STJ Fev25 - Peculato - Absolvição e Atipicidade - Servidor Fantasma (recebe e não trabalha)

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola

DECISÃO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS interpõe recurso especial, com fundamento no art. 105, III, "a", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça daquele estado no Habeas Corpus n. 1.0000.22.082153-2/000. Os acusados foram denunciados como incursos no art. 312 c/c o art. 327, ambos do Código Penal.

O Tribunal de origem concedeu habeas corpus para trancar o processo ante a atipicidade da conduta. Nas razões do recurso especial, o recorrente aponta violação dos arts. 41, 395, 647 e 648, todos do Código de Processo Penal; 312 c/c 29 e 327, todos do Código Penal; e 25, III, da Lei n. 8.624/1993. Em síntese, sustenta que a não prestação de serviços por funcionários "fantasmas" é conduta típica e passível de sanção penal.

O recorrente requer o provimento do recurso a fim de determinar o prosseguimento da ação penal. O Ministério Público Federal, em parecer do Subprocurador-Geral da República Luciano Mariz Maia, opinou pelo não provimento do recurso.

Decido.

Conforme reiterada jurisprudência desta Corte Superior, o trancamento do processo em habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando ficarem demonstradas, de maneira inequívoca e a um primeiro olhar, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade.

A denúncia narra que o vereador, na condição de presidente da Câmara Municipal de Bom Jesus do Galho, nomeou os recorridos para cargo em comissão e que receberam remunerações sem haver executado suas funções nem possuíam os requisitos para o desempenho do cargo (fls. 26-33).

O Tribunal de origem concedeu a ordem para trancar o o processo em favor dos pacientes, com base nos seguintes fundamentos (fls. 1.443-1.451, grifei):

Busca o impetrante o trancamento do processo de n. 0086477- 14.2019.8.13.0134, no qual os pacientes foram denunciados pelo delito do artigo 312 c/c 29 e 327, todos do Código de Processo Penal. Não se desconhece que o Habeas Corpus é via de estreita análise, pressupondo, portanto, a presença de prova pré-constituída da efetiva ocorrência de constrangimento ilegal. O exame de teses relativas ao mérito da ação penal, como a ausência de justa causa, atipicidade da conduta e inépcia da denúncia, via de regra, não é permitido pela via estreita do Habeas Corpus por depender de dilação probatória, incompatível com o rito célere do writ. Todavia, se a ilegalidade for patente e restar devidamente demonstrada nos autos, a concessão da ordem é a medida de rigor. Consta da exordial acusatória que os denunciados, nomeados para o cargo em comissão de Diretor Geral da Câmara Municipal de Bom Jesus do Galho, teriam concorrido para a apropriação e desvio de valores públicos dos quais teriam posse em razão de seus cargos. Narra a denúncia que: Consoante apurado, a partir do dia 02 de janeiro de 2018, em Bom Jesus do Galho/MG, Fernando de Assis Batista, Ana Luiza Pereira Ribeiro, Almir Ribeiro Filho e Geraldo Jordan de Souza Júnior, ora denunciados atuando em união de desígnios e comunhão de vontades, na condição de servidores públicos, apropriaram-se e desviaram valores públicos, de que tinham a posse em razão dos seus cargos, em proveito próprio e alheio. Segundo consta, no dia 02 de janeiro de 2018, Fernando de Assis Batista (1º DENUNCIADO), na qualidade de vereador e presidente da Câmara Municipal de Bom Jesus do Galho, nomeou Ana Luiza Pereira Ribeiro (2º DENUNCIADA), para o cargo em comissão de Diretora Geral, cujo salário era de R$ 2.426,42 (dois mil, quatrocentos e vinte e seis reais e quarenta e dois centavos). Ainda no mesmo ato, nomeou também Geraldo Jordan de Souza Júnior (4º DENUNCIADO) para cargo em comissão de assessor jurídico, cujo vencimento era de R$ 2.855,33 (dois mil, oitocentos e cinquenta e cinco reais e trinta e três centavos). Em 02 de fevereiro, o vereador Fernando de Assis (1º DENUNCIADO) nomeou Almir Ribeiro Filho (3° DENUNCIADO) para o cargo em comissão de Diretor Geral cujo salário era de R$ 2 426,42 (dois mil, quatrocentos e vinte e seis reais e quarenta e dois centavos). As funções acima citadas possuem atribuições fixadas em lei, sendo que o assessor jurídico deve possuir graduação no curso de Direito e estar inscrito regularmente na OAB, para "prestar assessoria jurídica, especialmente à mesa diretora, promover ações judiciais de interesse da Câmara Municipal), atuar na defesa dos interesses da Câmara Municipal nos processos judiciais, executar outras tarefas correlatas a critério da Câmara Municipal". O Diretor Geral deve possuir nível de escolaridade superior, para "supervisionar os trabalhos administrativos de Câmara Municipal; assessorar administrativamente a mesa da Câmara Municipal; assessorar as reuniões da Câmara Municipal; elaborar, juntamente com o Presidente, a pauta de reuniões; executor outras tarefas correlatos o critério da mesa da Câmara Municipal”. Todos os dois cargos exigem o cumprimento de carga horária semanal de 40 (quarenta) horas semanais. Todavia, os denunciados estavam previamente ajustados para desfalcar o patrimônio público, não exercendo quaisquer das funções acima citadas, sequer comparecendo à Câmara Municipal, exceto em raras ocasiões, apesar de receber regularmente os vencimentos inerentes as suas funções, em suas contas correntes. De fato, à ata da 4ª reunião ordinária do 2º período, da 18ª legislatura, da Câmara Municipal de Bom Jesus do Galho, datada de 16 de abril de 2018, registra intervenção do vereador Domingos Sávio Guimarães da Silva, no qual ele pede a palavra para afirmar que os 2°, 3° e 4º DENUNCIADOS, todos nomeados pelo 1º DENUNCIADO, nunca haviam sido vistos na Cama a Municipal, No curso das investigações foram também ouvidas testemunhas, que provaram a ausência de comparecimento regular na Câmara, para cumprimento da carga horária e exercício das funções. Os valores inerentes à prestação laboral foram regularmente depositados nas contas dos denunciados Almir, Ana Luiza e Geraldo. Há que ressaltar que dois dos denunciados, Almir (3º DENUNCIADO) e Ana Luiza (3º DENUNCIADA), foram nomeados para exercício do mesmo cargo (Diretor Geral), sem possuir graduação superior, requisito obrigatório, previsto em lei. Registre-se, ainda, que o horário de trabalho é de 40 (quarenta) horas semanais, mas a Câmara Municipal não possui sistema eletrônico de ponto, sequer a presença era registrada manualmente. Posteriormente o inicio das investigações, Almir (3ª DENUNCIADO - em 01/07/2018) e Ana Luiza (3º DENUNCIADA - em 02/02/2018) foram exonerados, mas desfalcaram os cofres públicos, em R$ 14.934,81, (quatorze mil, novecentos e trinta e quatro reais e oitenta e um centavos) e R$ 2.355,87 (dois mil, trezentos e cinquenta e cinco reais e oitenta e sete centavos), respectivamente, posto que ostentavam a qualidade de "fantasmas". Já Geraldo Jordan (4º DENUNCIADQ) ainda persiste no exercício do cargo, tendo já recebido ilicitamente, sem a devida contraprestação laboral, o valor de R$ 47.017,76 (quarenta e sete mil e dezessete reais e setenta e seis centavos), ate o mês de março de 2019. Por fim, insta registrar que Almir (3º DENUNCIADO) acumulou ilicitamente cargos públicos: com efeito, consta sua nomeação, em 02/01/201735 na função de pregoero da Prefeitura de Bugre/M6, cargo que exerceu até 06/05/2018. Todavia, o citado denunciado exerceu cargo da Prefeitura de Belo Oriente/MG, de assessor técnico de licitações, de 10/01/2017 a 15/02/2017. Não bastasse, de 02/02/2018 a 01/07/2018, o malsinado denunciado foi diretor geral da Câmara Municipal de Bom Jesus do Galho. Ainda exerceu funções de pregoeiro em Bugre, de 02/06/2016P a 01/01/2019. Da análise da denúncia, não é possível se extrair, com a necessária clareza a descrição de conduta típica praticada pelos pacientes. A despeito de os acusados se defenderem dos fatos contidos na denúncia e não da capitulação jurídica correspondente, no caso dos autos, é possível vislumbrar um patente constrangimento ilegal. Descreve a acusação, inicialmente, que os quatro denunciados, em união de desígnios e comunhão de vontades, apropriaram-se e desviaram valores públicos dos quais tinham posse, valendo-se de seus cargos e da condição de funcionários públicos. Dispõe o artigo 312, caput e §1º, do Código Penal que: [...] O peculato-desvio e o peculato-apropriação, tais como mencionados na denúncia, pressupõem, para a tipicidade da conduta, a prévia e lícita posse dos valores públicos em razão do cargo. In casu, nota-se que os pacientes nunca tiveram qualquer disponibilidade jurídica sobre o dinheiro público para que pudessem exercer o desvio ou a apropriação exigidos pelo tipo penal. O que se tem é um vereador que, diante de suas atribuições como Presidente da Câmara dos Vereadores, nomeou pessoas para o cargo comissionado de Diretor Geral, pelo qual receberiam a remuneração correspondente. O primeiro denunciado, portanto, seria o único apto e competente a dispor juridicamente dos valores públicos, ainda que a posse seja de forma indireta. A imputação dos pacientes Almir e Ana Luiza ao tipo penal, por conseguinte, perpassaria o concurso de agentes. Dispõe o artigo 29 do Código Penal contido na denúncia: [...] Embora conste a atuação dos denunciados em “união de desígnios e comunhão de vontades”, a aplicação da teoria monista pressupõe o estabelecimento de vínculo subjetivo entre os agentes para a efetivação da apropriação ou desvio de finalidade do dinheiro público, o que não foi devidamente narrado na denúncia. Ainda que descrita a ausência de qualificação dos denunciados para o cargo e a cumulação de cargos públicos por parte de Almir, tais quesitos possuem natureza objetiva e não são capazes de estabelecer a correlação necessária entre a narrativa e o tipo penal. Se, de um lado, tem-se a narrativa fática do vereador que, em tese, teria desviado dinheiro público em proveito alheio ou próprio, por outro, não há qualquer descrição na denúncia que demonstre um ajuste prévio entre o agente nomeante e os pacientes nomeados no sentido de dispensá-los do cumprimento de suas atribuições como Diretores Gerais, mesmo ante o devido pagamento de suas remunerações. Tampouco é narrado de que forma os pacientes aderiram à suposta vontade do primeiro denunciado, repassando verbas ou atuando conscientemente para beneficiar o vereador por meio suas nomeações, tendo como objeto do crime as verbas públicas. Tais requisitos são imprescindíveis para se estabelecer a vinculação subjetiva dos pacientes à conduta tida como típica pelo Ministério Púbico. Em relação a eles, tem-se apenas o recebimento de valores consequentes de um cargo para o qual foram nomeados, tratando-se de mero cumprimento de uma obrigação legal oriunda da relação jurídica estabelecida. Não há, por conseguinte, uma narrativa fática no sentido do dolo de se apropriar ou desviar dinheiro público por parte dos pacientes. A conduta descrita cinge-se tão somente ao suposto fato de não serem vistos na Câmara dos Vereadores, o que indicaria o não exercício das atribuições inerentes ao cargo, a despeito da remuneração por eles recebida. Eventual não cumprimento das atribuições legais do cargo, bem como a acumulação de cargos públicos e até mesmo a ausência de qualificação para o cargo, embora possam evidenciar sérias irregularidades, não constituem ilícito penal, restringindo-se, da forma como contido na denúncia, à seara administrativa. [...] Ante todo o exposto, não respeitada a correlação entre a narrativa fática e o tipo penal, inexistindo, pois, conduta típica descrita na denúncia em relação aos ora pacientes, necessário o trancamento parcial do processo. Assim, CONCEDO A ORDEM para determinar o trancamento do processo de nº 0086477-14.2019.8.13.0134 em relação aos pacientes Almir Ribeiro Filho e Ana Luiza Pereira Ribeiro e suas respectivas imputações (artigo 312, caput, c/c 29 e artigo 327, todos do Código de Processo Penal).

O caso dos autos configura hipótese excepcional de trancamento do processo por atipicidade da conduta. Embora as condutas descritas na inicial possam ter repercussão na esfera da improbidade administrativa, os fatos apurados em relação aos supostos funcionários "fantasmas" não são penalmente relevantes, pois não se amoldam ao crime de peculato.

Segundo a jurisprudência desta Corte, o pagamento de remuneração a servidores públicos que não executaram suas atividades – popularmente conhecidos como "funcionários fantasmas" – ou mesmo a ausência de qualificação jurídica para o cargo não caracteriza o delito previsto no art. 312 do CP, mesmo que questionável a contratação pelo vereador.

Exemplificativamente:

1. Na hipótese, a denúncia narra que "a organização criminosa era estruturada e seus membros possuíam tarefas específicas: alguns aceitavam ocupar cargos sem nenhuma contraprestação laboral [...]; a outros cabia a missão de arregimentar potenciais "servidores fantasmas" [...]; outros cuidavam do recolhimento dos valores decorrentes dos vencimentos pagos aos "servidores fantasmas" [...]; e, por fim, os imprescindíveis detentores de cargos com autoridade para contratar servidores comissionados", esclarecendo que as agravadas, além de outras pessoas, foram contratadas [...], sendo que "nunca exerceram qualquer atividade laboral nos órgãos legislativos nos quais estavam nomead[as]", segundo monitoramentos realizados pela equipe de inteligência do Ministério Público. 2. Forçoso concluir que tais elementos atestam a plausibilidade da tese defensiva, visto que a afirmação de que as agravadas foram "coniventes com a empreitada criminosa desde suas nomeações" não altera a imputação por peculato em decorrência da sua condição de "funcionário fantasma", o que afronta o entendimento desta Corte Superior, visto que "o pagamento de salário não configura apropriação ou desvio de verba pública", "pois remuneração devida" (REsp n. 1.633.248/SE, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe de 4/2/2019). 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no RHC n. 164.742/GO, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 4/12/2023, DJe de 7/12/2023, grifei) [...] é atípico o ato do servidor que se apropria da remuneração que já lhe pertencia, em razão do cargo por ele ocupado, mas que não tenha executado, como contraprestação, os servidos inerentes ao cargo público que exerce. Isso porque, apesar da inassiduidade do servidor ou mesmo o abandono de suas funções terem repercussões disciplinares ou no âmbito da improbidade administrativa, tal conduta não se ajusta ao delito de peculato, pois seus vencimentos efetivamente lhe pertenciam (AgRg no AREsp n. 2.398.453/RN, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 8/9/2023, destaquei).

Nesse mesmo sentido, veja-se a manifestação do Subprocurador-Geral da República Luciano Mariz Maia (fls. 2.313-2.317, destaquei):

Pois bem, conforme se nota, a conduta atribuída aos recorridos é a de terem sido nomeados para cargos públicos, sem os requisitos legais para tanto, não tendo comparecido ao expediente de trabalho, de modo que receberam do erário sem a efetiva contraprestação em serviços. A conduta é certamente reprovável e ímproba, mas é considerada atípica pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, conforme bem assentado no acórdão do TJMG. [...] No caso, poder-se-ia aventar participação em eventual peculato praticado pelo parlamentar municipal que nomeou os recorridos, desde que tivessem trabalhado de forma particular para o vereador, tendo como contraprestação os vencimentos recebidos do erário, ou desde que narrado o repasse dos salários ao acusado Fernando de Assis Batista (“rachadinha”). [...] Desta forma, tendo se limitado o MPMG a narrar as nomeações e o recebimento dos vencimentos sem a contraprestação em serviço público, forçoso reconhecer que foi narrada atípica, passível de reconhecimento em habeas corpus, com o trancamento do processo penal. Noto que a discussão sobre o ânimo dos recorridos, se tinham consciência ou não da ilicitude, é desimportante para fins de caracterização típica do peculato, pois o que importa é a impossibilidade de apropriar-se de coisa que já é sua e que, como tal, também não pode figurar como desvio de coisa de terceiro (no caso, dinheiro público). Isto é, a situação é inviável de classificação como peculato-desvio ou peculato-apropriação.

À vista do exposto, nego provimento ao recurso especial. Publique-se e intimem-se.

Relator

ROGERIO SCHIETTI CRUZ

(STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 2047963 - MG (2023/0013374-5) RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Publicação no DJEN/CNJ de 24/02/2025.)

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