulta inservível a presente ação mandamental ao escopo de substituir todo o contraditório inato à instrução processual correspondente, ocasião em que a aferição da procedibilidade, ou não, da imputação de cometimento, em tese, dos crimes em referência - art. 171, § 3º, c/c artigo 14, inciso II, do Código Penal - terá o seu deslinde." (e-STJ, fl. 1724)
Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito.
Nesse sentido, os seguintes julgados de ambas as Turmas que compõem a Terceira Seção desta Corte:
"PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. PEDIDO DE TRANCAMENTO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. CRIMES SOCIETÁRIOS. DENÚNCIA GERAL. POSSIBILIDADE. 2. CONDUTAS IMPUTADAS DEVIDAMENTE INDIVIDUALIZADAS. EXISTÊNCIA, EM TESE, DE LIGAÇÃO ENTRE AS CONDUTAS E OS FATOS DELITIVOS. 3. OBSERVÂNCIA DO ART. 41 DO CPP. AMPLA DEFESA GARANTIDA. 4. RECURSO EM HABEAS CORPUS IMPROVIDO.
1. Como é cediço, o trancamento da ação penal na via estreita do habeas corpus somente é possível, em caráter excepcional, quando se comprovar, de plano, a inépcia da denúncia, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria ou prova da materialidade do delito. Na hipótese dos autos, assevera o recorrente ser inepta a denúncia, uma vez que não descreve de forma adequada sua participação nos fatos imputados na denúncia. Importante esclarecer que não se pode confundir a denúncia genérica com a denúncia geral, pois o direito pátrio não admite denúncia genérica, sendo possível, entretanto, nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, a denúncia geral, ou seja, aquela que, apesar de não detalhar minudentemente as ações imputadas ao denunciado, demonstra, ainda que de maneira sutil, a ligação entre sua conduta e o fato delitivo.
2. Da leitura da denúncia, observa-se que as condutas imputadas ao recorrente bem como aos demais corréus estão devidamente narradas, registrando-se, em especial, com relação ao recorrente que 'na condição de Diretor de Recursos Humanos integrava o Conselho Diretor, permanecendo nessa atividade até a interdição da FCD. Também participava das tomadas de decisões sobre as operações comerciais inexistentes, permitindo, assim, com pleno conhecimento, que as apropriações ocorressem, aderindo à vontade dos demais diretores na consecução das práticas ilícitas'. Dessa forma, não é possível afirmar que a inicial acusatória é inepta, porquanto devidamente individualizada, em tese, as condutas típicas imputadas ao recorrente. Com efeito, apesar de não haver um minudente detalhamento das ações
imputadas especificamente ao recorrente, tem-se demonstrada, ainda que de maneira sutil, a ligação entre suas condutas e os fatos delitivos, o que é suficiente, nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, conforme já referido.
3. Assim,"não pode ser acoimada de inepta a denúncia formulada em obediência aos requisitos traçados no artigo 41 do Código de Processo Penal, descrevendo perfeitamente as condutas típicas, cuja autoria é atribuída aos pacientes devidamente qualificados, circunstâncias que permitem o exercício da ampla defesa"(HC 183.660/RJ, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 14/2/2012, DJe 29/2/2012).
4. Recurso em habeas corpus improvido. (RHC 54.075/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/6/2017, DJe 1º/8/2017).
"PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. SONEGAÇÃO FISCAL. CRIME SOCIETÁRIO. AUTORIA COLETIVA. EMPRESA FAMILIAR. RECORRENTES ESPOSAS DE SÓCIOS. DESCRIÇÃO FÁTICA GENÉRICA. SUFICIÊNCIA. DEMONSTRAÇÃO DE INDÍCIOS DE AUTORIA. INÉPCIA. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Nos crimes de autoria coletiva admite-se a descrição genérica dos fatos, se não for possível, como na espécie, esmiuçar e especificar a conduta de cada um dos denunciados.
2. Indícios de autoria demonstrados, tanto mais que se trata de uma empresa familiar, sendo as recorrentes, sócias e gerentes, segundo a própria defesa, esposas de outros sócios do grupo empresarial.
3. Tese de inexistência de liame da sua atuação com os fatos narrados que não se reveste de credibilidade na via eleita. Plausibilidade da acusação.
4. Direito de defesa assegurado, em face do cumprimento dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.
5. O habeas corpus não se apresenta como via adequada ao trancamento da ação penal, quando o pleito se baseia em falta justa causa (ausência de suporte probatório mínimo à acusação), não relevada, primo oculi . Intento, em tal caso, que demanda revolvimento fático-probatório, não condizente com a via restrita do writ.
6. Recurso não provido."(RHC 66.363/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA
TURMA, julgado em 3/3/2016, DJe 10/3/2016).
O estelionato judicial consiste no uso do processo judicial para auferir lucros ou vantagens indevidas, mediante fraude, ardil ou engodo, ludibriando a Justiça, com ciência da inidoneidade da demanda. Percebe-se que a leitura das elementares do art. 171, caput , do Código Penal deve estar em consonância com a garantia constitucional da inafastabilidade jurisdicional ( CRFB, art. 5º, XXXV), do que decorre o entendimento segundo o qual o direito de ação é subjetivo e público e abstrato, em relação ao direito material. Desse modo, verifica-se atipicidade penal da conduta de invocar causa de pedir remota inexistente para alcançar consequências jurídicas pretendidas, mesmo que a parte ou seu procurador tenham ciência da ilegitimidade da demanda.
Em verdade, a conduta constitui infração civil aos deveres processuais das partes, nos termos do art. 77, II, do Código de Processo Civil, e pode sujeitar a parte ao pagamento de multa e indenizar à parte contrária pelos danos processuais, consoante arts. 79, 80 e 81 do Código de Processo Civil ilícito processual. Outrossim, conforme art. 34, XIV, da Lei 8906/94, verifica-se infração profissional do advogado deturpar a situação fática com o objetivo de iludir o juízo. Conclui-se, pois, que a conduta descrita não configura infração penal, mas meramente civil e administrativa, sujeita à punição correlata.
Por outro lado, ressalte-se, em princípio, os meios de induzir a erro o julgador podem ensejar a subordinação típica a crimes autônomos. Cite-se, exemplificativamente, a hipótese do advogado valer-se de testemunha ou qualquer auxiliar da justiça para falsear a verdade processual, na forma dos arts. 343 ou 344; produzir ou oferecer documento falso, material ou ideologicamente ( CP, arts. 297 e 304 do CP). No processo, há produção de provas e condução pelo juiz, de forma que, se prejuízo houver, advirá da sentença e não da atitude de qualquer das partes. Pode-se até falar em erro judiciário, porém não em estelionato judiciário, o que enseja, inclusive a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória, com fundamento no art. 966, VI e VII, do Código de Processo Civil.
Confira-se reiterados julgados desta Corte:
"RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL EM HABEAS CORPUS. PEDIDO DE TRANCAMENTO DO PROCESSO-CRIME. COMPETÊNCIA DO JUIZ DE PRIMEIRO GRAU PARA ANALISAR, PRIMEIRAMENTE, EVENTUAL COMETIMENTO DE DELITOS. REQUISITOS LEGAIS DO ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ATENDIDOS. CIÊNCIA DOS SUPOSTOS ATOS PERPETRADOS QUE PERMITE AO RECORRENTE FRUIR PLENAMENTE DAS GARANTIAS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. DEFESA TÉCNICA QUE DEVE IMPUGNAR OS FATOS, E NÃO A CAPITULAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO. NECESSÁRIA INCURSÃO PROBATÓRIA. REAVALIAÇÃO DE ELEMENTOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. VIA ELEITA INADEQUADA. REMÉDIO DE RITO CÉLERE E COGNIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE DE A JURISDIÇÃO SUPERPOSTA ADIANTAR-SE NO EXAME DO MÉRITO DA CONTROVÉRSIA, SOB PENA DE VIOLAÇÃO DA PARTIÇÃO CONSTITUCIONAL DE COMPETÊNCIAS JUDICIAIS. SUSPENSÃO DEFINITIVA DO PROCEDIMENTO CRIMINAL INVIÁVEL. PARECER MINISTERIAL ACOLHIDO. RECURSO DESPROVIDO.
1. Não constitui mister da jurisdição superposta adiantar-se no exame do mérito da causa principal, sob pena de violação da partição constitucional de competências. Excetua-se essa circunstância somente no caso de completa ausência de indicação de elementos aptos a lastrearem a justa causa - o que constituiria outra conjuntura, diversa da avaliação do fundo da controvérsia em si. Por isso a reticência da jurisprudência, categórica ao ressaltar que "o trancamento da ação penal, em habeas corpus, constitui medida excepcional que só deve ser aplicada nos casos (i) de manifesta atipicidade da conduta; (ii) de presença de causa de extinção da punibilidade do paciente; ou (iii) de ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas" (STF, HC 170.355-AgR, Rel. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/05/2019, DJe 30/05/2019) - o que não é a hipótese dos autos.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de que o denominado "estelionato judicial" - o manejo de processos judiciais para, mediante fraude ou ardil, ludibriar a Justiça e auferir lucros ou vantagens indevidas, a despeito da ciência do Advogado sobre a inidoneidade da demanda - é conduta atípica. É certo ainda que tal ato, evidentemente reprovável, encontra resposta na esfera cível, que prevê a condenação por litigância de má-fé e aplicação de multa, além das possibilidades de ação de indenização e, conforme disciplina do Estatuto da Advocacia, de punição disciplinar.
3. Sem embargo, na hipótese acusa-se o Recorrente de criar ou agravar as reais condições de saúde de acidentados, além de falsificar procurações, para o ajuizamento de feitos referentes ao Seguro DPVAT. Considerada essa conjuntura fática, nada impede que, no decorrer da tramitação da causa principal, as condutas possam receber capitulação diversa do crime de estelionato (emendatio libelli).
4. No processo penal, "que é aquele cercado das maiores garantias, o acusado se defende dos fatos que lhe são imputados e não da respectiva capitulação legal" (STJ, MS 19.885/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIM, PRIMEIRA SESSÃO, DJe 29/11/2016). Por isso, não há como reconhecer, prontamente, a alegada atipicidade, pois compete, antes, ao Juiz de primeiro grau - natural da causa - eventualmente conhecer dos elementos probatórios referentes às falsidades descritas na denúncia.
5. "A eventual não configuração do estelionato judiciário não impede a persecução penal para apurar o falso utilizado na ação penal" (STJ, RHC 98.833/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 18/9/2018, DJe 28/9/2018).
6. Conforme entendimento pacífico deste Tribunal, reconhecer a configuração ou não de elemento subjetivo do tipo depende do exame dos elementos colhidos na instrução, mister soberano e exclusivo das instâncias ordinárias, razão pela qual não cabe analisar a alegação de ausência de dolo.
7. Não é genérica a denúncia em que são detalhados os atos imputados ao Agente, com a devida indicação da suposta prática de fato delituoso, em acusação que permite, sem qualquer dificuldade, a ciência da conduta ilícita, de modo a garantir o livre exercício do contraditório e da ampla defesa.
8. Parecer Ministerial acolhido. Recurso desprovido. (RHC n. 126.006/MG, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 20/9/2022, DJe de 29/9/2022.)
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ARTIGO 1º, I, DA LEI 8.137/90) E DELITO DE USO DE DOCUMENTO FALSO (ARTIGO 304 DO CÓDIGO PENAL). TRANCAMENTO. ATIPICIDADE DO USO DE DOCUMENTO FALSO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO.
1. Se a denúncia narra que os acusados fizeram uso de documentos sabidamente falsos em juízo, a simples possibilidade de impugnação pela parte contrária não isenta o infrator de eventual responsabilidade penal, nos termos previstos pelo artigo 304 do Código Penal.
2. Ademais, a suspensão do processo em relação ao crime tributário ou delito de estelionato judicial não implica automática atipicidade do delito de uso de documento falso, sobretudo quando o Tribunal local destaca sua aparente autonomia em relação às demais infrações. Precedentes.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AgRg no RHC n. 121.204/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 18/5/2020.)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INTEMPESTIVIDADE E FALTA DE REPRESENTAÇÃO. INQUÉRITO POLICIAL. INVESTIGAÇÃO SOBRE O CRIME DE "ESTELIONATO JUDICIÁRIO." CONDUTA ATÍPICA. MANIFESTA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. RECONHECIMENTO DOS DEFEITOS PROCESSUAIS APONTADOS. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO ORDINÁRIO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO.
1. Este Superior Tribunal de Justiça, na linha dos precedentes da Suprema Corte, entende que, mesmo diante da intempestividade do recurso ordinário em habeas corpus ou da falta de procuração do subscritor da petição recursal, em homenagem ao princípio maior da ampla defesa, deve o Tribunal examinar o mérito da controvérsia,
notadamente quando verificado manifesto constrangimento ilegal, como no caso, pronunciável de ofício. Precedentes.
2. Conforme assentado na decisão singular agravada, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça se consolidou no sentido de que o chamado "estelionato judicial" - o uso de processo judicial para, mediante fraude ou ardil, ludibriar a Justiça e auferir lucros ou vantagens indevidas, mesmo sabendo da inidoneidade da demanda - é conduta atípica. Precedentes.
3. Agravo regimental parcialmente provido, tão somente para não conhecer do recurso ordinário em habeas corpus, pelos defeitos acima referidos. Contudo, concedida a ordem, de ofício, para, mantendo a conclusão da decisão agravada, trancar o Inquérito Policial n.º 0000903.72.2018.8.26.0400, em razão da manifesta atipicidade da conduta sob investigação.
(AgRg no RHC n. 101.804/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 5/3/2020, DJe de 16/3/2020.)
Ante o exposto, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem, de ofício, para que seja trancado o processo penal em questão, quanto ao crime de estelionato judicial, diante da atipicidade da conduta imputada ao paciente.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 02 de outubro de 2023.
Ministro Ribeiro Dantas
Relator
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(STJ - HC: 857248, Relator: RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: 04/10/2023)
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