STJ Fev25 - Desclassificação de Roubo para Exercício Arbitrário das Próprias Razões
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
DECISÃO Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de IGOR XXXXx e ROSILDOXXXXXXXX apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação Criminal n. 1502311-07.2018.8.26.0244).
Consta dos autos que os pacientes foram condenados como incursos no art. 157, § 2º, inciso II, do Código Penal, à pena de 6 anos e 2 meses de reclusão, em regime semiaberto.
Irresignada, a defesa interpôs recurso de apelação, ao qual se deu parcial provimento para corrigir erro material na pena, que passou para 5 anos e 4 meses de reclusão, mantidos os demais termos da condenação.
No presente mandamus, a defesa aduz, em síntese, que os fatos se referem a um desacordo comercial, não havendo se falar, portanto, em crime, quando muito, em exercício arbitrário das próprias razões.
No mais, afirma que houve arquivamento implícito e que não se observou o art. 28 do Código de Processo Penal. Pugna, liminarmente e no mérito, pela nulidade do processo ou pela absolvição dos pacientes e, subsidiariamente, pela desclassificação para exercício arbitrário das próprias razões
. É o relatório. Decido.
Em razão da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de não ser admissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de não se desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, preservando, assim, sua utilidade e eficácia, e garantindo a celeridade que o seu julgamento requer.
Referido entendimento foi ratificado pela Terceira Seção, em 10/6/2020, no julgamento da Questão de Ordem no Habeas Corpus n. 535.063/SP. Nessa linha de intelecção, como forma de racionalizar o emprego do writ e prestigiar o sistema recursal, não se admite a sua impetração em substituição ao recurso próprio.
Todavia, em homenagem ao princípio da ampla defesa, tem se admitido o exame da insurgência, para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal passível de ser sanado pela concessão da ordem, de ofício.
As disposições previstas no art. 64, inciso III, e no art. 202, ambos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, bem como no art. 1º do Decreto-Lei n. 552/1969, não impedem o relator de decidir liminarmente o mérito do habeas corpus e do recurso em habeas corpus, nas hipóteses em que a pretensão se conformar com súmula ou com jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores ou a contrariar.
De fato, a ciência posterior do Parquet, "longe de suplantar sua prerrogativa institucional, homenageia o princípio da celeridade processual e inviabiliza a tramitação de ações cujo desfecho, em princípio, já é conhecido" (EDcl no AgRg no HC n. 324.401/SP, Relator Ministro GURGEL DE FARIA, Quinta Turma, julgado em 2/2/2016, DJe 23/2/2016).
Relevante consignar que o julgamento do writ liminarmente "apenas consagra a exigência de racionalização do processo decisório e de efetivação do próprio princípio constitucional da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, o qual foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela EC n.45/2004 com status de princípio fundamental" (AgRg no HC 268.099/SP, Relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 2/5/2013, DJe 13/5/2013).
Assim, "para conferir maior celeridade aos habeas corpus e garantir a efetividade das decisões judiciais que versam sobre o direito de locomoção, bem como por se tratar de medida necessária para assegurar a viabilidade dos trabalhos das Turmas que compõem a Terceira Seção, a jurisprudência desta Corte admite o julgamento monocrático do writ antes da ouvida do Parquet em casos de jurisprudência pacífica" (AgRg no HC n. 514.048/RS, Relator Ministro RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 6/8/2019, DJe 13/8/2019).
Preliminarmente, verifico que a alegação de ofensa ao art. 28 do Código de Processo Penal, ao argumento de que teria havido arquivamento implícito, não foi previamente submetida ao crivo do Tribunal de origem.
Portanto, não houve manifestação da Corte local sobre o tema, motivo pelo qual não é possível conhecer do writ, sob pena de indevida supressão de instância. Com efeito, "é vedada a apreciação per saltum da pretensão defensiva, sob pena de supressão de instância, uma vez que compete ao Superior Tribunal de Justiça, na via processual do habeas corpus, apreciar ato de um dos Tribunais Regionais Federais ou dos Tribunais de Justiça estaduais (art. 105, inciso II, alínea a, da Constituição da República)" (EDcl no HC 609.741/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/9/2020, DJe 29/9/2020).
No mesmo sentido:
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. NULIDADES. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO PARA O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. PROLAÇÃO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE PREJUDICA A APRECIAÇÃO DO TEMA. AUSÊNCIA DE APRECIAÇÃO DAS TESES DEFENSIVAS PELA SENTENÇA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. EXCESSO DE PRAZO PARA O TÉRMINO DA INSTRUÇÃO . ENUNCIADO N. 52, DA SÚMULA DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. As alegadas nulidades decorrentes da sentença condenatória não foram examinadas pelo Tribunal de origem, de modo que inviável a análise inaugural por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância. Outrossim, prolatada a sentença condenatória, fica obstada a análise de eventuais nulidades decorrentes do recebimento da denúncia. 2. No que se refere ao alegado excesso de prazo para o encerramento da instrução, incide o Enunciado n. 52, da Súmula do STJ, que afirma que "Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo". Nesse contexto, prolatada a sentença condenatória, inviável o reconhecimento do excesso de prazo. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 837.966/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 23/10/2023, DJe de 27/10/2023.)
Quanto à alegação de que a conduta praticada pelos pacientes se tratou de mero desacordo comercial, revelando, quando muito, o crime de exercício arbitrário das próprias razões, verifico que consta expressamente da sentença que "os acusados admitiram, em solo judicial, que, de fato, se deslocaram da cidade de Sete Barras até o município de Iguape com o intuito de obter a moto da vítima como garantia pelo pagamento de serviços de pintura, ainda que neguem ter realizado qualquer ameaça ou mesmo utilizado qualquer arma de fogo" (e-STJ fl. 62).
Ademais, consta do acórdão impugnado que a própria vítima afirmou que os pacientes falaram que "iriam levar a moto do declarante, como garantia que o declarante retornasse para terminar o serviço" (e-STJ fl. 76). Registrou que "pegaram sua moto a força, sem documento, sem recibo e sem nada e a levaram; que falaram que somente iriam devolver quando terminasse o serviço" (e-STJ fl. 76-77).
Destacou, por fim, que demorou para registrar um boletim de ocorrência porque "pensou em resolver a situação depois com diálogo" (e-STJ fl. 77).
A Corte local, no entanto, considerou ser "certo que as provas aqui reunidas dão sustento à condenação, pois se revelam firmes, seguras e coerentes. Outrossim, também não se questiona a ocorrência de grave ameaça, decorrente da própria exigência da entrega dos pertences da vítima, que foi realizada mediante simulação de porte de arma de fogo, e da pressão exercida pelos Réus sobre a vítima. E frisa-se, por estas mesmas razões, presentes todos os elementos que compõe o tipo penal do crime de roubo, inviável a pretendida desclassificação para o crime de exercício arbitrário das próprias razões" (e-STJ fls. 78-79).
Concluiu, assim, que (e-STJ fl. 79):
Sobejamente demonstrados pela prova oral colhida até mesmo o emprego de grave ameaça e o concurso de agentes, ainda que não comprovado o uso de arma de fogo, não havendo falar-se, portanto, quer em absolvição, quer em desclassificação da conduta, nos termos pretendidos pela d. defesa.
Pela leitura atenta dos excertos acima transcritos, constata-se que os pacientes não possuíam o dolo de subtração de "coisa móvel alheia, para si ou para outrem", mas sim de "fazer justiça pelas próprias mãos". Ou seja, nas palavras da doutrina, pretendia-se "obter, pelo próprio esforço, algo que considere justo ou correto" (Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 1.451).
Dessa forma, constando dos autos que os pacientes levaram a moto da vítima como o objetivo de que esta fosse considerada uma garantia pelo término dos serviços de pintura, não se configura o elemento subjetivo do crime de roubo, mas sim o do crime de exercício arbitrário das próprias razões.
Nesse sentido:
HABEAS CORPUS. ROUBO IMPRÓPRIO. NULIDADE DA SENTENÇA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NULIDADE DO ACÓRDÃO. NÃO OCORRÊNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. PRETENSÃO LEGÍTIMA E PASSÍVEL DE DISCUSSÃO JUDICIAL. REGRA. MORAL E DIREITO. SEPARAÇÃO. MUTAÇÃO DOS COSTUMES. SERVIÇO DE NATUREZA SEXUAL EM TROCA DE REMUNERAÇÃO. ACORDO VERBAL. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO. USO DA FORÇA COM O FIM DE SATISFAZER PRETENSÃO LEGÍTIMA. CARACTERIZAÇÃO DO DELITO PREVISTO NO ART. 345 DO CÓDIGO PENAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. A matéria atinente à nulidade da sentença não foi submetida à análise pelo colegiado do Tribunal estadual, circunstância que impede seu conhecimento por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância. 2. Não mais se sustenta, à luz de uma visão secular do Direito Penal, o entendimento do Tribunal de origem, de que a natureza do serviço de natureza sexual não permite caracterizar o exercício arbitrário das próprias razões, ao argumento de que o compromisso assumido pela vítima com a ré - de remunerar-lhe por serviço de natureza sexual - não seria passível de cobrança judicial. 3. A figura típica em apreço relaciona-se com uma atividade que padece de inegável componente moral relacionado aos "bons costumes", o que já reclama uma releitura do tema, mercê da mutação desses costumes na sociedade hodierna e da necessária separação entre a Moral e o Direito. 4. Não se pode negar proteção jurídica àquelas (e àqueles) que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e desde que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes e não implique violência (não consentida) ou grave ameaça. 5. Acertada a solução dada pelo Juiz sentenciante, ao afastar o crime de roubo - cujo elemento subjetivo não se compatibiliza com a situação versada nos autos - e entender presente o crime de exercício arbitrário das próprias razões, ante o descumprimento do acordo verbal de pagamento, pelo cliente, dos préstimos sexuais da paciente. 6. O restabelecimento da sentença, mercê do afastamento da reforma promovida pelo acórdão impugnado, importa em reconhecer-se a prescrição da pretensão punitiva, dado o lapso temporal já transcorrido, em face da pena fixada. 7. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para restabelecer a sentença de primeiro grau, que desclassificou a conduta imputada à paciente para o art. 345 do Código Penal e, por conseguinte, declarar extinta a punibilidade do crime em questão. (HC n. 211.888/TO, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 17/5/2016, DJe de 7/6/2016.) RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO EMPREGO DE ARMA E CONCURSO DE AGENTES. EQUÍVOCO NA CAPITULAÇÃO. EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. CRIME DE AÇÃO PENAL PRIVADA. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA PELO OFENDIDO. RECURSO PROVIDO. 1. Tendo o Ministério Público narrado em sua peça de acusação que os recorrentes agiram com o especial fim de serem ressarcidos de suposto prejuízo que entendiam ter sofrido, caracteriza-se o tipo penal previsto no artigo 345 do Código Penal. 2. O crime de exercício arbitrário das próprias razões praticado sem violência somente se procede mediante queixa. 3. O não-exercício do direito de queixa no prazo de seis meses, a contar do conhecimento da autoria pelo ofendido, enseja a extinção da punibilidade. 4. Recurso provido para atribuir nova classificação à conduta dos recorrentes para o crime de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 345 do Código Penal, anulando-se a Ação Penal n.º 0118935-81.2011.8.20.0001, Juízo da 6.ª Vara Criminal da Comarca de Natal/RN, em razão da ilegitimidade ativa do Ministério Público e declarar a extinção da punibilidade dos recorrentes pela decadência do direito de exercício da ação penal privada pelo ofendido, nos termos dos artigos 103 e 107, inciso IV, do Código Penal. (RHC n. 33.166/RN, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 28/8/2012, DJe de 5/9/2012.)
Por fim, verifico que entre a data do recebimento da denúncia, em 30/3/2020, e a data da publicação da sentença condenatória, em 23/8/2023, transcorreu prazo superior a 3 anos, lapso necessário para se reconhecer a prescrição da pretensão punitiva estatal, pela pena em abstrato. Pelo exposto, não conheço do habeas corpus. Porém, concedo a ordem de ofício para desclassificar a conduta dos pacientes para o crime do art. 345 do Código Penal, reconhecendo a prescrição da pretensão punitiva estatal. Publique-se.
Relator
REYNALDO SOARES DA FONSECA
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