STJ Out24 - Reconhecimento Fotográfico Ilegal - Roubo - Absolvição e Nulidade das Provas :"Apresentada Uma Única Foto (do Réu) à Vítima"
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
Inteiro Teor
RECURSO ESPECIAL Nº 2020389 - PR (2022/0255457-4)
DECISÃO
LUCAS XXXXXXX interpõe recurso especial com base no art. 105, III, a e c, da CF, contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná na Apelação Criminal n. 0023802-52.019.8.16.0030.
Consta dos autos que o acusado foi condenado à pena de 9 anos, 2 meses e 12 dias de reclusão, em regime inicial fechado, mais multa, pela prática do crime previsto no art. 157, § 2º, II, e § 2º-A, I, do Código Penal, por três vezes, em concurso formal.
Nas razões recursais, foi apontada a violação do art. 226 do CPP. O recorrente acentua que (fls. 327-338):
3.a) - Do Cabimento do Recurso Especial com Fundamento na alínea a do inciso III do art. 105, da Constituição Federal:
O acórdão hostilizado viola diretamente o art. 226 do Código de Processo Penal, uma vez que tanto em fase de inquérito policial, como judicial fora realizado mediante fotografia, sendo ainda que judicialmente, fora realizado por videoconferência, conforme pode ser destacado tanto na sentença, como no Acórdão.
A leitura do acórdão, no tocante à fundamentação para rejeitar a postulada invalidade do reconhecimento, a inexistência do reconhecimento, revela que o Colegiado utilizou julgado do Superior Tribunal de Justiça já superado pela própria Corte Especial.
[...]
Ou seja, o reconhecimento tanto na delegacia, tanto em juízo foram realizadas mediante fotografia, e utilizadas de forma única não só para oferecer a denúncia, mas também para a condenação, mesmo sendo uma prova totalmente frágil, e contra o entendimento firmado pelo STJ.
[...]
Ora, não existiu reconhecimento tal qual exigência do art. 226 do Código de Processo Penal, aliás, não existiu qualquer tipo de reconhecimento.
Logo, o Acórdão contraria e nega vigência à Lei Federal, em especial ao já citado art. 226 do Código de Processo Penal, merecendo, por isso, reforma de modo a anular o acórdão e/ou absolver o recorrente.
[...]
3.b) - Do Cabimento do Recurso Especial com Fundamento na alínea c do inciso III do art. 105, da Constituição Federal:
Data vênia, o acórdão ora hostilizado dá interpretação totalmente diferente do entendimento uniforme da Corte Superior, conforme demonstração analítica do dissídio pretoriano, o que também vem justificar a admissão do presente recurso raro.
[...]
Entendeu o Tribunal de Justiça do Paraná, por meio do acórdão recorrido, que o reconhecimento realizado em sede policial não fora prova exclusiva para a condenação, sendo que também foram utilizadas provas sob o crivo do contraditório, destacando que o referido reconhecimento foi devidamente corroborado em fase judicial (em audiência por videoconferência), conforme a movimentação 140.4.
Sendo que a referida movimentação de trata do reconhecimento realizado mais uma vez mediante fotografia, retirada do Projudi, em "partes", como destaca a própria sentença.
[...]
Ainda, no tocante a ABSOLVIÇÃO, a fundamentação do Acórdão, mais uma vez destaca que a autoria delitiva, se faz presente, em razão de que "os ofendidos foram firmes e seguros ao identificar o apelante, POR FOTO, como um dos autores do roubo.
[...]
Ora a prova que corrobora a condenação do recorrente LUCAS DOS SANTOS, se trata exclusivamente de prova FRAGIL de reconhecimento POR FOTO, tanto em delegacia quanto em JUÍZO.
Ou seja, a prova de condenação é EXCLUSIVA EM RECONHECIMENTO DE PESSOA TOTALMENTE CONTRA O QUE PREVÊ O ARTIGO 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, bem como o entendimento já fixado pela Sesta Turma do Superior Tribunal de Justiça.
[...]
O Tribunal de Justiça do Paraná manteve a condenação por roubo, avalizando um reconhecimento nulo.
Já o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o reconhecimento é procedimento formal e deve ser realizado tal qual o art. 226 do Código e Processo Penal.
Repita-se o cotejo que se faça do venerando acórdão do Superior Tribunal de Justiça, paradigma, com o recorrido, avulta-se total dissonância.
É o caso típico de divergência de precedentes, na espécie, de desrespeito à decisão Superior, inclusive encampada por entendimento da Suprema Corte, incumbindo ao egrégio Superior Tribunal de Justiça analisar e decidir nesse tocante.
Desse modo, verifica-se que há total paradigma entre o acórdão recorrido e o outro, colacionado nas presentes razões.
Assim, restou claramente demonstrada a semelhança entre o acórdão recorrido e o acórdão paradigma devendo ser acolhido o presente Recurso Especial por ser medida de direito e justiça.
A defesa aduz, em síntese, que a condenação teve por base apenas a palavra de uma das vítimas e um reconhecimento de pessoa nulo, realizado em desacordo com o procedimento estabelecido pelo art. 226 do CPP, sem outras provas idôneas da autoria delitiva.
Apresentadas as contrarrazões (fls. 342-351), a Corte de origem admitiu o recurso especial (fls. 353-360).
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não conhecimento do recurso especial ou, se conhecido, pelo seu desprovimento (373-375).
Decido.
I. Admissibilidade O recurso especial, mas merece conhecimento apenas quanto à hipótese da alínea a do art. 105 da Constituição.
Deveras, conforme disposição dos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ, quando o recurso interposto estiver fundado em divergência pretoriana (alínea c do art. 105 da Constituição), deve a parte colacionar aos autos cópia dos acórdãos em que se fundamenta a divergência, bem como realizar o devido cotejo analítico, para demonstrar, de forma clara e objetiva, a suposta incompatibilidade de entendimentos e a similitude fática entre as demandas.
Entretanto, o recorrente, no especial, se limitou citar trechos de julgados, sem, no entanto, realizar o devido cotejo analítico; ou seja, não demonstrou, de forma clara e objetiva, a similitude fática entre as demandas, deixando de evidenciar, assim, que as peculiaridades de cada caso revelariam a identidade fática, porém com soluções distintas, em inobservância ao entendimento consolidado neste Superior Tribunal.
Ademais, é importante lembrar que" [n]ão se prestam à demonstração de dissídio jurisprudencial julgados paradigmas proferidos em habeas corpus, mandado de segurança e recurso ordinário "(AgRg no AREsp n. 1.400.990/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 16/8/2021).
II. Art. 226 do CPP - o reconhecimento de pessoas como meio probatório e o avanço da jurisprudência Diz o art. 226 do CPP, no que interessa (grifei):
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
[...]
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Esta Corte Superior entendia, até recentemente, que as prescrições contidas no referido dispositivo constituiriam"mera recomendação"e, como tal, o seu eventual descumprimento não ensejaria nulidade da prova.
Rompendo com essa posição jurisprudencial, a Sexta Turma deste Superior Tribunal, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC (Rel. Ministro Rogerio Schietti), realizado em 27/10/2020, conferiu nova interpretação ao art. 226 do CPP, a fim de superar o antigo entendimento e definir que o procedimento legal"não configura mera recomendação do legislador, mas rito de observância necessária, sob pena de invalidade do ato". Estabeleceu-se ali a necessidade de se determinar a invalidade de qualquer reconhecimento formal - pessoal ou fotográfico - que não siga estritamente o que determina o art. 226 do CPP, sob pena de continuar-se a potencializar o concreto risco de graves erros judiciários.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a temática também tem se repetido. Exemplificativamente, menciono o HC n. 172.606/SP (DJe 5/8/2019), de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, em que, monocraticamente, se absolveu o réu, em razão de a condenação haver sido lastreada apenas no reconhecimento fotográfico realizado na fase policial.
Ainda, há de se destacar que, em julgamento concluído no dia 23/2/2022, a Segunda Turma da Suprema Corte deu provimento ao RHC n. 206.846/SP (Rel. Ministro Gilmar Mendes), para absolver um indivíduo reconhecido por fotografia de maneira irregular. Na ocasião, o Ministro relator mencionou outros precedentes do STF em sentido similar e, reportando-se ao que o STJ decidiu no HC n. 598.886/SC, propôs a fixação de três teses, acolhidas à unanimidade pelo colegiado:
1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa.
2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas.
3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos.
Posteriormente, em sessão ocorrida no dia 15/3/2022, esta colenda Sexta Turma, por ocasião do julgamento do HC n. 712.781/RJ (Rel.
Ministro Rogerio Schietti), avançou em relação à compreensão anteriormente externada no HC n. 598.886/SC e decidiu, à unanimidade, que, mesmo se realizado em conformidade com o modelo legal (art. 226 do CPP), o reconhecimento pessoal, embora seja válido, não tem força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva, em razão de sua fragilidade epistêmica; se, porém, realizado em desacordo com o rito previsto no art. 226 do CPP, o ato é totalmente inválido e não pode ser usado nem mesmo de forma suplementar, nem para lastrear outras decisões, ainda que de menor rigor quanto ao standard probatório exigido, tais como a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia e a pronúncia.
Pontuou-se, ainda, no referido julgado, que o reconhecimento de pessoas é prova cognitivamente irrepetível, porque o ato inicial afeta todos os subsequentes e a sua repetição, mesmo que em conformidade com o art. 226 do CPP, não convalida os vícios pretéritos.
Mais recentemente, com o objetivo de minimizar erros judiciários decorrentes de reconhecimentos equivocados, a Resolução n. 484/2022 do CNJ incorporou os avanços científicos e jurisprudenciais sobre o tema e estabeleceu"diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário"(art. 1º).
Tecidas essas considerações, passo ao exame do caso concreto posto em julgamento.
III. O caso dos autos De acordo com a denúncia, os fatos transcorreram da seguinte forma (fls. 4-5):
No dia 23 de março de 2019, por volta das 19h23min, no Bar Alemanha, situado na Rua Alemanha, nº 1934, Jardim Europa, nesta Cidade e Comarca de Foz do Iguaçu/PR, o denunciado Lucas dos Santos e outro indivíduo não identificado, agindo mediante prévio conluio, com identidade de propósitos e comunhão de esforços, adentraram o referido estabelecimento comercial, cada um empunhando um revólver (não apreendidos), deram voz de assalto às vítimas que ali estavam, reduziram-nas à impossibilidade de resistência mediante a grave ameaça de utilização de seus armamentos e subtraíram, para si, quatro caixas de cerveja das marcas Skol e Brahma, doze unidades de refrigerante e R$ 140,00 em espécie do ofendido José Luis de Oliveira Piegati; R$ 300,00 em espécie e documentos (RG, CPF, CNH e cartão do Banco do Brasil) do ofendido Daniel Moreira Neres; uma máquina de cartão marca Cielo, um celular marca Cielo e R$ 280,00 em espécie do ofendido Valdecir Pimentel (conforme relação de objetos de fls. 25/26).
Na sentença, o Magistrado assim fundamentou a condenação do réu (fls. 172-175, grifei):
A autoria dos fatos também é certa e recai sobre o acusado.
[...]
A testemunha J. R. S., policial militar que participou da ocorrência, relatou que se recorda que o acusado foi abordado em posse de entorpecente e encaminhado para a realização de termo circunstanciado, sendo que no local o acusado foi reconhecido como autor de um roubo; que não se recorda as circunstâncias em que ocorreu o reconhecimento.
A vítima Daniel Moreira Neres relatou que [...] quando levaram o acusado para a Delegacia ligaram para a testemunha, ocasião em que foi até o local para fazer o reconhecimento; confirmou que não teve dúvidas que o acusado era um dos assaltantes; que não conhecia o acusado e a primeira vez que o viu foi na ocasião do assalto; que posteriormente não viu mais o acusado; ao ser mostrado para a testemunha uma fotografia do acusado, na aba" partes "do Projudi e qualificação de Lucas dos Santos, afirmou que tem certeza que o acusado é um dos assaltantes.
[...]
A vítima Valdecir Pimentel confirmou que [...] não conseguiu ver o rosto dos assaltantes, pois estava de costas para o lugar onde eles chegaram.
[...]
Da análise deste conjunto probatório construído infere-se que a autoria dos fatos recai sobre o acusado de forma clara e inconteste.
Saliento que deve ser atribuída especial importância à palavra da vítima em crimes contra o patrimônio, especialmente em delitos praticados na clandestinidade, sem testemunhas diretas.
Aliás, este tem sido o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
[...]
Destaca-se, ainda, o depoimento do policial militar que participou da ocorrência, o qual afirmou que a vítima reconheceu o acusado como um dos autores do delito. Este depoimento, tanto quanto o de qualquer outra testemunha idônea se revestem de inquestionável eficácia probatória, porquanto inexiste razão lógica para desqualificá-los, pois nada sugere seu interesse no deslinde da causa e mormente porque prestado sob compromisso.
[...]
Dessa forma, no caso em tela, o depoimento prestado pelo policial se mostrou seguro e coeso, de forma que encontra amparo no restante do conjunto probatório e que inexistem razões para que não se dê credibilidade à sua palavra de modo estreme de dúvidas, a autoria dos fatos narrados na denúncia.
No acórdão, por sua vez, a condenação foi mantida sob os seguintes argumentos (fls. 300-306, grifei):
Como visto, o apelante clama, preliminarmente, pela declaração de nulidade do ato de reconhecimento fotográfico realizado na fase inquisitiva, ao argumento de que desrespeitados os termos do artigo 226 do Código de Processo Penal.
Temo alertar, porém, que a tese não procede.
Com efeito, do exame ao processado denota-se que a vítima Daniel Moreira Neres, embora tenha comparecido junto à 6ª Subdivisão Policial de Foz do Iguaçu para realizar o reconhecimento pessoal do apelante, ausentou-se na oportunidade da formalização do procedimento, razão pela qual a autoridade policial tirou uma fotografia do acusado.
Na fase do contraditório, todavia, o ofendido Daniel Moreira Neres procedeu ao devido reconhecimento do apelante por fotografia, conforme se afere do mov. 140.4, como também ressaltou ter visto o acusado pessoalmente na Delegacia.
Portanto, é cediço que as provas colhidas em etapa inquisitorial necessitam ser ratificadas em Juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, não devendo, sozinhas, embasar o decreto condenatório.
Dessa forma, a diligência promovida na fase policial [mera fotografia do acusado], sem a observância estrita dos preceitos estatuídos no artigo 226 do Código de Processo Penal, per se, não configura nulidade capaz de macular o édito condenatório.
Tendo esta premissa em mente, importante ressaltar que, na hipótese dos autos, a avaliação acerca da autoria delitiva não se pautou exclusivamente no reconhecimento levado a efeito na etapa administrativa - até porque o artigo 155 do Código de Processo Penal veda expressamente tal providência -, mas, também, em razão das provas colhidas sob o crivo do contraditório.
In casu, o reconhecimento realizado na fase inquisitiva [ainda que não formalizado] foi devidamente corroborado na fase judicial [em audiência por vídeo conferência], conforme se dissertará no tópico relativo ao pleito absolutório.
[...]
Nota-se, pois, que os ofendidos foram firmes e seguros ao identificar o apelante, por foto, como um dos autores do roubo.
Referiu o vitimado Daniel, proprietário do estabelecimento comercial, que o acusado fora preso e foi até a delegacia proceder ao reconhecimento do mesmo, não tendo dúvidas de que o apelante era um dos assaltantes.
Observe-se que os depoimentos das vítimas foram coerentes e sem inconsistências, uma vez que, além de o ofendido Daniel ter reconhecido LUCAS, contaram os detalhes dos fatos.
[...]
Dessa forma, inexistem dúvidas acerca da participação do Sr. na LUCAS DOS SANTOS na empreitada criminosa, de modo que o princípio in dubio pro reo não possui aplicabilidade na hipótese.
Destarte, a intenção absolutória é de todo descabida, razão pela qual hei por bem rejeitá-la.
Depreende-se dos autos a seguinte dinâmica fática. Em 23/3/2019, por volta das 19h23min, dois indivíduos adentraram no Bar Alemanha e, munidos cada qual com uma arma de fogo, anunciaram o roubo. Depois da fuga dos autores, a polícia militar foi acionada e, no momento da chegada dos militares, estavam presentes no estabelecimento somente três das vítimas: Daniel Neres, Valdecir Pimentel e José Piegati, os quais foram orientados a realizar o registro de ocorrência policial - o que foi feito na manhã seguinte.
No dia 26/3/2019, a vítima Daniel tomou conhecimento de que um suspeito havia sido detido pela prática de outro delito, razão pela qual se dirigiu à delegacia de polícia, onde reconheceu, de modo informal, o recorrente. Antes que houvesse a lavratura do auto de reconhecimento de pessoa, Daniel deixou o local; então, a autoridade policial fotografou o acusado e juntou as imagens ao inquérito policial.
Na fase judicial, foi decretada a revelia do acusado e Daniel o reconheceu novamente, por meio de uma fotografia exibida a partir do sistema Projudi, durante audiência realizada por videoconferência;
a vítima Valdecir declarou que não viu o rosto dos autores, pois foi abordado pelas costas, e a terceira vítima - José Piegati - foi dispensada.
Assim, constato que a condenação do réu foi embasada apenas em reconhecimento de pessoa informal, consistente na exibição da pessoa do acusado - apenas - a uma das vítimas, a qual deixou a unidade policial antes que fosse realizada a formalização do ato.
Ademais, não obstante o ato de reconhecimento irregular haja sido repetido em juízo (também de forma irregular, com exibição somente da fotografia do réu, sem comparação com outras semelhantes), a repetição do ato não convalida os vícios pretéritos. Isso porque não há dúvidas de que o reconhecimento inicial, que foi realizado em desconformidade com o disposto no art. 226 do CPP, afeta todos os subsequentes, haja vista que, conforme se assentou no julgamento do HC n. 712.781/RJ, o reconhecimento de pessoas é considerado como uma prova cognitivamente irrepetível.
O primeiro julgado paradigma sobre o tema (HC n. 598.886/SC) - como, também, os a ele posteriores - amparou-se, entre outros, em interessante conclusão de pesquisa realizada nos Estados Unidos, conduzida pelo professor Brandon Garrett, a qual apontou que a repetição de procedimentos de identificação não confere maior grau de confiabilidade a um reconhecimento. Evidenciou-se, no entanto, uma correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva.
Em amostra com 161 condenações de inocentes revertidas após a realização de exame de DNA, 57% dos casos contaram com mais de um procedimento de identificação: a testemunha admitiu em juízo que, inicialmente, não tinha certeza quanto à autoria do delito e que passou a reconhecer o acusado somente depois do primeiro reconhecimento (Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).
Daí a razão pela qual as psicólogas Nancy K. Steblay e Jennifer E.
Dysart recomendam não só que sejam evitados procedimentos de identificação que usam um mesmo suspeito como também que identificações produzidas por procedimentos repetidos não sejam consideradas tão confiáveis, justamente porque quanto mais vezes uma testemunha for solicitada a reconhecer uma mesma pessoa, mais provável ela desenvolver falsa memória a seu respeito (STEBLAY, Nancy K.; DYSART, Jennier. E. Repeated eyewitness identification procedures with the same suspect. Journal of Applied Research in Memory and Cognition apud Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p.
13).
Não por outro motivo, Gustavo A. Arocena, ao se referir à doutrina jurídica argentina, afirma ser unânime naquele país o entendimento de que o reconhecimento pessoal é um ato definitivo e irreprodutível, porque não se pode repeti-lo em idênticas condições (El reconocimiento por fotografia, las atribuciones de la Policía Judicial y los actos definitivos e irreproductibles. In: Temas de derecho procesal penal (contemporâneos). Córdoba: Editorial Mediterránea, 2004, p. 97).
No mesmo sentido, alerta o Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD que:
[...] um reconhecimento futuro, mesmo que utilizando um alinhamento justo, já estará contaminado devido aos reconhecimentos informais realizados previamente. Nesse sentido, o reconhecimento realizado por meio de show-up ou álbum de fotos não deve ser aceito como elemento informativo, mesmo quando a testemunha é solicitada posteriormente a realizar um reconhecimento por meio de alinhamento (Prova sob suspeita. Linhas defensivas sobre o reconhecimento de pessoas e a prova testemunhal. Disponível em: https://iddd.org.
br/linhas-defensivas-sobreoreconhecimento-de-pessoasea-prova-tes temunhal/. Acesso em fev. 2022, p. 37).
É de se obtemperar que não há razão que justifique correr-se o risco de consolidar, na espécie, possível erro judiciário, mercê da notória fragilidade do conjunto probatório. Não é despiciendo lembrar que, em um modelo processual onde sobrelevam princípios e garantias voltados à proteção do indivíduo contra eventuais abusos estatais que interfiram em sua liberdade, dúvidas relevantes hão de merecer solução favorável ao réu (favor rei). Afinal," A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune "(FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 85).
Um dos grandes perigos dos modelos substancialistas de direito penal - alerta o jusfilósofo peninsular - é o de que, em nome de uma fundamentação metajurídica (predominantemente de cunho moral ou social), se permita incontrolado subjetivismo judicial na determinação em concreto do desvio punível. Daí por que a verdade a que aspira esse modelo é a chamada" verdade substancial ou material ", ou seja, uma verdade absoluta, carente de limites, não sujeita a regras procedimentais e infensa a ponderações axiológicas, o que, portanto, degenera em julgamentos privados de legitimidade, ante a ausência de apoio ético no modo de ser do processo.
De lado oposto, sob a égide de um processo penal de cariz garantista - o que nada mais significa do que concebê-lo como atividade estatal sujeita a permanente avaliação de conformidade com a Constituição da Republica ("O direito processual penal não é outra coisa senão Direito constitucional aplicado", dizia-o W. Hassemer) -, busca-se uma verdade processual em que a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo se vincula a regras precisas, que assegurem às partes maior controle sobre a atividade jurisdicional.
Registro, ainda, que a única prova existente em desfavor do réu foi o reconhecimento, pois os depoimentos prestados por Valdecir Pimentel e pelo policial militar J.R.S., consistem apenas em narrar a ocorrência do roubo, sem acrescentar qualquer elemento que permita identificar os autores.
Assim, não é possível ratificar a condenação do acusado, visto que apoiada apenas em prova desconforme ao modelo legal.
IV. Dispositivo À vista do exposto, conheço parcialmente do recurso e, nessa extensão, dou-lhe provimento para, constatada a violação do art. 226 do CPP, declarar a nulidade do reconhecimento fotográfico e absolver o recorrente da condenação a ele imposta no Processo n. 0023802-52.2019.8.16.0030.
Comunique-se, com urgência, o inteiro teor desta decisão às instâncias ordinárias para as providências cabíveis.
Publique-se e intimem-se.
Brasília (DF), 30 de setembro de 2024.
Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ
Relator
(STJ - REsp: 2020389, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 01/10/2024)
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