STJ 2024 - Crime de Recusa de Atender Ordem Judicial para Tratamento Hospitalar para Pessoas Deficientes - Ausência de Dolo - Trancamento do Inquérito: "Lei 7.853/1989 - deixar de prestar assistência ambulatorial à pessoa com deficiência"

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola


Inteiro Teor

HABEAS CORPUS Nº 897466 - GO (2024/0080937-2)

RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus , com pedido liminar, impetrado em favor de MILENE XXXXXXXXXXXX apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

Consta dos autos que a paciente foi presa em flagrante e está sendo investigada pela prática, em tese, do crime previsto no art. , incisos IV e V, e § 1º, da Lei 7.853/1989. Irresignada, a defesa impetrou prévio mandamus , cuja ordem foi denegada, nos termos da seguinte ementa (e-STJ fls. 307/308):

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DO PROCESSO-CRIME. CRIME. NÃO CABIMENTO NA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1) O trancamento do processocrime por meio de Habeas Corpus constitui medida excepcional, somente sendo cabível quando constatado de forma inequívoca a manifesta atipicidade da conduta, ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva ou presença de causa de extinção da punibilidade, o que não se vislumbra, na espécie. DE OFÍCIO: REVOGAÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS APLICADAS. 2) Restando evidente a desnecessidade das condições impostas para a liberdade provisória da paciente, mister revogá-las, ressalvando que, diante da manutenção do prosseguimento da ação penal, não há que se falar em devolução da fiança arbitrada para a soltura do paciente ORDEM CONHECIDA E PARCIALMENTE CONCEDIDA, PARA, DE OFÍCIO, REVOGAR AS MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO IMPOSTAS À PACIENTE.

No presente mandamus , a defesa aduz, em síntese, que a conduta é atípica, quer por ausência de dolo quer em virtude de a paciente não poder ser considerada sujeito ativo, uma vez que é mera funcionária administrativa, coordenadora de operações na clínica HAPVIDA.

Afirma, ainda, que "é necessário, como em qualquer situação da vida em sociedade, que se equalizem necessidade e capacidade: é necessário que se agendem as consultas e atendimentos de acordo com a demanda e a disponibilidade da Clínica, cuja capacidade não é ilimitada".

Pede, liminarmente, a suspensão do inquérito policial e, no mérito, seu trancamento, com anulação do flagrante e devolução dos objetos apreendidos.

É o relatório. Decido.

A liminar, que na via eleita não ostenta previsão legal, é criação da jurisprudência para casos em que a urgência, necessidade e relevância da medida mostrem-se evidenciadas de forma indiscutível na própria impetração e nos elementos de prova que a acompanham.

No caso, a defesa pugna, em síntese, pelo trancamento do inquérito policial, ao argumento de que a conduta imputada à paciente é atípica, quer por ausência de dolo quer por não poder figurar no polo ativo do tipo penal constante do art. , incisos IV e V, e § 1º, da Lei 7.853/1989.

Mencionado dispositivo legal dispõe que:

Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa:

(...);

IV - recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial à pessoa com deficiência;

V - deixar de cumprir, retardar ou frustrar execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei;

(...)

§ 1 o Se o crime for praticado contra pessoa com deficiência menor de 18 (dezoito) anos, a pena é agravada em 1/3 (um terço).

A conduta imputada é narrada no acórdão impugnado, nos seguintes termos (e- STJ fls. 305/306):

Segundo restou apurado, a genitora da suposta vítima foi até o local inicialmente mencionado, onde se localiza a HAPVIDA, e solicitou atendimento para sua filha portadora de transtorno do espectro autista, oportunidade em que a investigada, coordenadora daquela regional, informou-lhe que não era possível fazê-lo, por falta de profissional disponível no momento, oferecendo-lhe um agendamento para o mês de novembro.

Conforme o caderno investigativo, a genitora da suposta vítima informou que, por diversas vezes, em outras oportunidades, disseram-lhe a mesma coisa, sendo que sua filha acaba não sendo atendida, fato este que a motivou a entrar em contato com a presidente de uma associação de proteção às pessoas portadoras do referido transtorno, XXXXXXXXX, e contatou a autoridade policial para providências de praxe.

Conforme consta, a autoridade policial se fez presente no local e questionou a investigada a respeito do atendimento, a qual ratificou as informações, esclarecendo, ainda, que havia diversas crianças na mesma situação e não tinha condições de fazer nada, oportunidade em que o delegado a informou que teria de conduzi-la para a delegacia.

Ato seguinte, a investigada ofereceu um atendimento fonoaudiológico naquela hora, para que não a levassem para delegacia, começando, então, a mexer no computador para dar andamento ao solicitado, oportunidade em que a autoridade policial efetuou sua prisão em flagrante por vislumbrar indícios de que a coordenadora estava fraudando informações no sistema e dificultando a assistência ambulatorial da suposta vítima, apreendendo o computador.

Em um exame preambular, próprio de uma decisão liminar, não é possível identificar, na conduta de oferecer, em outubro, um agendamento para novembro, o dolo de deixar de prestar assistência ambulatorial à pessoa com deficiência. Também não preenche, ao que parece, a tipicidade penal a tentativa de arrumar um atendimento para a vítima, com o objetivo de não ser levada para a delegacia.

Nesse contexto, revela-se prudente, no caso concreto, o deferimento da liminar, para suspender a movimentação do inquérito policial até o julgamento de mérito do presente habeas corpus.

Pelo exposto, defiro a liminar, apenas para suspender o inquérito policial.

Comunique-se às instâncias ordinárias, solicitando-se lhes informações.

Após, ao Ministério Público Federal para parecer.

Publique-se.

Brasília, 14 de março de 2024.

Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA

Relator

(STJ - HC: 897466, Relator: REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Publicação: 18/03/2024)

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