STF 2024 - É Possível Transação Penal Para Um dos Crimes Conexos, Mesmos que a Soma das Penas dos Crimes dê Mais que 2 anos :Aplica-se Transação Penal para o Crime Possível
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
RECLAMAÇÃO 67.748 RIO DE JANEIRO
RELATOR : MIN. EDSON FACHIN
Decisão: Trata-se de reclamação proposta contra acórdão proferido pelo TJRJ, que restou assim ementado (eDOC 12):
APELAÇÃO CRIMINAL. IMPUTAÇÃO DOS DELITOS DE EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA COM FIM DE LUCRO, ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA, LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA DUPLAMENTE QUALIFICADA E ESTELIONATO, TODOS EM CONCURSO MATERIAL. PARCIAL PROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. CONDENAÇÃO DAS APELANTES PELOS CRIMES DE EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA E LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA DUPLAMENTE QUALIFICADA, EM CONCURSO MATERIAL. ABSOLVIÇÃO DO CORRÉU. INCONFORMISMO DEFENSIVO. RECURSO DA PRIMEIRA APELANTE (VALÉRIA). PEDIDOS: 1) ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS; 2) REDUÇÃO DAS PENAS-BASE AO MÍNIMO LEGAL; 3) ABRANDAMENTO DO REGIME PRISIONAL; 4) SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. RECURSO DA SEGUNDA APELANTE (PATRICIA). PRELIMINAR DE NULIDADE POR AUSÊNCIA DE OFERECIMENTO DE TRANSAÇÃO PENAL COM RELAÇÃO AO DELITO DE EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA. MÉRITO. PEDIDOS: 1) ABSOLVIÇÃO DO CRIME DE LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA; 2) REDUÇÃO DAS PENAS-BASE AO MÍNIMO LEGAL; 3) INCIDÊNCIA DA CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA NA DOSIMETRIA DO DELITO DE EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA; 4) ABRANDAMENTO DO REGIME PRISIONAL;
5) DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. I. Preliminar. Ausência de oferecimento de transação penal com relação ao delito de exercício ilegal da medicina. Pretensão descabida. Em havendo concurso material de crimes, como na espécie, considera-se para efeito de aplicação do instituto reclamado o somatório das penas. Caso vertente em que o resultado da soma das penas supera o patamar de dois anos, a inviabilizar a transação penal. Precedente do Superior Tribunal de Justiça. II. Pretensão absolutória. Descabimento. II.1. Crime de exercício ilegal da medicina. Existência do delito e respectiva autoria na pessoa das apelantes cabalmente comprovadas nos autos mediante as provas reunidas, em especial a oral. Apelantes que, apresentando-se como biomédicas, realizavam tratamento invasivo de natureza estética, consistente na injeção de substância em regiões corporais que se pretendia avolumar, prescrevendo, inclusive, às suas indigitadas pacientes, anti- inflamatórios e outros medicamentos. Apelantes que não têm especialidade médica capaz de autorizá-las à realização de tais procedimentos. Condenação que se mantém. II.2. Crime de lesão corporal gravíssima. Materialidade do delito comprovada nos autos por prova técnica, não infirmada pela defesa. Autoria na pessoa das apelantes devidamente comprovada pela prova oral produzida em Juízo. Apelantes que, mesmo sem formação técnica especializada, em comunhão de ações e desígnios, injetaram substância em grande quantidade nos glúteos da vítima, causando-lhe enfermidade incurável, conforme bem detalhado pela ofendida em Juízo e atestado pela prova pericial produzida Prova acusatória robusta. Ausência de certeza quanto à natureza da substância injetada que se mostra irrelevante à espécie. Dolo eventual inquestionável. Acusadas que, cientes de que não eram habilitadas para o exercício
daquele procedimento estético, assumiram o risco de produzir o resultado danoso na vítima, o que veio a se concretizar. Qualificadoras relativas à enfermidade incurável e deformidade permanente igualmente demonstradas nos autos, consoante as provas pericial, oral e documental fornecida pela vítima. Deformidade consistente em irregularidades formadas nas áreas em que injetado o produto no corpo da ofendida, o que só poderá ser corrigido mediante procedimento cirúrgico, porém sem garantia de sucesso. Processo inflamatório crônico. Condenação igualmente escorreita. III. Penas-base. III.1. Crime de exercício ilegal da medicina. Incremento plenamente justificado pelas graves circunstâncias e consequências do delito, que excederam àquelas inerentes à prática delitiva e impõem maior rigor na imposição da pena. III.2. Crime de lesão corporal gravíssima. Distanciamento do mínimo legal igualmente escorreito. Vítima que, além de ter ficado substancialmente lesionada, veio a experimentar transtornos psicológicos e elevados gastos médicos. Circunstâncias que excedem àquelas inerentes ao delito. IV. Confissão espontânea. Reconhecimento somente no crime de exercício ilegal da medicina e em favor da segunda apelante. Crime de lesão corporal. Inocorrência. Apelantes que, ao alegar desconhecer a razão das sequelas deixadas na vítima, insistindo na versão de ter aplicado produto compatível com o procedimento realizado, nega o dolo próprio da espécie, a afastar a atenuante reclamada.
V. Regime prisional. Manutenção para ambas as rés. Regime semiaberto que se mantém para a pena de reclusão e pena de detenção, haja vista a gravidade concreta das condutas e que autorizou o distanciamento das penas-base dos seus mínimos legais. Inteligência do artigo 33, parágrafo 3º, do Código Penal.
VI. Substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos. Descabimento. Vedação legal. Artigo 44, inciso I, do Código Penal. Delito de lesão corporal gravíssima que pressupõe violência. VII. Direito de recorrer em liberdade. Segunda apelante. Ausência de interesse recursal.
Determinação já contida na sentença de piso. Recurso da primeira apelante desprovido. Recurso da segunda apelante ao qual se dá parcial provimento.
O reclamante alega, em síntese, violação ao entendimento firmado no julgamento da ADI 5264.
Aduz que o reclamante faz jus à transação penal quanto ao crime no art. 282, parágrafo único, do CP, pois o STF reconheceu a constitucionalidade do art. 60, parágrafo único, da Lei nº 9099/95 e assentou que, havendo conexão entre crime de menor potencial ofensivo e outros, é possível a aplicação de medidas despenalizadoras.
Pede, liminarmente, a suspensão de eventual execução penal até o julgamento definitivo desta ação. No mérito, requer "a procedência desta reclamação e, por consequência, a declaração de nulidade do processo desde o início, incluindo a decisão que recebeu a denúncia - na parte que se refere ao crime previsto no art. 282, parágrafo único, do CP -, a fim de que o Parquet possa se manifestar quanto à transação penal".
A liminar foi indeferida.
A PGR opinou pela procedência da reclamação. Transcrevo a ementa do parecer (eDOC 19):
Reclamação Constitucional. Pleito de realização de transação penal em relação à infração penal de menor potencial ofensivo cometido no mesmo contexto fático com crime de competência do Juízo Comum. Pedido indeferido pelo Tribunal de origem, ao argumento de que a soma da pena máxima da infração de menor potencial ofensivo com o crime conexo de maior gravidade supera o patamar de dois anos para aplicação do instituto despenalizador. Desrespeito ao decidido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.264/DF verificada. Os Juizados Especiais Criminais são dotados de competência relativa para julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, razão pela qual se permite que essas infrações sejam julgadas por outro juízo com vis atractiva para o crime de maior gravidade, pela conexão ou continência, observados, quanto àqueles, os institutos despenalizadores, quando cabíveis. Parecer pela procedência da Reclamação.
É o relatório. Decido.
1. O cabimento da reclamação, instituto jurídico de natureza constitucional, deve ser aferido nos estritos limites das normas de regência, que somente a concebem para preservação da competência do Tribunal e para garantia da autoridade de suas decisões (art. 102, I, l, CF), bem como contra atos que contrariem ou indevidamente apliquem Súmula Vinculante (art. 103-A, § 3º, da CF).
Portanto, a função precípua da reclamação constitucional reside na proteção da autoridade das decisões de efeito vinculante proferidas pela Corte Constitucional e no impedimento de usurpação da competência que lhe foi atribuída constitucionalmente. A reclamação não se destina, destarte, a funcionar como sucedâneo recursal ou incidente dirigido à observância de entendimento jurisprudencial sem força vinculante.
2. No caso concreto, articula-se violação ao entendimento firmado na ADI 5264, cuja ementa do julgado aqui transcrevo:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. ARTS. 1º E 2º DA
LEI N. 11.313/2006. ALTERAÇÕES NO CAPUT E NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 60 DA LEI N. 9.099/1995 E NO ART. 2º DA LEI N. 10.259/2001. COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. INCIDÊNCIA DAS REGRAS PROCESSUAIS DE CONEXÃO E CONTINÊNCIA. VIGÊNCIA DE OUTRAS PREVISÕES LEGAIS DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. GARANTIA DE APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS DA TRANSAÇÃO PENAL E DA COMPOSIÇÃO CIVIL DOS DANOS NO JUÍZO COMUM. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. É relativa a competência dos Juizados Especiais Criminais, pela qual se admite o deslocamento da competência, por regras de conexão ou continência, para o Juízo Comum ou Tribunal do Júri, no concurso de infrações penais de menor potencial ofensivo e comum. 2. Os institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/1995 constituem garantia individual do acusado e têm de ser assegurados, quando cabíveis, independente do juízo no qual tramitam os processos. 3. No § 2º do art. 77 e no parágrafo único do art. 66 da Lei n. 9.099/1995, normas não impugnadas, também se estabelecem hipóteses que resultam na modificação da competência do Juizado Especial para o Juízo Comum. Ação direta julgada improcedente. (ADI 5264, Relator (a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 07- 12-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 03-02-2021 PUBLIC 04-02- 2021)
No referido precedente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade das alterações promovidas pela Lei nº 11.313/2006 e consignou que "[..] os Juizados Especiais Criminais são dotados de competência relativa para julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, razão pela qual se permite que essas infrações sejam julgadas por outro juízo com vis atractiva para o crime de maior gravidade, pela conexão ou continência, observados, quanto àqueles, os institutos despenalizadores, quando cabíveis."
Especificamente quanto ao tema suscitado neste reclamação, a Relatora Ministra Cármen Lúcia assentou em seu voto:
Se praticada infração penal de menor potencial ofensivo em concurso com outra infração penal comum e deslocada a competência para a Justiça Comum ou Tribunal do Júri, não há óbice, senão determinação constitucional, à aplicação dos institutos despenalizadores da transação penal e da composição civil dos danos quanto à infração de menor potencial ofensivo, em respeito ao devido processo legal.
Não se deve somar à pena máxima da infração de menor potencial ofensivo com a da infração conexa (de maior gravidade) para excluir a incidência da fase consensual e ser invocada como fator impeditivo da transação penal ou composição civil dos danos.
Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, nesse sentido, ponderam:
"Se um crime doloso contra a vida for conexo a outro crime comum, ambos serão apreciados pelo Tribunal Popular, pois este é o prevalente. O júri aprecia os crimes dolosos contra a vida, e além deles, os crimes que lhe sejam conexos. Com o advento da Lei n. 11.313/2006, alterando o art. 60 da Lei n. 9.099/95, havendo concorrência entre crime doloso contra a vida e infração de menor potencial ofensivo, ambos irão a júri, devendo- se, contudo, quanto a esta última, oportunizar-se a transação penal e a composição civil dos danos. Acreditamos que neste caso, antes do processo se iniciar regularmente, deve ser realizada audiência preliminar, para que a tentativa de composição civil e de transação penal seja efetivada em prol da infração de menor potencial ofensivo. Se a audiência for frustada, malogrando a composição civil ou transação, é que as infrações tramitarão juntas no processo" (Curso de Direito Processual Penal. 7. ed. Salvador: Editora JusPodvim. 2012. p. 279)
Em sentido contrário ao entendimento do STF, o Juízo de Primeiro grau afastou o pedido de transação penal (eDOC 6, p. 25):
Embora a Defesa Técnica da ré Patricia tenha requerido transação penal em relação ao delito do artigo 282, parágrafo único, do Código Penal, sob o argumento de ser infração de menor potencial ofensivo, porém não acolho o pleito defensivo, tendo em vista a Súmula 243-STJ, que dispõe que: "O beneficio da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01 ano)".
A decisão foi mantida pelos mesmos fundamentos em segundo grau de jurisdição (eDOC 12, p. 7):
A preliminar de nulidade arguida não merece acolhimento, pois, ao contrário do que se sustenta, em havendo concurso material de crimes, como na espécie, considera-se para efeito de aplicação do instituto reclamado a soma das penas, cujo resultado, no caso vertente, supera o patamar máximo de dois anos, a inviabilizar a transação penal. Nesse sentido, inclusive, a reiterada jurisprudência da Corte Superior, in verbis:
"PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS.
CRIMES CONTRA A HONRA. CONCURSO MATERIAL. TRANSAÇÃO PENAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMUNIDADE JUDICIÁRIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. I - No caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de apresentação da proposta de transação penal (Lei nº 9.099, art. 76), será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas ao delitos. Com efeito, se desse somatório resultar um período de apenamento superior a 2 (dois) anos, fica afastada a possibilidade de aplicação do benefício da transação penal. II -" O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, ou seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de (01) anos. "(Súmula nº 243/STJ). III - A ofensa à honra do juiz da causa, consubstanciada na prática dos delitos de calúnia, injúria e difamação, não está acobertada pela imunidade judiciária prevista no art. 142, I, do CP, tampouco pelos preceitos inscritos nos arts. 133 da CF e 7º, § 2º, da Lei nº 8.906/94 (Precedentes). IV - O trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do writ, somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie. Ordem denegada." (HC n. 29.001/SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 21/10/2003, DJ de 24/11/2003, p. 339.)
Como se vê, as decisões reclamadas efetivamente contrariam o
entendimento desta Corte firmado em precedente dotado de força vinculante.
4. Pelo exposto, nos termos do art. 161, parágrafo único, do RISTF, julgo procedente a presente reclamação, a fim de determinar que o Tribunal local aprecie novamente o pedido de transação penal, quanto ao crime de menor potencial ofensivo, à luz da jurisprudência consolidada desta Corte e dos requisitos legais.
Publique-se. Intime-se.
Brasília, 10 de junho de 2024.
Ministro EDSON FACHIN
Relator
Documento assinado digitalmente
(STF - Rcl: 67748 RJ, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 10/06/2024, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 10/06/2024 PUBLIC 11/06/2024)
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