STJ Jun24 - Nulidade Na Conversão do Processo em Diligência para Ouvir Vítima Novamente no TJ, Após Absolvição em Estupro de Vulnerável :diligência deve ser supletiva, sem extrapolar o âmbito das provas já produzidas, evitando o juiz substitua "atuação probatória do órgão de acusação"...

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola


HABEAS CORPUS Nº 920898 - SP (2024/0210037-5) RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA

DECISÃO Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de R. P apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 

Consta dos autos que o paciente foi denunciado pelo crime de estupro de vulnerável. Após regular instrução, foi o paciente absolvido. Inconformados, o Ministério Público Estadual e a assistente de acusação apresentaram recurso de apelação. 

No presente writ, sustenta a defesa a ilegalidade na decisão do Relator do recurso de apelação que, ao receber o recurso de apelação, determinou a conversão do julgamento em diligência a fim de realizar nova oitiva da vítima em 1º grau de jurisdição, em afronta ao Sistema Processual Penal Acusatório. Alega que o Tribunal de Justiça não poderia, de ofício e sem prévio requerimento das partes, determinar o refazimento de ato supostamente eivado de vício (em desacordo com a Lei n. 13.431/2017), sobretudo em prejuízo do paciente. 

Aponta que a diligência solicitada ultrapassa os limites dos poderes instrutórios em juízo de 2º grau, tendo em vista que visa produzir prova capaz de justificar a condenação do paciente e não complementar ou esclarecer dúvidas. Requer, liminarmente, a suspensão da conversão do julgamento em diligência determinada pela Autoridade Coatora, até o julgamento do mérito do presente writ. No mérito, pleiteia o reconhecimento da ilegalidade na conversão do julgamento da apelação em diligência (nova oitiva da vítima). 

 Foi a liminar deferida "para suspender a conversão do julgamento em diligência determinada pela Autoridade Coatora, até o julgamento do mérito do presente writ." (e-STJ fls. 742/746). Com vista dos autos, opinou o Ministério Público Federal "pela concessão daordem, ratificando-se a decisão que deferiu o pedido de liminar, para que não sejarealizada nova tomada de depoimento especial da vítima nos termos do que foi decidido peloTribunal local." (e-STJ fls. 753/757). 

É o relatório. Decido.

 De fato, o art. 616 do Código de Processo Penal, inserido no capítulo que trata do julgamento nos tribunais de apelação, dispõe que, "no julgamento das apelações poderá o tribunal, câmara ou turma proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir testemunhas ou determinar outras diligências". A doutrina, ao se manifestar sobre mencionado artigo, dispõe:

Natureza das diligências: devem ser meramente supletivas, voltadas ao esclarecimento de dúvidas dos julgadores de segunda instância, não podendo extrapolar o âmbito das provas já produzidas, alargando o âmbito da matéria em debate, pois isso configuraria nítida supressão de instância e causa de nulidade. É inadmissível o procedimento do tribunal de produzir novas provas, das quais não tem – e não teve por ocasião da sentença – ciência o juiz de primeiro grau, julgando o recurso com base nelas. Assim fazendo, não estará havendo duplo grau de jurisdição, mas uma única – e inédita – decisão, da qual não poderão as partes recorrer. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 1.423/1.424).

Como visto, as lições doutrinárias buscam, em regra, compatibilizar mencionado dispositivo legal com o sistema acusatório e com a função do julgador, que, embora imparcial, não pode ser tido como mero espectador inerte. 

Dessa forma, a diligência deve ser meramente supletiva, sem extrapolar o âmbito das provas já produzidas, evitando-se, assim, que o juiz substitua "atuação probatória do órgão de acusação", conforme explicitado no art. 3º-A do Código de Processo Penal.

 Mencionado dispositivo legal foi inserido por meio do denominado Pacote Anticrime, Lei n. 13.964/2019, que buscou consolidar o sistema acusatório, preservando e valorizando as características essenciais da estrutura acusatória do processo penal brasileiro. No entanto, a vigência do capítulo referente ao Juiz das garantias, no qual inserido o art. 3º-A do Código de Processo Penal, encontra-se suspensa, em razão do deferimento de liminar pelo Supremo Tribunal Federal em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs ns. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305). 

Nada obstante, além de a suspensão estar motivada, primordialmente, em questões estruturais, consistentes na alteração da organização de serviços judiciários e nos impactos financeiros, tem-se que o sistema acusatório encontra assento na própria Constituição Federal, em seu art. 129, inciso I, não dependendo, portanto, da vigência de dispositivo legal que, na prática, apenas busca valorizar o sistema acusatório. Feitas essas considerações, constata-se que, de fato, o julgador possui legitimidade para requerer diligências, no entanto, estas devem ser meramente supletivas, sem extrapolar o âmbito das provas já produzidas, uma vez que, conforme explicitado, no sistema acusatório, não cabe ao julgador substituir a "atuação probatória do órgão de acusação".

 Na hipótese, o Tribunal de origem converteu o feito em diligências, "para ser colhido depoimento especial da vítima, na formado art. 11, II, da Lei n. 13.431/2017, sem a presença dos genitores." Observa-se que o Tribunal de origem buscou não apenas complementar uma prova existente, mas colhe-la novamente, prova essa de suma importância para a aferição da autoria delitiva, o que afasta a aplicação do art. 616 do CPP. Nesse sentido:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. DECISÃO QUE NEGOU SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO A TODOS FUNDAMENTOS. CORRETA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 182/STJ. 2. PLAUSIBILIDADE DAS ALEGAÇÕES DA DEFESA. POSSIBILIDADE DE EXAME DE OFÍCIO. 3. HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO DE APELAÇÃO. CONVERSÃO DO FEITO EM DILIGÊNCIAS DE OFÍCIO. FORMULAÇÃO DE QUESITO SUPLEMENTAR. POSSIBILIDADE. ART. 616 DO CPP. 4. DILIGÊNCIAS QUE DEVEM SER MERAMENTE SUPLETIVAS. IMPOSSIBILIDADE DE SUBSTITUIR A ATUAÇÃO ACUSATÓRIA. HIPÓTESE EM QUE SE FIRMOU A CAUSA DETERMINANTE DO ACIDENTE. PROVA PRINCIPAL EM PREJUÍZO À DEFESA. NULIDADE. 5. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO. 1. A defesa não se desincumbiu de refutar, de forma adequada, os fundamentos da decisão que negou seguimento ao recurso especial, atraindo, dessa forma, a incidência do enunciado n. 182 da Súmula desta Corte. 2. Diante da plausibilidade das alegações da defesa, que, acaso constatadas, revelam efetivo constrangimento ilegal, passo ao exame da matéria de mérito, uma vez que o não conhecimento do recurso não impede a concessão de habeas corpus de ofício. 3. O art. 616 do CPP dispõe que, "no julgamento das apelações poderá o tribunal, câmara ou turma proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir testemunhas ou determinar outras diligências". A diligência, no entanto, deve ser meramente supletiva, sem extrapolar o âmbito das provas já produzidas, evitando-se, assim, que o juiz substitua "atuação probatória do órgão de acusação", conforme explicitado no art. 3º-A do CPP, em homenagem ao sistema acusatório, que tem assento constitucional (art. 129, I). 4. Em uma ação penal por crime de homicídio culposo no trânsito, a prova referente à causa determinante da colisão não pode ser considerada mera prova supletiva, cuidando-se, em verdade, da prova principal, a qual, por certo, extrapola o arcabouço probatório produzido pelas partes, durante a instrução processual. Ademais, constata-se o efetivo prejuízo gerado à defesa, uma vez que a condenação foi confirmada com fundamento na mencionada prova. Nessa linha de intelecção, mister se faz reconhecer a nulidade do laudo complementar, haja vista se tratar de prova essencial determinada de ofício em prejuízo da defesa, bem como do acórdão recorrido, uma vez que fundamentado no referido laudo.- Constitui alicerce do processo penal brasileiro o sistema acusatório, no qual, em oposição à modalidade inquisitorial, impõe-se uma clara divisão de atribuições entre os sujeitos processuais responsáveis por acusação, defesa e julgamento na persecução criminal. (HC 347.748/AP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 10/10/2016). (REsp 1658752/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 17/04/2018, DJe 02/05/2018). 5. Agravo regimental a que se nega provimento. Ordem concedida de ofício para reconhecer a nulidade do laudo complementar e, por consequência, do acórdão recorrido, por se tratar de prova principal determinada de ofício em prejuízo da defesa. Devem os autos retornar ao Tribunal de origem para que a apelação da defesa seja novamente julgada, como entender de direito, excluído o laudo considerado nulo. (AgRg no AREsp n. 1.877.128/DF, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), relator para acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 8/2/2022, DJe de 25/3/2022.)

Relevante anotar que nova oitiva da vítima, sem a presença dos genitores, poderia ter sido devidamente requerida por ocasião das diligências complementares, na fase do art. 402 do Código de Processo Penal, tanto pelo Ministério Público quanto pela assistente de acusação. Contudo, nada foi requerido, causando estranheza que a prova determinante da responsabilidade penal tenha sido determinada de ofício, após a prolação da sentença absolutória.

 Ante o exposto, acolhendo o parecer ministerial e ratificando a liminar deferida, concedo a ordem para cassar o acórdão que converteu o julgamento da apelação em diligência. Comunique-se, com urgência. Intimem-se. Brasília, 20 de junho de 2024. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA Relator

(STJ -  HABEAS CORPUS Nº 920898 - SP (2024/0210037-5) RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA,  Publicação no DJe/STJ nº 3891 de 21/06/2024)

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