STJ Mar24 - Homicídio no Trânsito - Afastamento de Qualificadora - Incompatibilidade de Dolo Eventual com Dificultar Defesa da Vítima - Recurso Especial

Inteiro Teor

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2340132 - PI (2023/0121277-0)

DECISÃO

Trata-se de agravo em recurso especial interposto contra decisão que inadmitiu o recurso especial com fundamento na Súmula 7/STJ.

Sustenta o agravante, em apertada síntese, "que no caso em espécie, a conclusão pela violação aos dispositivos mencionados no Recurso Especial não enseja reexame de matéria fático probatória e sim análise de matéria de direito e revaloração de provas".

Alega que "não há qualquer prova produzida sob o crivo do contraditório que ateste que o Réu agiu com animus necandi" (fl. 485), não havendo dolo por parte do agente e sim a culpa.

O recurso é tempestivo e ataca os fundamentos da decisão agravada. Passa-se, portanto, à análise do mérito.

Consta dos autos que o recorrente foi pronunciado como incurso nas penas previstas no art. 121§ 2ºIV, em concurso formal com o art. 129§ 1ºI e II (quatro vezes), ambos do Código Penal Brasileiro.

Inconformado com a decisão de pronúncia, o Réu apresentou Recurso em Sentido Estrito. O Tribunal a quo conheceu o recurso, mas negou-lhe provimento, para manter a decisão de pronúncia em todos os seus termos.

Nas razões do especial, interposto com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, alega a defesa violação dos arts.. 302 e 303 da Lei 9.503/97 e artigo 121, § 2º, IV, "haja vista que a decisão recorrida manteve a pronúncia, mesmo estando ausente o animus necandi , quando deveria de forma justa e correta impronunciar o Réu, com base no artigo 419 CPP, bem como manteve a qualificadora apontada, apesar de sua nítida contrariedade à prova dos autos".

Sustenta que "em momento algum, restou comprovado, que a agressão foi efetuada com animus necandi. Percebe-se que as provas colacionadas levam a concluir que a conduta do Acusado não almejava a morte da vítima, muito menos lesionar ela e as outras demais vítimas". (fl. 434)

Assevera que "restou-se evidente que o Acusado não agiu com o animus de matar, pois, no caso em tela o Réu não deteve, em nenhum momento a vontade de matar a vítima Nome e nem de lesionar as demais vítimas. Nem mesmo teve a intenção de causar-lhes algum mal. Pode-se perceber pelos fatos expostos que não houve o dolo previsto no art. 18,I, e sim a culpa prevista no art. 18, II, ambos do Código Penal" (fl. 435).

Aduz que "o fato de o condutor estar sob o efeito de álcool ou de substância análoga não autoriza o reconhecimento do dolo, nem mesmo o eventual, mas, na verdade, a responsabilização deste se dará a título de culpa" (fl. 435).

Alega que "a qualificadora pela qual o Réu foi pronunciada se manifesta quando o agente não permite à vítima mínimas condições de se defender. A utilização de recurso que dificultou a defesa do ofendido é caracterizada quando há uma surpresa insidiosa e inesperada para a vítima, dificultando ou impossibilitando sua defesa. Para tanto, é necessário que haja no bojo processual provas suficientes para reconhecer a qualificadora em estudo" (fl. 439).

Diz que "também não há que se falar em lesões corporais na sua modalidade dolosa e sim lesões corporais culposas na direção de veículo automotor, tipificada no art. 303 da Lei 9.503/97 ( CTB)" (fl. 436).

Requer o provimento do recurso para:

I - Desclassificar a imputação de homicídio qualificado e lesão corporal para o delito de homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor e lesão culposa na direção de veículo automotor, previstos nos arts. 302 e 303, do CTB, haja vista a ausência de animus necandi, nos termos do art. 419 do Código de Penal;

II - Decotar a qualificadora do inciso IV, § 2º, do artigo 121 do Código Penal, ante a manifesta improcedência, por ser medida de direito.

Apresentada a contraminuta, manifestou-se o Ministério Público Federal pelo não conhecimento do agravo em recurso especial e, caso conhecido, pelo não provimento do recurso especial.

Busca a defesa a desclassificação das condutas imputadas para um homicídio culposo (art. 302 do CTB) e quatro lesões corporais culposas (art. 303 do CTB) na condução de veículo automotor, sob o argumento de que não houve dolo eventual nas condutas imputadas.

No tópico, asseverou o Tribunal de origem que (fls. 408-410):

1 - Da desclassificação. Alega a defesa que o recorrente "não anuiu com o risco de ocorrência do resultado morte

e nem o aceitou" , o que impossibilita falar em dolo eventual, mas, em última análise, na "imprudência ao conduzir seu veículo em suposto estado de embriaguez, agindo, assim, com culpa consciente".

De igual modo, "não está descartada a hipótese de acidente motivado por caso fortuito ou força maior, pois não foi elaborado nenhum exame pericial no local do acidente e/ou nos veículos envolvidos", impondo-se, portanto, a desclassificação.

Como se sabe, a decisão em apreço consiste em mero juízo de admissibilidade, pelo qual o juiz admite ou rejeita a acusação, sem adentrar no exame de mérito, sob pena de subtrair a competência do Júri.

Portanto, em atenção ao princípio in dubio pro societate, basta o convencimento da materialidade do crime e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, uma vez que se trata de mero juízo de probabilidade de que o acusado tenha praticado o crime.

Portanto, havendo dúvida acerca da matéria, deve ela ser submetida ao crivo do Conselho de Sentença, sob pena de violar a competência funcional prevista constitucionalmente para apreciação e julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Em consequência, torna-se desnecessária prova plena da autoria delitiva, uma vez que há mero juízo de suspeita, vedando-se ao magistrado o exame aprofundado do mérito.

Pelas mesmas razões, a desclassificação delitiva para os crimes de homicídio culposo e de lesões corporais culposa na direção de veículo automotor, sob a influência de álcool (arts. 302 e 303 da Lei nº 9.503/97), em razão da inexistência do animus necandi, somente é admissível quando a ausência da vontade de matar ou de lesionar ficar demonstrada de forma inequívoca, o que não ocorreu na hipótese.

No caso vertente, a materialidade encontra-se demonstrada pelo Auto de Exame Cadavérico (id.788399), Autos de Exames de Corpo de Delito (4 vezes), anexo fotográfico (id. 788399) e demais provas acostadas aos autos, notadamente pelos depoimentos prestados pelas testemunhas.

Os indícios de autoria apontam para o recorrente, o qual, ao ser interrogado em Juízo (id.788418), negou que tivesse ingerido bebida alcoólica, e aponta a vítima como responsável pela colisão.

Ressalta que "vinha na sua pista quando sentiu a batida de pneu com pneu e o jipe da vítima foi parar na parte traseira de seu caminhão". Argumento, ao final, que não desceu do veículo e nem trocou "palavras com testemunhas ou com as outras vítimas", justificando, inclusive, que teria ficado desacordado, vindo a despertar somente com a chegada do Delegado de Polícia.

Necessário destacar que o magistrado a quo analisou a CNH do recorrente e constatou que se encontrava vencida há mais de 13 (treze) anos.

A vítima Nome relata, em Juízo (id. 788413), que "seu marido e os três filhos vinham da missa, quando avistaram um carro na estrada fazendo ‘zigue zague’, sendo que neste momento seu marido tentou jogar o carro no acostamento", mas foram violentamente atingidos pelo veículo (caminhão) conduzido pelo recorrente.

Após a colisão, pediu ajuda ao recorrente, que, entretanto, "teria dito para eles se virarem", quando então obteve auxílios dos populares. Ressalta que seu marido faleceu no local, enquanto ela e seus filhos foram lesionados.

Finaliza dizendo que o recorrente e sua esposa apresentavam sinais de embriaguez. As duas testemunhas - Nome (id. 788404) e Nome (id.788408) -, confirmam que o recorrente apresentava sinais de embriaguez, inclusive foi ao encontro delas (testemunhas) proferindo xingamento, chamando-as "moleques" e "vagabundos", mencionando ainda que eles "eram grandes", mas não os temia.

Ainda, perceberam que o recorrente demonstrava preocupação com o estado do veículo, mas sequer tentou auxiliar no socorro às vítimas.

Nome, policial militar, disse, em Juízo (id. 788405), que "não esteve contato direto com o recorrente, mas o Delegado lhe disse que ele apresentava sinais de embriaguez", sendo, entretanto, do seu conhecimento que "o veículo (caminhão) conduzido pelo recorrente invadiu a pista onde se encontrava a vítima e seus familiares".

Ressalte-se, ainda, que a narrativa fática apresentada pelas testemunhas convergem, neste momento, com a inicial acusatória, inclusive no que se refere a existência de dolo eventual, afinal, a CNH pertencente ao recorrente se encontrava com o prazo de validade vencido há mais de 13 (treze) anos, acrescido do fato de que, segundo as testemunhas, apresentava sinais de embriaguez, conforme fato comprovado pela prova de natureza oral.

Desse modo, quanto à ocorrência do dolo eventual ou da culpa consciente, deve, por justiça, ser levado à discussão dos jurados, afinal, não se trata de acolher uma das teses - defensiva ou acusatória - em detrimento da outra, mas de submeter o tema ao juiz natural da causa, no caso o Conselho de Sentença. Nesse sentido, colaciono entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

[...]

Da sentença de pronúncia, colhem-se os seguintes trechos (fls. 296/297):

Existem nos autos também indícios suficientes de que a conduta do denunciado se enquadra em caso de dolo eventual. Ou seja, os indícios indicam que o denunciado estava embriagado quando do acidente, mesmo assim assumiu o risco ao dirigir o veículo na rodovia que liga a cidade de Campo Alegre a Lagoa do Barro do Piauí em uma noite chuvosa. Diante de tais indícios, fica a cargo do Tribunal Popular do Júri decidir pela incidência do dolo eventual ou culpa consciente.

[...]

A qualificadora prevista no art. 121§ 2ºIV, do CP merece guarida. Segundo consta nos autos, o denunciado invadiu, de surpresa, a mão da vítima, que nada pôde fazer para evitar o acidente. Segundo as declarações da vítima Nome, quando seu esposo avistou o carro já vindo em sua direção só teve tempo de gritar "vai me matar!", sem qualquer chance de defesa.

Como visto, a Corte de origem afastou a pretendida desclassificação, apontando que "a narrativa fática apresentada pelas testemunhas convergem, neste momento, com a inicial acusatória, inclusive no que se refere a existência de dolo eventual, afinal, a CNH pertencente ao recorrente se encontrava com o prazo de validade vencido há mais de 13 (treze) anos, acrescido do fato de que, segundo as testemunhas, apresentava sinais de embriaguez, conforme fato comprovado pela prova de natureza oral".

Destarte, diante das circunstâncias do delito em tese cometido e das provas produzidas, não é possível concluir, de forma categórica, que não haveria animus necandi na conduta do paciente, de modo que, segundo jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal e nesta Corte Superior de Justiça, em casos como o presente, compete ao Tribunal do Júri a pretendida desclassificação do delito. A propósito:

RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PRONÚNCIA. JUSTA CAUSA. CONDUÇÃO DO VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ, EM ALTA VELOCIDADE, EM ZIQUE-ZAGUE E PELA CONTRAMÃO. PRESENÇA DE INDÍCIOS DE DOLO EVENTUAL. INEXISTÊNCIA DE CERTEZA JURÍDICA DE CULPA CONSCIENTE. DESCLASSIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DOLO EVENTUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A QUALIFICADORA OBJETIVA DESCRITA NO ART. 121§ 2ºIII, DO CÓDIGO PENAL. QUALIFICADORA AFASTADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Havendo a indicação pelo Tribunal de origem de que o réu conduzia o automóvel embriagado, em alta velocidade e em zigue-zague, pela contramão, tem-se a presença de indícios de dolo eventual do homicídio, com a demonstração de justa causa para a pronúncia, não sendo juridicamente viável a desclassificação do delito, a qual exigiria certeza jurídica sobre a ocorrência de culpa consciente, nos termos do art. 419 do Código de Processo Penal.

2. No dolo eventual, o agente não quer o resultado, mas assume o o risco de produzi-lo

(art. 128, I - CP). Prevê o resultado, não o deseja, mas também não recua na conduta, assumindo o risco do resultado. Nos delitos de trânsito, precedentes têm admitido que o binômio embriaguez e velocidade, produzindo resultado danosos, implica dolo eventual, conclusão que não pode ser adotada de forma absoluta, mesmo porque não se garante que a previsão do resultado, pelo agente, dê-lhe a certeza de que também não pereça ou de que não seja lesionado.

3. Mas, de toda forma, a decisão pela ocorrência, dentro das circunstâncias do caso, de

culpa consciente - o agente prevê o resultado mas espera que ele não ocorra - ou dolo eventual deve ficar para a definição do Tribunal do Júri, o juízo natural.

4. Conforme a jurisprudência desta Corte Superior, a qualificadora prevista no artigo

121§ 2ºIII, do CP, que sugere a ideia de premeditação, com a percepção clara e definida do resultado almejado por parte do agente, não se compatibiliza com a figura do dolo eventual, no qual o agente, embora assuma o risco, não atua de forma direcionada à obtenção da ofensa ao bem jurídico tutelado.

5. Recurso especial parcialmente provido para afastar a qualificadora referente ao perigo

comum reconhecida na pronúncia.

(REsp n. 1.922.058/SC, relator Ministro Nome (Desembargador Convocado do TRF 1a Região), Sexta Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 21/9/2021.)

Assim, não restando evidente a ausência do animus necandi na fase do iudicium acusationis , imperiosa a submissão da tese ao Juiz natural da causa, qual seja, o Tribunal do Júri, sob pena de indevida usurpação da competência constitucional que lhe foi atribuída.

No mais, para se concluir de modo diverso, pela impronúncia do acusado, seria necessário reexaminar os fatos e as provas, providência vedada nos termos da Súmula n. 7 desta Corte. Nessa linha, os seguintes precedentes (grifos nossos):

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS DA AUTORIA. ANÁLISE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. O Tribunal a quo consignou que há provas suficientes para a pronúncia do acusado.

Assim, alterar as conclusões do acórdão recorrido, a fim de concluir pela absolvição do acusado ou desclassificação da conduta, como requer a parte recorrente, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório colhido nos autos, o que encontra óbice na Súmula n. 7 desta Corte.

2. Ademais, a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que a absolvição ou a desclassificação da conduta delituosa de competência do Tribunal do Júri somente pode ocorrer na fase de pronúncia quando não estiverem presentes indícios da intenção de matar, sob pena de usurpação de sua competência, juiz natural para julgar os crimes dolosos contra a vida. Dessa forma, havendo na r. decisão de pronúncia elemento indiciário da existência de intenção de matar, não se revela despropositada a submissão ao Conselho de Sentença, da imputação da conduta prevista nos artigo 121§ 2º, incisos II e IV, do CP.

3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 1165445/MG, Rel. Ministro Nome, QUINTA TURMA, julgado em 06/02/2018, DJe 19/02/2018).

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AFRONTA AO ART. 121§ 2ºII E III, DO CP. DECISÃO DE PRONÚNCIA. DECOTE DE QUALIFICADORAS. REEXAME FÁTICO E PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. É assente que cabe ao aplicador da lei, em instância ordinária, fazer um cotejo fático e probatório a fim de analisar se, ao final da primeira fase do procedimento escalonado do juri, há provas ou não para pronunciar, impronunciar, desclassificar ou absolver sumariamente o acusado, bem como verificar se, por ocasião da decisão de pronúncia, eventual qualificadora se mostra improcedente ou descabida. Incidência do enunciado 7 da Súmula deste STJ.

2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp n. 636.030/BA, relatora Ministra Nome, Sexta

Turma, julgado em 1/3/2016, DJe de 9/3/2016).

Quanto à qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima, a Corte de origem consignou o seguinte (fl. 413):

No caso vertente, a materialidade encontra-se demonstrada pelo Auto de Exame Cadavérico (id.788399), Autos de Exames de Corpo de Delito de número de 4 (quatro), anexo fotográfico (id.788399) e demais provas acostadas aos autos, notadamente, pelos depoimentos testemunhais, ao passo que os indícios de autoria apontam para o recorrente.

Conclui-se, pois, que os depoimentos prestados pelas testemunhas na fase investigativa e, posteriormente, confirmados em juízo, não destoam da narrativa apresentada na inicial acusatória, impondo-se, portanto, a manutenção da classificação delitiva veiculada na decisão de pronúncia, para a devida submissão do tema à apreciação dos jurados.

Cumpre ressaltar que consta dos autos a versão inicial de que o recorrente, em visível estado de embriaguez, deixou de prestar socorro às vítimas, sendo que uma delas faleceu no local e as quatro restantes ficaram incapacitadas para as ocupações por mais de 30 (trinta) dias, conforme atestam os laudos de exame de corpo de delitos acostados aos autos, o que possibilita o reconhecimento, nesta fase processual, das qualificadoras descritas na decisão de pronúncia.

Por sua vez, o juízo processante, ao tratar da referida qualificado assentou que "o denunciado invadiu, de surpresa, a mão da vítima, que nada pôde fazer para evitar o acidente. Segundo as declarações da vítima Nome, quando seu esposo avistou o carro já vindo em sua direção só teve tempo de gritar" vai me matar! ", sem qualquer chance de defesa".

Consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, somente se admite a exclusão das qualificadoras na pronúncia quando manifestamente improcedentes, sob pena de suprimir a competência constitucional do Tribunal do Júri (AgRg no AREsp n. 2.198.026/MT, Ministro Nome, Desembargador convocado do TRF1, Quinta Turma, DJe 3/5/2023).

Ocorre que, "tem prevalecido nesta Corte Superior a tese de incompatibilidade entre o dolo eventual com as circunstâncias qualificadoras do inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal, pois, tratando-se de crime no trânsito, com dolo eventual, não se poderia concluir que tivesse o agente deliberadamente agido de surpresa, de maneira a dificultar ou impossibilitar a defesa da vítima" (HC n. 634.637/AC, relator Ministro Nome, Quinta Turma, julgado em 4/5/2021, DJe de 10/5/2021.). Nesse norte:

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. SUPOSTOS CRIMES DE TRÂNSITO. HOMICÍDIOS, UM CONSUMADO E OUTROS TRÊS TENTADOS. ORDEM CONCEDIDA PELA RELATORIA ANTERIOR. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. PRONÚNCIA. AFASTAMENTO DE QUALIFICADORA DETERMINADO NESTE STJ. ALEGADA INCOMPATIBILIDADE. DOLO EVENTUAL E QUALIFICADORA DO MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. PRECEDENTES. AGRAVO DO MPMG DESPROVIDO.

I - A análise da existência ou não de qualificadoras, em processos de competência do Tribunal do Júri, demanda aprofundado revolvimento do conjunto fático-probatório. Cabe, portanto, precipuamente ao juiz natural da causa, o Conselho de Sentença (art. 5º, XXXVII, d, da Constituição Federal), debater a classificação e qualificação dos delitos imputados. Precedentes.

II - A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça se consolidou no sentido de admitir abstratamente a compatibilidade entre a qualificadora do meio que dificultou a defesa da vítima e o dolo eventual, quando as circunstâncias objetivas do cometimento do delito impediram a reação da vítima. Precedentes. III - Contudo, no caso concreto, de crime de trânsito, praticado com suposto dolo eventual, não se poderia concluir que tivesse o agente deliberadamente agido de surpresa, de maneira a dificultar ou impossibilitar de propósito uma eventual defesa das vítimas. Precedentes.

IV - Embora as memoráveis considerações tecidas pelo agravante, o entendimento já consagrado pela jurisprudência desta Corte Superior impõe a manutenção da decisão agravada por seus próprios fundamentos.

Agravo regimental do MPMG desprovido. Ordem anterior de habeas corpus mantida. (AgRg no HC n. 717.365/MG, relator Ministro Nome, Quinta Turma,

julgado em 26/2/2024, DJe de 29/2/2024.)

RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. DUPLA TENTATIVA DE HOMICÍDIO. ERRO NA EXECUÇÃO. DOLO EVENTUAL. INDÍCIOS MÍNIMOS. SUBMISSÃO AO CONSELHO DE SENTENÇA.

NECESSIDADE. QUALIFICADORAS. MOTIVO FÚTIL. JUÍZO DE VALOR ACERCA DA MOTIVAÇÃO. COMPETÊNCIA DOS JURADOS. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. QUESTÃO FÁTICA CONTROVERSA. DECOTE DA QUALIFICADORA. IMPOSSIBILIDADE. INCOMPATIBILIDADE COM O DOLO EVENTUAL. PERIGO COMUM. EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Esta Corte Superior de Justiça possui a compreensão de que é possível a configuração do dolo eventual na conduta de agente que realiza disparos de arma de fogo em via pública movimentada, pois é crível que ele possuía condições de prever e consentir com a possibilidade de atingir fatalmente pessoas diversas daquela contra quem despejava a sua fúria. 2. Verificando-se que a moldura fática delineada pelas instâncias ordinárias pode configurar, em tese, hipótese de dolo eventual, não é possível subtrair a imputação de tentativa de homicídio doloso supostamente praticado pelo Recorrido contra a vítima Nome exame pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri.

3. Compete apenas ao Conselho de Sentença realizar juízo valorativo acerca da banalidade ou da gravidade da motivação dos crimes imputados, devendo a pronúncia limitar-se a aferir a existência de elementos mínimos nos autos aptos a sustentar objetivamente a tese acusatória, o que se verifica efetivamente presente no caso em apreço.

4. A jurisprudência desta Corte Superior entende não ser incompatível a qualificadora do motivo fútil com o dolo eventual, pois o dolo do agente, direto ou indireto, não se confunde com o motivo que ensejou a conduta capaz de colocar em risco a vida da vítima.

5. Havendo minimamente a possibilidade de a vítima haver sido surpreendida com a conduta do Acusado, é necessário submeter esta tese fática ao Conselho de Sentença do Tribunal do Júri, que é a instância competente para aferir se a circunstância narrada na denúncia dificultou ou não a defesa da vítima Nome. 6. Conforme o entendimento que prevalece nesta Corte Superior, o elemento surpresa capaz de dificultar a defesa da vítima é próprio do dolo direto, não sendo compatível com o dolo eventual, pois neste o resultado morte não é diretamente desejado pelo agente.

7. A Corte de origem ressaltou haver diversos elementos, nos autos, que sustentam a acusação de que os disparos foram efetuados em via pública com grande circulação de pessoas, razão pela qual deve ser mantida a incidência da qualificadora referente ao perigo comum.

8. Recurso especial parcialmente provido para restabelecer a pronúncia do Recorrido como incurso no art. 121§ 2.º, incisos IIIII e IV, c.c. o art. 14, inciso II, do Código Penal (vítima Nome) e como incurso no art. 121§ 2.º, incisos II e III, c.c. o art. 14, inciso II, do Código Penal (vítima Nome).

(REsp n. 1.779.570/RS, relatora Ministra Nome, Sexta Turma, julgado em 13/8/2019, DJe de 27/8/2019.)

Assim, a exclusão da referida qualificadora é medida que se impõe.

Ante o exposto, conheço do agravo para conhecer do recurso especial e, com fundamento na Súmula 568 do STJ, dar-lhe parcial provimento para o fim de determinar a exclusão, da decisão de pronúncia, da qualificadora prevista no inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal e, por via de consequência, desclassificar o crime de homicídio para a figura simples.

Publique-se.

Intimem-se. Brasília, 08 de março de 2024.

(STJ - AREsp: 2340132, Relator: JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), Data de Publicação: 12/03/2024)

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