STJ 2023 - Absolvição em Crime de Desobediência - Atipicidade - Ordem de Parar em Policiamento Ostensivo
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
Inteiro Teor
HABEAS CORPUS Nº 872338 - DF (2023/0428843-6)
RELATORA : MINISTRA DANIELA TEIXEIRA
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus com pedido de liminar impetrado em favor de FABIO XXXXXXX em que se aponta como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS (Apelação Criminal 0708136-67.2023.8.07.0001).
O paciente foi absolvido da imputação da prática dos crimes tipificados nos artigos 33, caput , c/c art. 40, III, ambos da Lei nº. 11.343/2006 (tráfico de drogas realizado próximo de um posto de saúde e uma escola); e 330 do Código Penal (desobediência), com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.
A apelação interposta pelo Ministério Público foi conhecida e parcialmente provida pela Corte de origem, para condenar o paciente à pena de 17 (dezessete) dias de detenção em regime semiaberto, além do pagamento de 11 (onze) dias-multa, pela prática do crime de desobediência (art. 330 do Código Penal). Vale conferir a ementa (e- STJ fls.276/277)
APELAÇÃO CRIMINAL. DIREITO PENAL. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. TRÁFICO DE DROGAS. PEDIDO DE CONDENAÇÃO. INVIABILIDADE. PROVAS INSUFICIENTES. DESOBEDIÊNCIA. PLEITO CONDENATÓRIO. ACOLHIMENTO. PROVA SUFICIENTE DA MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Embora a palavra dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante seja dotada de fé pública, ela deve se mostrar coesa e harmônica para que possa amparar eventual decreto condenatório. 1.1. Mantém-se a sentença absolutória quando as provas produzidas não são capazes de demonstrar, além da dúvida razoável, a autoria do crime de tráfico de drogas. 2. O Superior Tribunal de Justiça, no bojo do Tema Repetitivo 1.060, fixou a seguinte tese: "A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro". 2.1. Havendo prova conclusiva no sentido de que o réu deliberadamente desobedeceu a ordem legal emanada de agentes policiais, é o caso de condenação pelo crime de desobediência. 3. Recurso conhecido e parcialmente provido. Sentença reformada.
A defesa alega atipicidade da conduta prevista no art. 330 do Código Penal, pois não há provas suficientes do elemento subjetivo necessário para configuração do crime, haja vista que "não ficou evidenciado a vontade livre e consciente do acusado de não atender a ordem legal, ciente de sua obrigatoriedade por ter sido proferida por funcionário público" (e-STJ fl. 5). Acrescenta que "não se identificou giroflex da viatura e nem sirenes, o que afasta o entendimento do Tema Repetitivo 1060 do Superior Tribunal de Justiça" (e-STJ fl. 7).
Consta nos autos que o paciente foi preso em flagrante na data de 24/02/2023, tendo sido convertida em prisão preventiva em 26/02/2023 (e-STJ fl.135/137). Posteriormente, por força da sentença absolutória, foi expedido alvará de soltura em seu favor (e-STJ fl.227).
Requer, liminar e definitivamente, deferimento da ordem para absolver o paciente.
É o relatório.
A atuação desta Corte, para fins de deferimento de medida liminar, reserva-se a casos de manifesta ilegalidade, o que, em juízo perfunctório, acontece na espécie.
Com efeito, consoante restou demonstrado nos autos, as ordens de parada direcionadas ao paciente não ocorreram no contexto de atividade de policiamento ostensivo, nem, tampouco, se identificou "giroflex" da viatura, nem sirene.
Como é sabido, para fins de caracterização de uma conduta como crime, isto é, para que haja tipicidade penal, é indispensável a demonstração do seu respectivo elemento subjetivo.
Na hipótese de crime de desobediência é fundamental a demonstração dos elementos intelectivo e volitivo do dolo, isto é, do conhecimento e vontade de "desobedecer a ordem legal de funcionário público" (art. 330 do Código Penal). Assim, se não há elementos suficientes para conhecer a referida elementar típica (funcionário público), forçoso reconhecer a ausência de dolo e, pois, a manifesta atipicidade da conduta.
Por via de consequência, resta afastado, a toda evidência, o entendimento do Tema Repetitivo 1060 desta Corte: "caracterização do crime de desobediência quando a ordem de parada a veículo for emitida no exercício de atividade ostensiva de segurança pública" (grifos acrescidos).
Como é sabido, o trancamento do processo em sede de habeas corpus , apesar de medida excepcional, é cabível quando restarem demonstradas, de maneira inequívoca, a atipicidade da conduta , a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade, sendo a primeira situação a hipótese dos autos.
Sobre o tema, outro não é o entendimento desta Corte:
HABEAS CORPUS. ROUBO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP. INVALIDADE. VÍTIMA QUE AFIRMOU NÃO CONSEGUIR IDENTIFICAR COM SEGURANÇA O SUSPEITO. MANIFESTA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DO PROCESSO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC (Rel. Ministro Rogerio Schietti), realizado em 27/10/2020, conferiu nova interpretação ao art. 226 do CPP, a fim de superar o entendimento, até então vigente, de que referido o artigo constituiria "mera recomendação" e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual descumprimento dos requisitos formais ali previstos. 2. Posteriormente, em sessão ocorrida no dia 15/3/2022, a Sexta Turma desta Corte, por ocasião do julgamento do HC n. 712.781/RJ (Rel. Ministro Rogerio Schietti), avançou em relação à compreensã anteriormente externada no HC n. 598.886/SC e decidiu, à unanimidade, que, mesmo se realizado em conformidade com o modelo legal (art. 226 do CPP), o reconhecimento pessoal, embora seja válido, não possui força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva, em razão de sua fragilidade epistêmica. Se, todavia, o reconhecimento for produzido em desacordo com o disposto no art. 226 do CPP, deverá ser considerada inválido, o que implica a impossibilidade de seu uso para lastrear juízo de certeza da autoria do crime, mesmo que de forma suplementar. Mais do que isso, inválido o reconhecimento, não poderá ele servir nem para lastrear outras decisões, ainda que de menor rigor quanto ao standard probatório exigido, tais como a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia e a pronúncia. 3. Conforme reiterada jurisprudência desta Corte Superior, o trancamento do processo em habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando ficarem demonstradas, de maneira inequívoca e a um primeiro olhar, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade . 4. "Em razão do caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já significa uma grave 'pena' imposta ao indivíduo, não é possível admitir denúncias absolutamente temerárias, desconectadas dos elementos concretos de investigação que tenham sido colhidos na fase pré-processual. Aliás, uma das finalidades do inquérito policial é, justamente, fornecer ao acusador os elementos probatórios necessários para embasar a denúncia. A noção de justa causa evoluiu, então, de um conceito abstrato para uma ideia concreta, exigindo a existência de elementos de convicção que demonstrem a viabilidade da ação penal. A justa causa passa a significar a existência de um suporte probatório mínimo, tendo por objeto a existência material de um crime e a autoria delitiva. A ausência desse lastro probatório ou da probable cause autoriza a rejeição da denúncia e, em caso de seu recebimento, faltará justa causa para a ação penal, caracterizando constrangimento ilegal apto a ensejar a propositura de habeas corpus para o chamado 'trancamento da ação penal'. A razão de exigir a justa causa para a ação penal é evitar que denúncias ou queixas infundadas, sem uma viabilidade aparente, possam prosperar" (BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 210). 5. Se, por um lado, o standard probatório exigido para a condenação é baseado em juízo de certeza que exclua qualquer dúvida razoável quanto à autoria delitiva, por outro lado, para o início de uma investigação, exige-se um juízo de mera possibilidade. A justa causa para o oferecimento da denúncia, a seu turno, situa-se entre esses dois standards e é baseada em um juízo de probabilidade de que o acusado seja o autor ou partícipe do delito. 6. No caso dos autos, é manifesta a ausência de justa causa para o exercício da ação penal, porque o único indício de autoria existente em desfavor do acusado decorre de um reconhecimento fotográfico absolutamente inválido, feito em desconformidade com o rito legal e no qual a vítima afirmou que, apesar de o réu ter características muito semelhantes às do criminoso, não tinha condições de afirmar que foi ele o autor do roubo. A rigor, portanto, nem sequer houve efetivo reconhecimento. Além disso, houve evidente induzimento na realização do ato, uma vez que, depois de não ter reconhecido nenhum suspeito na primeira oportunidade em que ouvida, quinze dias depois a vítima foi chamada novamente à delegacia para reconhecer especificamente o denunciado. 7. Tendo em vista que o primeiro reconhecimento contamina e compromete a memória, de modo que essa ocorrência passada acaba por influenciar futuros reconhecimentos (fotográfico ou presencial), não pode ser oferecida nova denúncia sem a existência de outras fontes de prova, diversas e independentes do reconhecimento, o qual, por se tratar de prova cognitivamente irrepetível, não poderá ser convalidado posteriormente. 8. Ordem concedida para, confirmada a liminar anteriormente deferida, determinar o trancamento do processo, sob a ressalva do item anterior. (STJ - HC: 734709 RJ 2022/0102863-1, Data de Julgamento: 07/06/2022, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/06/2022). Grifos acrescidos.
Nesse sentido, diante do manifesto constrangimento ilegal ante a atipicidade da conduta, concedo de ofício a ordem para trancar a ação penal, absolvendo-se o paciente, com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo
Penal.
Comunique-se, com urgência, o Tribunal de origem e o Juízo singular.
Após, dê-se vista ao Ministério Público Federal.
Publique-se. Intimem-se. Brasília, 12 de dezembro de 2023.
Ministra Daniela Teixeira
Relatora
(STJ - HC: 872338, Relator: DANIELA TEIXEIRA, Data de Publicação: 14/12/2023)
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