STJ Maio25 - Júri - Pronúncia Anulada - Inovação - Princípio da Correlação Denúncia e Sentença Ferido - Art. 384 do CPP
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO
DANIEL EXXXXXXXXXXXXS alegam sofrer coação ilegal em virtude de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará no Recurso em Sentido Estrito n. 0006139-20.2011.8.06.0137.
A defesa aponta haver constrangimento ilegal em decorrência de manifesto excesso de linguagem no acórdão que confirmou a pronúncia, ao afirmar que os réus tinham o dever legal de agir para evitar o resultado morte e emitir juízo de certeza sobre o conjunto probatório. Requer, nesse sentido, a anulação do acórdão impugnado.
A liminar foi indeferida e o Ministério Público Federal manifestou-se pelo não conhecimento do habeas corpus.
Decido.
Acerca da decisão de pronúncia, preceitua o art. 413 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. § 1º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena.
Com efeito, o judicium accusationis constitui mero juízo de admissibilidade da acusação. Assim, muito embora a decisão de pronúncia, dada a sua importância para o réu, deva ser bem fundamentada, sob pena de nulidade, nos termos do inciso IV do art. 93 da Carta Magna, o magistrado deve empregar linguagem sóbria e comedida, a fim de não exercer nenhuma influência no ânimo dos jurados e ficar adstrito ao reconhecimento da existência do crime e de indícios de autoria.
Conforme leciona Eugênio Pacelli de Oliveira:
Na decisão de pronúncia, o que o juiz afirma, com efeito, é a existência de provas no sentido da materialidade e da autoria. Em relação à materialidade, a prova há de ser segura quanto ao fato. Já em relação à autoria, bastará a presença de elementos indicativos, devendo o juiz, tanto quanto possível, abster-se de revelar um convencimento absoluto quanto a ela. É preciso considerar que a decisão de pronúncia somente deve revelar um juízo de probabilidade e não o de certeza. [...] Não se pode perder de vista que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, conforme exigência e garantia constitucional. (Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 722-723, grifei).
Aramis Nassif ensina: "a fundamentação deve ser cuidadosa, objetivando demonstrar, repita-se, apenas a admissibilidade da pretensão acusatória". Além disso, complementa o autor: Consequentemente, é orientação unânime de todos quanto estudam o júri, que o magistrado deve: a) evitar manifestação de crítica ou censura à conduta dos pronunciandos que não seja necessária para demonstrar a existência do fato ou sua autoria; b) evitar o emprego de adjetivos que tragam, implicitamente, a sua vocação condenatória ou absolutória em relação à conduta do pronunciado. (O Júri Objetivo. 2 ed. revista e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 43)
Sobre a matéria, a jurisprudência desta Corte de Justiça proclama, por meio da sua Terceira Seção, que não se configura o alegado excesso de linguagem quando, por ocasião da prolação da decisão de pronúncia, o julgado se refere às provas constantes dos autos para verificar a ocorrência da materialidade e a presença de indícios suficientes de autoria, aptos a ensejar o julgamento do feito pelo Tribunal do Júri. Exemplifico o entendimento:
[...] 2. Não prospera a alegação de excesso de linguagem por ocasião da decisão de pronúncia, pois as instâncias de origem não emitiram juízo de valor acerca da certeza da autoria, mas, tão somente, demonstraram, no vasto acervo probatório, a prova da materialidade e a existência de indícios suficientes que apontam o paciente como o autor dos fatos narrados na denúncia e afastaram o pleito de absolvição sumária, por não estar a alegada excludente plenamente clara. 3. Habeas Corpus não conhecido. (HC n. 303.353/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 25/4/2016). De igual modo, esta Corte de Justiça já decidiu: a mera indicação dos elementos probatórios que sustentam a acusação, os quais formaram a convicção do magistrado sobre a admissibilidade da acusação, não é suficiente para configurar excesso de linguagem na decisão de pronúncia quando inexiste imputação inequívoca a respeito da responsabilidade pelo crime ou valoração das teses apresentadas pelas partes (HC n. 138.177/PB, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., DJe 28/8/2013). No mesmo sentido: [...] 2. A fase da pronúncia constitui mero juízo de admissibilidade da acusação. A sentença de pronúncia é o ato que expressa a convicção do juiz quanto à existência do crime (materialidade), sendo imperioso que sejam indicados os elementos probatórios que alicerçam a decisão de submeter o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri, isto é, que sejam demonstrados, de forma sucinta, mas fundamentada, que existem indícios de autoria. Nesse contexto, não há que se falar em excesso de linguagem, se o decisum limitou-se a apontar as provas que dão suporte à acusação. 3. Não prospera a alegação de excesso de linguagem por ocasião da sentença de pronúncia, pois a leitura do acórdão recorrido demonstra justamente o contrário, isto é, que o decisum limitou-se à demonstração da materialidade do fato e à indicação da existência de indícios suficientes de autoria. 4. Agravo regimental não provido (AgRg no AREsp n. 757.690/ES, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 9/11/2015)
A defesa aponta os seguintes trechos da decisão colegiada que confirmou a pronúncia como viciados (fls. 142-143, destaques na petição):
7. O pleito de impronúncia do recorrente DanieXXXXXXXXa, o qual alega não ter entrado na residência palco do homicídio qualificado, não merece prosperar, pois a aludida testemunha M. A. de S. A. assevera que este policial, igualmente aos demais, ingressou na residência da vítima, no qual, em tese, as agressões teriam ocorrido. Em reforço argumentativo, não se pode olvidar que tanto Daniel Evangelista quanto Francisco Thiago, mesmo que, supostamente, não tivessem praticado as agressões físicas que resultaram no óbito da vítima, tinham o dever legal de agir, em razão do flagrante delito e, com isto, evitar o resultado morte, conforme se depreende da alínea “a” do §2º do art. 13 do Código Penal. [...] 9. Por outro lado, o lastro probatório não demonstra, de maneira inequívoca, que o pronunciado Gledson da Silva Santos agiu com amparo na excludente de ilicitude da legítima defesa (art. 25 do CP), pois, mesmo que se admita que a ofendida tivesse se desvencilhado das algemas e tentado alcançar a arma de fogo do referido recorrente, as lesões certificadas no laudo cadavérico não seriam compatíveis com a suposta luta corporal, especialmente as constantes nos pulmões que estavam congestos com petéquias, demonstrando a asfixia mecânica e o quadro de anoxia, ou seja, contenção superior ao período necessário para imobilizar uma pessoa, assim como a luxação da 1ª vértebra cervical com rotação completa do pescoço não é condizente com a mera contenção da ofendida. 10. Conquanto a defesa dos réus sustente a tese de ausência de animus necandi, há uma versão nos autos que admite a pronúncia e a submissão dos recorrentes a julgamento perante o Tribunal do Júri, sendo esta a extraída das declarações das vítimas sobreviventes, dos depoimentos colhidos em juízo e do laudo cadavérico, o qual atestou o politraumatismo e os sinais de tortura, evidências as quais indicam que os recorrentes assumiram o risco de produzir o resultado morte, tendo, no mínimo, agido com dolo eventual. Além disso, não se pode olvidar o relatado pela testemunha M. A. de S. A. quando afirmou: “... eles estouraram meus ouvidos, fraturaram minhas costelas e falavam direto que um dos três vai morrer. Ai, a senhora não aguentou e morreu. Ela faleceu dentro da casa dela. Eles botaram dentro da viatura para socorrer, mas só que já era tarde.” 11. Caso o arcabouço probatório não seja capaz de comprovar, de forma indubitável, a ausência do dolo homicida, não há que se falar em desclassificação para o delito de homicídio culposo, já que, em tese, o mero fato de o recorrente Gledson conter a vítima pelo pescoço não seria capaz de, a princípio, provocar todas as lesões atestadas pelo laudo cadavérico, tampouco acarretar os “sinais de tortura” (fl. 22), devendo as teses suscitadas pela Defesa serem submetidas ao Conselho de Sentença. [...] 14. Em relação à qualificadora de impossibilidade de defesa, também não há como afastá-la, para o momento, haja vista que a ofendida estava imobilizada, totalmente “à mercê” de seus algozes, sem condições de oferecer qualquer resistência aos ataques praticados, os quais perduraram por considerável tempo, segundo os depoimentos prestados em juízo.
Em linhas gerais, os excertos do acórdão destacados na impetração e ora reproduzidos não se revestem de ilegalidade, uma vez que cuidam de assinalar a existência de elementos probatórios colhidos para evidenciar que as teses defensivas sustentadas naquele momento devem ser analisadas pelo Conselho de Sentença, juízo competente para tanto.
Como regra, efetivamente, não se identifica afirmação conclusiva capaz de induzir os jurados à certeza de autoria, pois sempre esteve atrelada às provas produzidas no feito, o que, como visto acima, é aceito pela jurisprudência do STJ.
Logo, em sua expressiva parte, o acórdão que se pretende reformar está em harmonia com a jurisprudência deste Superior Tribunal. Entretanto, há um ponto específico em que considero que o juízo de simples prelibação foi ultrapassado com o emprego de fundamentação peremptória e inovadora em relação à denúncia.
Refiro-me, particularmente, à menção feita no voto condutor do acórdão, ainda que a título de argumento de corroboração, à possibilidade de responsabilização penal dos réus por omissão imprópria mediante o enfático e indevido reconhecimento de nexo de causalidade normativo entre a conduta omissiva e o resultado naturalístico.
Para contextualizar, transcrevo parte da fundamentação adotada no acórdão que tratou do aspecto ora ressaltado (fls. 154-155, grifei):
A prova oral coletada em juízo converge para o acerto da sentença de pronúncia. De fato, os relatos testemunhais são coesos e harmônicos. Vale ressaltar que o laudo cadavérico explicita o detalhe de que a vítima trajava roupa de dormir de duas peças, branca, vermelha e preta com detalhes de flores (fl.21). Esta descrição das vestimentas da ofendida já confirma que a mesma se encontrava dormindo, quando os policiais adentraram em sua residência, durante a madrugada. Desta forma, não obstante os recorrentes afirmem não terem praticado o delito que lhes é imputado, o arcabouço probatório milita no sentido de que participaram de alguma forma do evento que culminou no óbito da senhora Maria Dagmar Moreira de Oliveira. Conquanto os recorrentes Daniel Evangelista de Lima e Francisco Thiago de Oliveira Viana afirmem que não encostaram a mão na vítima Maria Dagmar Moreira de Oliveira, o testemunho de Marcos Antônio de Sousa Amaral milita no sentido de que os três pronunciados se revezavam nas agressões praticadas, tendo o depoente ressaltado, ainda, que o recorrente Gledson era o que mais colocava o saco na cabeça da falecida. Assim, resta evidente que o pleito de impronúncia do recorrente Daniel Evangelista, o qual alega não ter entrado na residência, não merece prosperar, pois a aludida testemunha assevera que este policial, igualmente aos demais, ingressou na residência da vítima, no qual, em tese, as agressões teriam ocorrido. Este relato é confirmado pelo filho da vítima, Francisco Diego Moreira de Oliveira, conforme transcrição acima. Em reforço argumentativo, não se pode olvidar que tanto Daniel Evangelista quanto Francisco Thiago, mesmo que supostamente não tenham praticado as agressões físicas que resultaram no óbito da senhora Maria Dagmar, tinham o dever legal de agir em razão do flagrante delito e, com isto, evitar o resultado morte, conforme se depreende da alínea “a” do §2º do art. 13 do Código Penal, in verbis: Art. 13 (...) § 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; Das provas coligidas aos autos, verifica-se que foi escorreita a pronúncia dos três recorrentes. Em relação aos pronunciados Daniel Evangelista e Francisco Thiago, estes estavam no local e no momento em que os fatos delitivos ocorreram; não havia risco de vida para qualquer um dos militares ali presentes, e ainda assim esquivaram-se do dever legal de policiais militares que ambos possuíam e, por isso, preencheram, para dizer o mínimo, os requisitos da omissão imprópria, a qual enseja a responsabilização dos aludidos militares pelo óbito da vítima. Segundo as lições de Guilherme de Souza Nucci, nos crimes omissivos impróprios quando aquele que tem o dever de agir, imposto por lei, deixa de atuar, contribui para o resultado, senão veja-se: “(...) envolvem um não fazer, que implica a falta do dever legal de agir, contribuindo, pois, para causar o resultado. Não têm tipos específicos, gerando uma tipicidade por extensão. Para que alguém responda por um delito omissivo impróprio é preciso que tenha o dever de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa ou culposamente, auxiliando na produção do resultado.”
Esse trecho da decisão atacada, ao confirmar a pronúncia, inovou em relação à denúncia. Com efeito, a peça acusatória imputou aos réus somente a prática de atos comissivos que resultaram no evento morte (fls. 23-28), de modo que, em respeito ao princípio da congruência ou da correlação, o pronunciamento judicial ao final do Juízo de acusação não poderia tratar, como ocorreu na espécie, da presença do nexo de evitação, elemento pertinente apenas aos crimes omissivos impróprios e cujo reconhecimento judicial pressupõe prévia descrição fática não constante da denúncia supracitada.
Como já decidiu esta Corte, “o princípio da correlação entre a acusação e a sentença é uma garantia típica do sistema acusatório, em que são bem definidas as funções de acusar, defender e julgar. É indiscutível que, nos crimes afetos ao Tribunal do Júri, a pronúncia deverá estar de acordo com o que foi narrado na inicial acusatória” (AgRg no AREsp n. 925.669/MT, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/8/2018, DJe de 9/8/2018).
Essa precisa irregularidade do acórdão é suficiente para configurar o constrangimento ilegal relatado na impetração e autoriza a concessão da ordem, cuja extensão deve ensejar a anulação da decisão que confirmou a pronúncia e o seu desentranhamento dos autos.
Não desconheço, naturalmente, o entendimento adotado por este Superior Tribunal de que, em prol da celeridade e da efetividade processuais, admite a rasura de pequenos trechos em que se identifica excesso de linguagem na pronúncia ou no acórdão confirmatório. Nesse sentido, cito os seguintes julgados: AgRg no HC n. 755.983/BA, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 8/11/2022, DJe de 16/11/2022 e AgRg no AREsp n. 1.452.839/GO, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 15/6/2020.
Na hipótese, todavia, conquanto essa solução pudesse ser eficaz para superar essa fase processual, mormente se considerado que os fatos delituosos ocorreram em 17/12/2010 e a decisão de pronúncia foi proferida em primeira instância apenas em 28/2/2022, entendo que permaneceria o risco de influência na decisão dos jurados por residir a mácula em parte alongada do acórdão cuja cópia seria disponibilizada àqueles julgadores, nos moldes do art. 472 do CPP.
Essas particularidades do caso concreto, portanto, recomendam a solução de providência mais eficiente, como, aliás, já decidiu esta Corte em alinhamento com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM RECONHECIDO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Reconhecido pelo Tribunal a quo o excesso de linguagem na decisão de pronúncia, em observância ao recente entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, em atenção ao art. 472 do CPP e à vedação aos pronunciamentos ocultos, não é suficiente a determinação de que seja riscado do texto da pronúncia parágrafo considerado por aquela Corte abusivo na linguagem adotada. Deve, portanto, ser declarada a nulidade do decisum, a fim de outro ser prolatado sem o vício apontado. 2. Recurso especial provido para anular a decisão de pronúncia e determinar o retorno dos autos ao Juízo de primeiro grau. (REsp n. 1.432.464/MT, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 8/11/2018, DJe de 26/11/2018, destaquei)
À vista do exposto, concedo a ordem de habeas corpus para anular o acórdão que confirmou a decisão de pronúncia (fls. 140-165) e determinar o seu desentranhamento (exclusão) dos autos da ação penal correspondente e, por via de consequência, a realização de novo julgamento do recurso em sentido estrito interposto pela defesa. Comunique-se, com urgência, às instâncias ordinárias para as providências cabíveis. Publique-se e intimem-se.
Relator
ROGERIO SCHIETTI CRUZ
👉👉👉👉 Meu Whatsaap de Jurisprudências, Formulação de HC eREsp - https://chat.whatsapp.com/FlHlXjhZPVP30cY0elYa10
👉👉👉👉GRUPO 02 Whatsaap de Jurisprudências Favoráveis do STJ e STF para A Advocacia Criminal
👉👉👉👉 ME SIGA INSTAGRAM @carlosguilhermepagiola.adv
Comentários
Postar um comentário