STF Jun24 - Invasão Domiciliar - Lei de Drogas - Inexistência de Fundadas Razões para o Ingresso Policial

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola

há 32 segundos

EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 5º, INC. XI, DA CRFB. INVIOLABILIDADE DOMICILIAR: DESRESPEITO. FUNDADAS RAZÕES PARA INGRESSO DOS POLICIAIS: INEXISTÊNCIA. ILEGALIDADE MANIFESTA. 1. A entrada desautorizada e desacompanhada de mandado judicial em residência particular só se justifica quando existentes fundadas razões da ocorrência de situação de flagrante delito, observado o que dispõe o art. 5º, inc. XI, da CFRB, nos termos do Tema nº 280 do ementário da Repercussão Geral. 2. A existência de indícios, sem conexão segura, de prática delitiva, em local incerto e por pessoa desconhecida, não autoriza o ingresso desautorizado em domicílio. 3. A constatação do flagrante, sem justificação prévia da sua ocorrência, é desinfluente, não infirmando a conclusão no sentido da ocorrência da nulidade. 4. A ilegalidade da diligência revela a ilicitude dos elementos dela oriundos e implica, observados o art. 157 do Código de Processo Penal e a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of poisonous tree), a contaminação dos atos que se seguiram. 5. O vício, por envolver a comprovação da materialidade do crime, resulta na insubsistência da condenação. 6. Agravo regimental do Ministério Público Federal ao qual se nega provimento.

(STF - RHC: 235290 SP, Relator: Min. ANDRÉ MENDONÇA, Data de Julgamento: 15/04/2024, Segunda Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 13-06-2024 PUBLIC 14-06-2024)

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NO VOTO

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA (RELATOR):

1. O recurso não merece ser provido.

2. O Ministério Público Federal não trouxe argumentos para infirmar a decisão ora agravada, que deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos:

"Decido.

8. Confiram-se os seguintes trechos da sentença condenatória:

" No local do acidente automobilístico não havia nenhuma vítima nem indício da prática de nenhum crime . Por mais suspeito que possa parecer a não localização do condutor do veículo e de qualquer vítima, fato é que os dados armazenados em celular estão protegidos pelo artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. Mesmo em casos de flagrante delito é cediço que a devassa em aparelho celular deve ser precedida de autorização judicial.
(...)
Poder-se-ia até justificar o acesso dos policiais militares à agenda telefônica, a fim de encontrar algum indício do proprietário do celular ou do veículo que se encontrava tombado às margens da rodovia. No entanto, não há justificativa para o acesso aos arquivos de fotografia ou qualquer outro tipo de mídia, sendo certo ainda que foram as fotografias lá encontradas de drogas, armas e dinheiro que deram ensejo à busca e apreensão realizada no apartamento da Rua Porfírio Pimentel
(também desamparada de ordem judicial).
Como se vê, a obtenção dos dados existentes no celular se deu em violação de normas constitucionais e legais, a revelar a inadmissibilidade da prova, nos termos do art. 157, caput, do Código de Processo Penal. Dessarte, referidas provas devem ser desentranhadas dos autos, bem como as provas derivadas.
(...)
Como relatado pelos próprios policiais militares, a entrada no apartamento situado na rua Porfírio Pimentel foi motivada pelo encontro das fotografias existentes no celular, as quais indicavam a possível prática de traficância naquele endereço . O simples encontro do veículo tombado às margens da rodovia não dava nenhum indício desse crime, de maneira que a entrada dos policiais militares no apartamento, sem o amparo de autorização judicial, também afrontou o direito constitucional à inviolabilidade de domicílio previsto no art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal.
Ficou evidente que, no caso em apreço, não existiam circunstâncias mínimas que indicassem a guarda de entorpecentes ou mesmo outras condutas vinculadas ao tráfico . Destarte, a reconstrução histórica dos fatos aponta para um comportamento indevido da parte dos policiais, consistente na violação da intimidade pela devassa do aparelho celular e posterior invasão de domicílio sem que, para tanto, tivessem obtido expressa autorização, livre e desembaraçada, do morador ou mesmo sem que estivessem reunidas outras circunstâncias que permitissem aquele ingresso .
Não nego conhecimento sobre o entendimento pacificado pelos Tribunais Superiores e também pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no sentido de que o tráfico de drogas é crime permanente, que se protrai no tempo e, portanto, o flagrante delito estaria corroborado. Todavia, há que existir elementos mínimos a justificar essa afronta da polícia em direito fundamental no cidadão, o que não se verificou no caso, desde a indevida devassa do aparelho celular encontrado no local do acidente automobilístico.
Enfim, no caso sob análise, a devassa no aparelho celular e o ingresso indevido e ilícito no apartamento atingiram, diretamente, a apreensão das substâncias entorpecentes. Mas não é só. Também foram contaminadas todas as demais provas derivadas da originalmente ilícita. É o que se denomina de ilicitude por derivação .
Assim, uma vez afastados os elementos informativos obtidos na fase inquisitorial, não restam provas que sustentem a tese acusatória. De rigor, portanto, a absolvição do acusado ."(e-doc. 7; grifos nossos).

9. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao dar provimento à apelação do Parquet , condenou o recorrente. Considerou lícitas as provas provenientes do acesso à galeria de fotos de seu celular. Concluiu, ainda, configuradas fundadas razões para entrada desautorizada no domicílio, haja vista o encontro fortuito de provas:

"A proteção à intimidade do indivíduo, prevista na Constituição, norteia a legislação penal e de outros ramos do direito que sempre procuram colocar limites que autorizam a deflagração da atuação dos agentes do Estado quando não munidos de ordem judicial

(...)

Com isso, a Carta Magna impede a atuação do Estado policial de maneira desmedida e leniente que, ao invés de se munir de elementos indiciários e de autorização judicial, simplesmente parte para uma invasão sistemática de domicílios ou de escutas telefônicas sem o mínimo de critério.

Refletindo este sistema protetivo, prevê o art. 244 do Código de Processo Penal que "A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar".

O cerne destes dispositivos é limitar a atuação do Estado na sua figura policial, inquisidora enquanto ele estiver atuando neste escopo. Isto é, quando houver a vontade livre e consciente de se apurar um crime, o sistema protetivo entra em ação, evitando abordagens infundadas e abusivas.

Contudo, não é nesta ceara única que se centra a atuação do Estado e, embora as garantias individuais sejam sempre um inescapável parâmetro, elas devem ser interpretadas à luz da investidura da atuação estatal no caso concreto.

Essa conclusão tem uma semântica maior do que aparenta e não é mero jogo de palavras, pois as limitações constitucionais e legais do policial militar são diferentes daquelas do médico socorrista ou mesmo do bombeiro militar.

Fixada esta premissa, questiona-se: qual a figura estatal que os policiais militares estavam representando naquele momento? Qual a finalidade da sua iniciativa ao checar o celular encontrado?

As respostas são óbvias: estavam ali na figura de socorristas; não foram atender denúncia de tráfico, mas salvar acidentados . A falta crônica de profissionais especializados no serviço público acaba por implicar a polícia repressiva em atuações que deveriam ser de outro órgão, como os bombeiros ou os paramédicos. Nesse cenário, ninguém questionaria, por exemplo, a legitimidade de um médico que, na ausência de vítimas, abrisse um celular abandonado no local, na intenção de esclarecer o que houve e prestar o socorro necessário. Pois foi essa a intenção dos policiais; não abriram o celular na figura de inquisidores ou para apurar crime de tráfico, mas sim para localizar potenciais vítimas, testemunhas e o proprietário do veículo e, com isso, entender a dinâmica do acidente, já que tudo estava ao relento . Por um acaso, depararam-se com provas materiais do crime de tráfico . Esse comportamento é tão legítimo e tem a mesma licença constitucional que o próprio mandado de busca e apreensão para fins de descoberta fortuita.

(...)

Assim, por essa teoria, o objeto apreendido deve estar totalmente visível para o policial. No caso, estava. Bem verdade que o celular estava abandonado, sem qualquer expectativa legítima de privacidade, por parte do dono .

Os policiais também devem estar legalmente no local. E estavam, pois o carro estava capotado na via pública e ingressaram nele para prestar socorro.

Por fim, a natureza incriminatória das provas deve ser patente. As imagens, verificadas na fl. 121, falam por si: inúmeros pacotes tipicamente embalados como entorpecentes o são; fotos de inúmeras "folhas" de LSD, além de um revólver. Por fim, havia chave de um imóvel, com o endereço impresso .

As evidências levaram à imediata e correta diligência ao apartamento em que estavam os tóxicos que, assim como o carro, estava abandonado e, a considerar o que disse o pai do réu, ele nem deveria estar lá. Neste contexto, o ingresso no domicílio encontrava-se legitimado pela descoberta fortuita anterior e foi apenas desdobramento desta ."(e-doc. 9, p. 7-10; grifos nossos). 10. A 6a Turma do Superior Tribunal de Justiça apreciou o

mérito da impetração lá formalizada, repisando os argumentos trazidos pela Corte a quo:

"Depreende-se dos autos que policiais militares foram acionados para atender uma ocorrência relacionada à existência de um veículo capotado em uma rodovia, razão pela qual se deslocaram até o lugar indicado . Lá chegando, depararam com o automóvel tombado e algumas pessoas próximas, mas não havia nenhuma vítima aparente. Dentro do veículo acharam um celular e, no intuito de tentar identificar o proprietário, acessaram o aparelho, que estava desbloqueado. Na agenda não encontraram nada relevante, mas no álbum fotográfico depararam com diversas imagens de armas, drogas e dinheiro . Também no automóvel havia uma chave, com o endereço de um imóvel anotado no chaveiro. Diante desse contexto, os agentes foram até o apartamento, abriram-no com a chave e, no seu interior, localizaram drogas, um caderno com contabilidade do tráfico e alguns documentos .

Respeitado o entendimento da ilustre Juíza de direito, cuja preocupação em zelar pela observância às garantias fundamentais do acusado - em consonância com o que vem reiteradamente propondo esta Corte Superior de Justiça - merece ser louvada, não identifico, na específica hipótese dos autos, flagrante ilegalidade na conduta policial, conforme passo a expor.

A análise da validade da diligência deve ser dividida em dois momentos: 1) o acesso aos dados do aparelho celular e 2) o ingresso no domicílio do paciente.

No que concerne à primeira parte da ação policial, constato a existência de duas razões centrais a legitimar a medida adotada pelos agentes públicos, apesar do entendimento desta Corte Superior de que "é ilícita a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial" (REsp n. 1.675.501/MG, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6a T., DJe 27/10/2017).

Primeiro, o fato de que o aparelho estava desbloqueado e abandonado junto com o veículo, razão pela qual não havia razoável expectativa de privacidade sobre os dados nele contidos , tal como ocorrido em situação similar examinada por esta Sexta Turma no HC n. 522.455/ES.

(...)

Em segundo lugar, cumpre registrar que, ao examinar o aparelho, os policiais não o fizeram com o propósito de devassar a intimidade do acusado a fim de investigá-lo pela prática de eventual ilícito, mas sim para tentar identificar o proprietário do veículo acidentado. Tanto que, inicialmente, olharam apenas a agenda telefônica, mas, sem encontrar nada relevante para aquela finalidade, abriram o álbum fotográfico, oportunidade em que, por acaso, depararam com imagens de armas, drogas e dinheiro .

Assim, não constato, nessa conduta, ilegalidade que justifique a anulação das provas.

Da mesma forma, a segunda parte da diligência policial não me parece abusiva.

Com efeito, os militares estavam com a chave do apartamento do réu - cujo endereço estava anotado no chaveiro - e havia fundadas razões para crer que ali se ocultavam objetos ilícitos, em virtude das diversas fotografias de armas, drogas e dinheiro encontradas no aparelho celular do acusado. Esse cenário, em meu sentir, conferia aos agentes da lei justa causa para estender a diligência até o referido imóvel, mormente se considerado que não havia tempo hábil, naquele contexto, para solicitar um mandado judicial .

Assim, uma vez que havia fundadas razões que sinalizavam a ocorrência de crime e porque evidenciada, já de antemão, hipótese de flagrante delito, considero haver sido regular a busca domiciliar, sem autorização judicial e sem o consentimento do morador."(e-doc. 27, p. 9-12; grifos nossos).

11. Quanto à alegação de" devassa "ilegal da privacidade do recorrente em razão do acesso aos dados contidos no celular, adiro ao que assentado pelo Superior Tribunal no sentido de que " não havia razoável expectativa de privacidade sobre os dados nele contidos ".

12. Pelo que se depreende dos autos, o presente caso difere daqueles nos quais normalmente se reconhece a ilegalidade do acesso, sem autorização judicial, a aparelho telefônico. Primeiro, não se sabia quem era o detentor do celular, que estava abandonado e desbloqueado . Segundo, não se tinha, no momento em que precedeu o acesso ao celular, contexto de flagrante delito ou de atividade policial ostensiva ou de investigação criminal. Em vez disso, os agentes policiais, que atendiam a chamado acerca de acidente veicular, buscavam identificar o proprietário de veículo capotado na rodovia e possíveis vítimas. A confirmar essa circunstância, tem-se que, inicialmente, foi acessada a agenda telefônica e, somente pela falta de êxito em encontrar pessoas relacionadas ao acidente, chegou-se à galeria de fotos, quando foram descobertas imagens de drogas e outros objetos ilícitos.

13. Entretanto, o que seguiu, a meu sentir, revela claro desrespeito à inviolabilidade domiciliar.

14. O instituto processual da busca domiciliar está previsto no Código de Processo Penal, a partir do art. 240, nos seguintes termos:

"Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.

§ 1º. Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:

a) prender criminosos;

b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;

c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;

d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;

e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;

f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;

g) apreender pessoas vítimas de crimes;

h) colher qualquer elemento de convicção.

Art. 241. Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado."(grifos nossos).

15. A simples leitura do texto legal evidencia que a medida deve ser determinada, mediante decisão judicial, quando imprescindível às investigações, condicionada à existência de elementos concretos (fundadas razões, nos termos legais) que justifiquem sua necessidade.

16. Não estando presente essa situação, a entrada desautorizada e desacompanhada de mandado judicial em residência particular só se justifica quando existentes fundadas razões da ocorrência de situação de flagrante delito , observado o que dispõe o art. 5º, inc. XI, da CFRB.

17. A esse respeito, cumpre ressaltar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 603.616- RG/RO (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 05/11/2015, p. 10/05/2016 - Tema nº 280 do ementário da Repercussão Geral), definiu a seguinte tese: " A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori , que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados ".

18. Conforme assentado nesse julgamento, a licitude da entrada forçada em domicílio não precedida de autorização judicial, mesmo que se trate de possível prática de crime de natureza permanente, exige a demonstração de fundadas razões, anteriores à diligência, a indicarem, de forma concreta, a ocorrência do crime. A exigência de "fundadas razões" segue a mesma diretriz probatória da busca domiciliar com mandado judicial (art. 240, § 1º, do CPP).

19. Na espécie, está-se diante de situação peculiar. De fato, havia imagens de drogas e objetos ilícitos. Ocorre que não se sabia quem estava envolvido nos suposto ilícitos, muito menos havia qualquer confirmação de que as drogas e demais objetos ilícitos se encontravam na residência cujo endereço constava em chaveiro no interior do carro.

20. Na verdade, nem mesmo era possível assegurar que o celular era pertencente à pessoa relacionada ao endereço. Nessa situação, presentes indícios de práticas delitivas, impunha-se a realização de procedimento investigatório prévio, a fim de relacionar os indícios de prática criminosa encontrados ao demais elementos encontrados no veículo e identificar possíveis autores. Somente após isso, confirmada a suspeita inicial, poderia ter havido ingresso no domicílio, munindo-se de mandado judicial ou, caso existentes fundadas razões da ocorrência de flagrante no local, desacompanhado deste.

21. Contudo, não foi essa a atuação policial. As fotos provenientes do telefone, fortuitamente encontradas pela autoridade policial no local do acidente, constituíram os únicos dados de convicção que lastrearam o ingresso forçado na residência . Apesar de lícitos os dados obtidos por meio de acesso ao celular, há, no caso, uma clara transgressão ao direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, versado no art. 5º, inc. XI, da Constituição da Republica.

22. Importante salientar, mais uma vez, que não foram realizadas diligências investigativas anteriores para a entrada no domicílio , sendo somente consideradas as mencionadas imagens de objetos ilícitos somadas à pressuposição, sem qualquer corroboração, de que se encontravam em endereço constante em chaveiro .

23. Outrossim, a apreensão de drogas na moradia - isto é, a confirmação da suspeita dos policiais - não infirma a conclusão no sentido da ocorrência da nulidade. Nessa linha, foi o que assentou o Supremo no julgamento do Tema nº 280 do ementário da Repercussão Geral:

"A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida.

(...)

A proteção contra a busca arbitrária exige que a diligência seja avaliada com base no que se sabia antes de sua realização, não depois ."

(RE nº 603.616-RG/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 05/11/2015, p. 10/05/2016; grifos nossos).

24. Na verdade, não custa lembrar que, caso fosse outro o desfecho da ação policial, nem sequer existiria o presente debate. Explico melhor: somente se discute violação ao domicílio na esfera criminal quando são encontrados elementos comprovadores do cometimento de crime. Desse modo, na esteira do precedente citado, a constatação do flagrante, sem justificação prévia da sua ocorrência, é desinfluente.

25. A ilegalidade da diligência revela a ilicitude dos elementos dela oriundos e implica, observados o art. 157 do Código de Processo Penal e a teoria dos frutos da árvore envenenada ( fruits of poisonous tree ), a contaminação dos atos que se seguiram. O vício, por envolver a comprovação da materialidade do crime, resulta na insubsistência da condenação do recorrente.

26. A conclusão não destoa da jurisprudência desta Corte. A esse respeito, cito os seguintes precedentes:

"Agravo regimental na reclamação. 2. Penal e Processual Penal. 3. RE 603.616/RO. Tema 280. 3. Inviolabilidade de domicílio. Art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. 4. Análise do caso concreto. 5. Entrada sem mandado e sem autorização. 6. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida.

7. Falta de justa causa. 8. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 9. Negado provimento ao agravo regimental."

(Rcl nº 49.010-AgR/GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 11/11/2021, p. 18/02/2022; grifos nossos).

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. OMISSÃO. ACÓRDÃO QUE REGISTROU APENAS A ÍNFIMA QUANTIDADE DE DROGA COMO FUNDAMENTO PARA O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXISTÊNCIA DE UM SEGUNDO FUNDAMENTO NAS RAZÕES DE DECIDIR. A ILEGALIDADE DA BUSCA E APREENSÃO DA SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE NO INTERIOR DO DOMICÍLIO, SEM MANDADO JUDICIAL PRÉVIO E AUSENTE QUALQUER INDÍCIO DE OCORRÊNCIA DE FLAGRANTE DELITO. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA . EMBARGOS PROVIDOS. I - Embargos providos para esclarecer que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem de habeas corpus, em sessão realizada no dia 18/4/2017, para trancar a ação penal a que respondia o paciente, tendo sido adotadas, como razões de decidir, a ínfima quantidade de droga e a ilegalidade da busca e apreensão da substância entorpecente no interior do domicílio do embargante, sem mandado judicial prévio e ausente qualquer indício de ocorrência de flagrante delito, o que torna ilícita a prova obtida . II - Embargos de declaração providos."

(HC nº 138.565-ED/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, j. 24/08/2018, p. 03/09/2018." (grifos nossos).

3. Observa-se que a decisão agravada está em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, firmada no julgamento do RE nº 603.616-RG/RO (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27/05/2010, p. 08/10/2010 - Tema nº 280 do ementário da Repercussão Geral).

4. Conforme consta dos autos, agentes policiais, que atendiam a chamado acerca de acidente veicular, buscavam identificar o proprietário de veículo e possíveis vítimas por meio de acesso a telefone encontrado no interior do veículo acidentado e abandonado. Nesse contexto, tiveram acesso a imagens, armazenadas no aparelho, de drogas e armas. Na mesma ocasião, visualizaram endereço em chaveiro deixado no veículo. Naquele momento, não se tinha qualquer informação acerca do proprietário (ou proprietários) do celular, do veículo, tampouco dos moradores do domicílio constante no chaveiro encontrado.

5. Além disso, não havia qualquer confirmação de que as drogas e demais objetos ilícitos constante da imagem acessada no celular se encontravam na residência cujo endereço constava no chaveiro. Na verdade, nem mesmo era possível assegurar que o celular era pertencente à pessoa relacionada ao endereço . O que se tinha, àquela altura, eram indícios, sem conexão segura, de prática delitiva em local incerto e por pessoa desconhecida.

6. Consoante assentei, nessa situação, presentes indícios de práticas delitivas, impunha-se a realização de procedimento investigatório prévio, a fim de relacionar os indícios de prática criminosa encontrados ao demais elementos encontrados no veículo e identificar possíveis autores. Não está a se dizer que era necessária instauração formal de inquérito, mas apenas simples averiguação prévia, de modo angariar elementos da fundada suspeita da prática de crimes no interior da residência.

7. Somente após isso, confirmada a suspeita inicial, poderia ter havido ingresso no domicílio, munindo-se de mandado judicial ou, caso existentes fundadas razões da ocorrência de flagrante no local, desacompanhado desse.

8. No entanto, não foi o que ocorreu, sendo somente consideradas as

mencionadas imagens de objetos ilícitos somadas à pressuposição, sem qualquer corroboração, de que se encontravam em endereço constante no chaveiro.

9. Desse modo, há, no caso, uma clara transgressão ao direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, versado no art. 5º, inc. XI, da Constituição da Republica.

10. Por consequência, tal como assentado na decisão agravada, a ilegalidade da diligência revela a ilicitude dos elementos dela oriundos e implica, observados o art. 157 do Código de Processo Penal e a teoria dos frutos da árvore envenenada ( fruits of poisonous tree ), a contaminação dos atos que se seguiram. O vício, por envolver a comprovação da materialidade do crime, resulta na insubsistência da condenação.

11. Assim, entendo não assistir razão à parte agravante.

12. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

É como voto.

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