STJ Set24 - Nulidade das Provas - Lei de Drogas - Acesso ao Celular e Mensagens Sem Ordem Judicial

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola


Inteiro Teor

HABEAS CORPUS Nº 771171 - CE (2022/0292208-9)

EMENTA

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ACESSO AO CELULAR DA PACIENTE E ÀS CONVERSAS DO WHATSAPP ARMAZENADAS NO REFERIDO APARELHO. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PROVA ESSENCIAL PARA SUBSTANCIAR A CONDENAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
NULIDADE. OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. EXTENSÃO DA ORDEM. ART. 580 DO CPP.
Ordem concedida nos termos do dispositivo, com extensão ao corréu Oseas SZZZZZZZ.

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de Joyce XXXXXXXX, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Ceará (Apelação Criminal n. 0159285-57.2018.8.06.0001).

Narram os autos que a paciente foi condenada a 8 anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e 1.200 dias-multa, como incursa nos arts 33 e 35 da Lei n. 11.343/2006.

Interposta apelação, o Tribunal a quo deu-lhe parcial provimento para absolver a ré pelo delito de associação para o tráfico e para redimensionar sua pena para 3 anos e 4 meses de reclusão e 333 dias-multa, em regime inicial aberto, substituindo-se a pena privativa de liberdade, por duas penas restritivas de direitos.

Daí o presente writ, em que a defesa busca o reconhecimento da nulidade da prova no Processo n. 0159285- 57.2018.8.06.0001, da 4ª Vara de Delitos de Tráfico de Drogas da comarca da Capital/CE, com a consequente absolvição de Joyce Gomes de Souza quanto à prática do crime de tráfico de drogas.

Sustenta, para tanto, que todas as provas constantes nos autos decorrem diretamente do acesso indevido que os policiais obtiveram às mensagens trocadas através do aplicativo WhatsApp da acusada (fl. 7). Aduz-se que o fato de a composição policial ter lido as conversas do aparelho celular da paciente, independente de elas estarem na tela inicial do celular ou não, configura, por óbvio, a violação da sua intimidade (fl. 8), e que todas as demais provas obtidas no curso da investigação e do processo penal derivaram dessa prova obtida de forma ilícita. Portanto, tal flagrante ilegalidade torna ilícitas não só as provas obtidas pelo acesso ilegal ao celular da acusada, mas contamina todo o procedimento penal (fl. 8).

Por fim, traz pedido nos seguintes termos (fls. 12/13):

Ante o exposto, requer a V. Exa. que se digne de:

1. Notificar a autoridade jurisdicional coatora para os fins de prestação de informações;
2. Intimar o representante do Ministério Público para intervir em todos os procedimentos do presente feito;
3. Conceder a LIMINAR para suspensão da execução da pena, até que seja definitivamente julgado o presente writ, evitando-se, assim, a desnecessária prisão da paciente;
4. Ao final, CONCEDER A ORDEM DE HABEAS CORPUS, para ABSOLVER a ré diante da nulidade da prova;
5. Subsidiariamente, caso não seja conhecido o habeas corpus, requer seja concedida a ordem de ofício, diante da flagrante ilegalidade que pode ser conhecida independentemente de provocação.

Indeferida a liminar às fls. 626/627.

O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do writ ou pela denegação da ordem (fls. 633/641).

É o relatório.

Acerca das alegações apresentadas, vejamos, no ponto, o que consta do acórdão (fls. 432/433 - grifo nosso):

Preliminarmente, a recorrente em seu recurso de apelação pleiteia a nulidade de todas as provas do processo, ao argumento de que o celular da recorrente foi examinado pelos policiais, quando do flagrante delito, de forma ilegal.
Pois bem.
De logo, tem-se pela rejeição de tal preliminar, isto porque, pela simples leitura do ato sentencial (fls. 197/205), é fácil a constatação de que para a imposição do édito condenatório o magistrado não se utilizou da prova apontada pela recorrente como ilegal e sim dos demais meios de provas, tais como o os laudos de constatação, os depoimentos dos policiais quanto à autoria delitiva e a própria confissão da acusada, em que pese qualificada (dado que assume a propriedade da droga, mas sob o argumento que o entorpecente era exclusivamente para consumo próprio).
A título comprobatório, colaciono alguns trechos do ato sentencial:
"(...)
Materialidade Materialidade: laudo de p. 107 indica que o material submetido a exame (CRACK) se trata de substância entorpecente capaz de causar dependência psíquica segundo a portaria n 344/98 da ANVISA/Ministério da Saúde.
Autoria Cotejo das teses acusatória e defensiva conforme provas produzidas:
com efeito restou demonstrada a conduta ilícita dos réus conforme provas apresentadas pela acusação, suficientes para gerar certeza condenatória.
Ambos são réus confessos e a dedução para o enquadramento da conduta demanda pouco esforço probatório pela coerência com tudo o que se apurou.
Daí, entendo que a situação em análise não confronta o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, perfilhado no RHC 89.891, de Relatoria do Min. Reynaldo Soares da Fonseca, assim ementado:
"1. Embora a situação retratada nos autos não esteja protegida pela Lei n. 9.296/1996 nem pela Lei n. 12.965/2014, haja vista não se tratar de quebra sigilo telefônico por meio de interceptação telefônica, ou seja, embora não se trate violação da garantia de inviolabilidade das comunicações, prevista no art. 5º, inciso XII, da CF, houve sim violação dos dados armazenados no celular do recorrente (mensagens de texto arquivadas WhatsApp).
2. No caso, deveria a autoridade policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados, haja vista a garantia, igualmente constitucional, à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, prevista no art. 5º, inciso X, da CF. Dessa forma, a análise dos dados telefônicos constante dos aparelhos dos investigados, sem sua prévia autorização ou de prévia autorização judicial devidamente motivada, revela a ilicitude da prova, nos termos do art. 157 do CPP. Precedentes do STJ.
3. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a ilicitude da colheita de dados do aparelho telefônico dos investigados, sem autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as derivadas, serem desentranhadas dos autos."
Ademais, não há que se falar na ilegalidade da prova, vez que a conversa que os policias visualizaram no celular da ré no aplicativo WhatsApp encontrava-se na tela do celular, ou seja, sem a necessidade de acessar as comunicações da apelante, não havendo assim violação à intimidade vez que, sequer, houve acesso ao aplicativo por parte dos milicianos.
Destaca-se, ainda, que houve uma operação específica que resultou na prisão dos ora apelantes, precedida por denúncia realizada através de aplicativo restrito da polícia, com descrição das características da corré, seus trajes e sua moto, bem como, informando acerca da mercancia de drogas. Após sua identificação pelos policiais, ela os levou até o corréu que colaborou para a apreensão do entorpecente, que estava guardado dentro do veículo, em um compartimento criado para o ocultar, ou seja, o curso normal das investigações conduziria aos elementos informativos que vinculariam os réus ao fato investigado.
Sendo assim, uma vez que a apreensão da droga e a prisão dos apelantes não ocorreram somente devido à visualização do display do celular da corré, não há que se falar em nulidade por ilicitude das provas colhidas em desfavor dos apelantes. Por estes fundamentos, rejeita-se a preliminar suscitada.

De fato, o Superior Tribunal de Justiça, ao examinar a questão aqui apresentada, tem enfatizado, em sucessivos julgados, que é ilícita a tomada de dados, bem como das conversas de Whatsapp, obtidas diretamente pela autoridade policial em aparelho celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial. Nesse sentido, a propósito: RHC n. 92.009/RS, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 16/4/2018.

Isso porque o ordenamento jurídico pátrio assegura como garantia ao cidadão a inviolabilidade da intimidade, do sigilo de correspondência, dados e comunicações telefônicas, salvo se houver ordem judicial.

Por sua vez, a Lei 12.965/2014, que estabelece os princípios, garantias e deveres para o uso da Internet no Brasil, prevê, no art. 7º, que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial (grifo nosso).

Ora, há muito tempo, o celular deixou de ser apenas um aparelho de telefone, ganhando múltiplas funções, tais como a verificação de e-mails, de mensagens de textos e, ainda, de diversos aplicativos que possibilitam a comunicação de dados entre as pessoas.

Com efeito, consta do auto de prisão em flagrante que (fls. 17/18 - grifo nosso):

[...] Que achando estranho o valor em seu poder, foi investigado o celular de Joyce, através do Whatsapp, sendo logo localizado uma conversa com um homem de nome Oseas, marcando um encontro para realizar a compra de drogas ilícitas naquele mesmo horário; Que após mostrar a conversa para Joyce, essa resolveu assumir que realmente estava negociando com um homem de nome Oseas a compra de 100 gramas de crack; Que Joyce disse que apenas estava realizando uma transação de compra para outra pessoa, informando ainda que não conhecia pessoalmente Oseas, pois apenas estava indo pegar a droga e entregar a pessoa que lhe contratou, porém não quis revelar o nome; Que Joyce então resolveu informar a polícia o local onde teria marcado com Oseas... [...]

Ora, da leitura dos trechos acima transcritos, vê-se que, no ato da prisão em flagrante, os policiais, após acharem estranho o fato de a ré portar R$ 1.000,00 (mil reais) em espécie, tiveram acesso às mensagens armazenadas no aparelho celular supracitado, constatando, na conversa, a intenção de comprar drogas.

Contudo, entende-se ser ilegal a tomada de dados em telefone celular sem prévia autorização judicial.

A propósito:

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
JULGAMENTO MONOCRÁTICO. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. INEXISTÊNCIA. TRÁFICO DE DROGAS CIRCUNSTANCIADO PELO ENVOLVIMENTO DE ADOLESCENTES (LEI 11.343/06, ART. 33, CAPUT, C/C O 40, VI) E ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA CIRCUNSTANCIADA PELA PARTICIPAÇÃO DE ADOLESCENTES. DESDOBRAMENTO DA" OPERAÇÃO TENTÁCULOS ". PROVAS DERIVADAS DE DADOS TELEFÔNICOS CONTIDOS EM APARELHO CELULAR.
ANUÊNCIA DA PROPRIETÁRIA QUE NÃO É RÉ NA PRESENTE AÇÃO. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. REEXAME DE FATOS E PROVAS. PROVIDÊNCIA VEDADA PELA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. A prolação de decisão unipessoal pelo Ministro Relator não representa violação do princípio da colegialidade, pois está autorizada pelo art. 34 do Regimento Interno desta Corte e em diretriz consolidada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça por meio do enunciado n. 568 de sua Súmula.
2. Esta Corte Superior"vem enfatizando, em sucessivos julgados, que é ilícita a tomada de dados, bem como das conversas de Whatsapp, obtidas diretamente pela autoridade policial em aparelho celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial"(HC n. 674.185/MG, Relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/8/2021, DJe 20/8/2021).
3. Assim,"os dados constantes de aparelho celular obtidos por órgão investigativo - mensagens e conversas por meio de programas ou aplicativos (WhatsApp) - somente são admitidos como prova lícita no processo penal quando há precedente mandado de busca e apreensão expedido por juiz competente ou quando há autorização voluntária de interlocutor da conversa"(AgRg no HC n. 646.771/PR, Relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Quinta Turma, julgado em 10/8/2021, DJe 13/8/2021).
4. No caso, as provas derivadas das informações armazenadas no telefone celular apreendido, conforme assentaram as instâncias ordinárias, foram obtidas no contexto de desdobramento da"Operação Tentáculos", que visava a coibir o tráfico de entorpecentes promovido por integrantes da organização criminosa intitulada Primeiro Grupo Catarinense (PGC), a partir de mandados de busca e apreensão e autorização judicial para acesso aos dados dos celulares apreendidos. Além disso, o aresto recorrido destacou que a proprietária do aparelho que não é parte na presente ação penal franqueou o acesso aos dados, desbloqueando espontaneamente o celular.
5. A partir do quadro fático delineado pelas instâncias antecedentes, não se vislumbra situação em que o agente tenha sido compelido, constrangido ou mesmo induzido a produzir provas contra si, não sendo possível concluir pela ocorrência de prejuízo ao livre exercício das garantias constitucionais inerentes ao processo penal.
6. Como é de conhecimento, não se proclama uma nulidade sem que se tenha verificado prejuízo concreto à parte, sob pena de a forma superar a essência. Vigora, portanto, o princípio pas de nulitté sans grief, a teor do que dispõe o art. 563 do Código de Processo Penal:"nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa".
7. Para se alterar as premissas fáticas e a dinâmica dos acontecimentos firmados pelas instâncias ordinárias não se prescinde de aprofundado reexame do acervo fático-probatório, providência sabidamente vedada em sede de recurso especial consoante prescreve a Súmula 7/STJ.
8. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp n. 2.347.064/SC, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 17/10/2023, DJe 30/10/2023 - grifo nosso).

O contexto descrito nos autos também deixa claro que, somente após a coleta de dados no telefone da ré, ou seja, conforme afirmado pelos próprios policiais:" após mostrar a conversa para Joyce ", foi que ela assumiu que compraria os entorpecentes, levou os policiais ao ponto de encontro com o traficante e assim foi apreendida a droga.

Nesse toar, não há falar em suficiência de provas para a condenação por tráfico se não tivesse ocorrido o acesso aos dados do celular da ora paciente. Antes do acesso, os policiais detinham apenas uma denúncia pelo aplicativo Zello e a apreensão de R$ 1.000,00 (mil reais).

Ora, somente foi possível concluir pela materialidade do delito, com o exame pericial nos entorpecentes, porque a droga foi encontrada com o traficante, após a ré assumir a traficância diante da constatação das mensagens em seu celular. Da mesma forma, ela apenas confessou o delito após a devassa em seu celular, razão pela qual não há como acatar o fundamento do Tribunal a quo de que o juízo não se valeu das conversas do Whatsapp para supedanear a condenação.

Por outro lado, ainda que a conversa com o corréu pudesse ser acessada pela tela bloqueada do celular, houve acesso aos dados do celular sem prévia autorização judicial, o que é inconcebível nos termos da jurisprudência desta Corte Superior de Justiça.

Dessa forma, tem-se por ilícitos o acesso aos dados e conversas de Whatsapp obtidos do aparelho celular apreendido sem autorização judicial e, ainda, as provas que daí decorreram.

Por conseguinte, da atenta leitura dos documentos acostados aos autos, observa-se que a condenação está amparada na prova colhida ilicitamente no aparelho celular da paciente. Sem o acesso às conversas de Whatsapp armazenadas no referido aparelho, diga-se, seria impossível a prisão da paciente, assim como sua condenação.

Verificada, ainda, a existência do corréu Oseas Silva Lima, em situação idêntica à da paciente, deve-lhe ser estendida a concessão do direito reconhecido neste writ, nos termos do art. 580, c/c o art. 654, § 2º, todos do Código de Processo Penal.

Ante o exposto, concedo a ordem para declarar a nulidade das provas obtidas no aparelho celular da paciente sem autorização judicial, assim como aquelas delas derivadas, e absolvê-la da imputação delituosa (art. 33 da Lei de Drogas) referente à Ação Penal n. 0159285-57.2018.8.06.0001, que tramitou na 4ª Vara de Delitos de Tráfico de Drogas da comarca de Fortaleza/CE, com extensão ao corréu OseaXXXXXXXXXXXa.

Comunique-se com urgência.

Intime-se o Ministério Público estadual.

Publique-se.

Brasília, 16 de setembro de 2024.

Ministro Sebastião Reis Júnior

Relator

(STJ - HC: 771171, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 18/09/2024)

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