STJ Fev25 - Dosimetria Irregular - Estupro - Vetorial da Consequência Afastado :"Abalo Psicológico é Inerente ao Tipo Penal"
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola
DECISÃO Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de E. A. dos S. apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação Criminal n. 1500521-15.2022.8.26.0125). Consta dos autos que o paciente foi condenado como incurso nos arts. 215-A e 217-A, caput, c/c o art. 226, inciso II, todos do Código Penal, em continuidade delitiva, à pena de 30 anos e 2 meses de reclusão, em regime fechado.
Irresignada, a defesa interpôs recurso de apelação, ao qual se deu parcial provimento, para reduzir a pena para 28 anos, 2 meses e 20 dias de reclusão, nos termos da seguinte ementa (fls. 122):
APELAÇÃO CRIMINAL. Estupro de vulnerável e importunação sexual (artigos 217-A, caput, e 215-A do Código Penal). Preliminar. Aditamento da inicial (mutatio libelli) realizado pelo Ministério Público durante a audiência de instrução. Cerceamento de defesa. Inocorrência. Possibilidade do exercício do contraditório e da ampla defesa. Providência que não resultou na inclusão de fatos novos. Precedentes do C. STJ. Rejeição. Mérito. Materialidade e autoria comprovadas. Prova segura. Declarações das vítimas corroboradas pelos depoimentos das testemunhas, tudo em harmonia com o conjunto probatório. Negativa do réu isolada. Crimes do art. 217-A do CP praticados por padrasto e tio (art. 226, II, do CP). Inviável o reconhecimento da tentativa da importunação sexual. Continuidade delitiva específica entre os crimes de estupro de vulnerável. Reconhecimento do crime continuado entre aqueles e a importunação sexual. Descabimento. Condutas praticadas em locais e contextos distintos, com desígnios autônomos. Condenação mantida. Pena e cumprimento. Base no piso para a importunação sexual. Estabelecida ¼ (um quarto) acima do mínimo para o estupro de vulnerável, valoradas negativamente as circunstâncias judiciais da culpabilidade e das consequências do crime. Dolo normal à espécie. Mantida apenas a majoração decorrente das consequências do crime, em 1/6 (um sexto). Agravante do art. 61, II, “f”, do CP para o crime do art. 217-A do CP (1/6 um sexto). Incidência da causa de aumento do artigo 226, II, do Código Penal (1/2 metade) para o estupro de vulnerável. Continuidade delitiva específica quanto aos crimes do art. 217-A do CP (2/3 dois terços). Sete delitos. Inteligência do disposto na Súmula nº 659 e Tema nº 1202 do C. STJ. Concurso material de infrações. Regime inicial fechado. Inviável a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (CP, artigo 44, I). Penas diminuídas. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
No presente mandamus, a defesa aduz, em síntese, que a condenação se baseou em provas frágeis e insuficientes, devendo, portanto, o paciente ser absolvido ou ter sua conduta desclassificada.
Considera, ainda, que a sentença é nula, por não ter analisado os elementos concretos dos autos. Subsidiariamente, pede a revisão das penas, em atenção ao princípio da proporcionalidade. Pugna, liminarmente, pela possibilidade de aguardar o julgamento em liberdade. No mérito, pugna pela absolvição do paciente ou pela nulidade da sentença e, subsidiariamente, pelo redimensionamento da pena. A
liminar foi indeferida às e-STJ fls. 156-157, as informações foram prestadas às e-STJ fls. 163-166 e 167-231, e o Ministério Público Federal se manifestou, às e-STJ fls. 251-254, nos seguintes termos:
PENA. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL E IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. CONDENAÇÃO. ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS OU DESCLASSIFICAÇÃO. NECESSÁRIO REEXAME DE PROVA. IMPOSSIBILIDADE. PRISÃO PREVENTIVA BEM FUNDAMENTADA. REVISÃO DA PENA IMPOSTA. PARECER PELA CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM.
Por fim, a defesa requereu, às e-STJ fls. 233-247, a reconsideração da decisão que indeferiu o pedido liminar.
É o relatório. Decido.
Em razão da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de não ser admissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de não se desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, preservando, assim, sua utilidade e eficácia, e garantindo a celeridade que o seu julgamento requer. Referido entendimento foi ratificado pela Terceira Seção, em 10/6/2020, no julgamento da Questão de Ordem no Habeas Corpus n. 535.063/SP.
Nessa linha de intelecção, como forma de racionalizar o emprego do writ e prestigiar o sistema recursal, não se admite a sua impetração em substituição ao recurso próprio.
Todavia, em homenagem ao princípio da ampla defesa, tem se admitido o exame da insurgência, para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal passível de ser sanado pela concessão da ordem, de ofício. Conforme relatado, a defesa se insurge, em um primeiro momento, contra a condenação do paciente.
Contudo, a Corte local confirmou a sentença condenatória, destacando estarem "comprovadas a materialidade delitiva e a autoria" (e-STJ fl. 127). Registrou, no mais, que (e-STJ fl. 133 e 135):
Saliente-se, ainda, que os atos libidinosos praticados perpetrados contra L. A. C.(1), L. A. C.(2) e H. A. M. não são daqueles que deixam vestígios (tocar no corpo das vítimas e passar o pênis na vagina) e a sua comprovação independe de perícia7. E tal demonstração como ocorreu, quantum satis, no caso concreto, a teor da prova oral é suficiente para a configuração do delito do artigo 217-A do CP, consoante o entendimento pacificado no Tema nº 918 do C. STJ. [...]. Portanto, a prova colhida é suficiente e segura para demonstrar a responsabilidade penal de E. A. S. pelos crimes dos artigos 217-A, caput, c. c. 71; e 215-A do Código Penal.”.
Como visto, as instâncias ordinárias, com base no acervo probatório, firmaram compreensão no sentido da efetiva prática dos crimes sexuais pelo paciente. Nesse contexto, não se mostra possível o revolvimento dos fatos e das provas, haja vista o habeas corpus não ser meio processual adequado para analisar a tese de insuficiência probatória para a condenação, uma vez que se trata de ação constitucional de rito célere e de cognição sumária. Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO. REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DO PEDIDO NA VIA ELEITA. DOSIMETRIA. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CULPABILIDADE. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. As questões em torno do pedido de absolvição não podem ser examinadas pelo Superior Tribunal de Justiça na presente via, por pressupor revolvimento de fatos e provas, providência essa vedada no âmbito do writ e do recurso ordinário que lhe faz as vezes. 2. Quanto à dosimetria, a exasperação da pena-base está devidamente justificada, pois, na análise da culpabilidade do paciente, foram indicados dados concretos da conduta que evidenciam uma maior reprovabilidade, consubstanciada pela convivência familiar com a vítima. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 870.512/RS, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 23/10/2024, DJe de 28/10/2024.)
Quanto ao pedido de redimensionamento da pena, é de conhecimento que a dosimetria está inserida no âmbito de discricionariedade do julgador, atrelada às particularidades fáticas do caso concreto e subjetivas dos agentes, elementos que somente podem ser revistos por esta Corte em situações excepcionais, quando malferida alguma regra de direito.
Na hipótese, a pena do paciente foi redimensionada pela Corte local, nos seguintes termos (e-STJ fl. 136):
Muito embora a exasperação relativa à culpabilidade não se justifique, deve ser mantida a majoração concernente às consequências do delito. Afinal, H. A. M. relatou ter sofrido graves sequelas do evento, apresentando episódios de choro, dificuldade para dormir e se alimentando excesso, com o consequente ganho indesejado de peso. Não se cuidou, como bem fundamentou a sentença, de simples abalo psicológico. Evidentemente, o fato resultou a ela excessivo sofrimento emocional, circunstância que deve ser valorada negativamente, na primeira fase da dosimetria da pena. Não há falar-se aqui em resultado próprio do tipo penal ou mero abalo emocional (HC 529.593/GO, Rel. Ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, j. em 16/06/2020, D Je 29/06/2020). Ao revés, vislumbra-se perfeitamente o que a doutrina denomina de “consequências extrapenais” (in Manual de Sentença Criminal, Euler Jansen, 2ª ed., Rio de Janeiro, 2009, p. 96). Como salienta o Desembargador Guilherme de Souza Nucci “o mal causado pelo crime, que transcende o resultado típico, é a consequência a ser considerada para a fixação da pena. É lógico que num homicídio, por exemplo, a consequência natural é a morte de alguém e, em decorrência disso, uma pessoa pode ficar viúva ou órfã. Diferentemente, um indivíduo que assassina a esposa na frente dos filhos menores, causando-lhes um trauma sem precedentes, precisa ser mais severamente apenado, pois trata-se de uma consequência não natural do delito." (Individualização da pena, 7ª ed. , Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 189). Logo, a reprimenda do crime do artigo 217-A do Código Penal deve ser fixada em 9 (nove) anos e 4 (quatro) meses de reclusão. Na segunda fase, sem alterações para a importunação. Por sua vez, a sanção do estupro de vulnerável foi elevada em 1/6 (um sexto) por força da agravante do artigo 61, II, “f”, do Código Penal (prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade), isto é, no recálculo, 10 (dez) anos, 10 (dez) meses e 20 (vinte) dias de reclusão. Na derradeira etapa, inalterada a pena da importunação. A pena do estupro de vulnerável, por sua vez, sofreu acréscimo da metade, ante à causa especial de aumento de pena do artigo 226, inciso II, do Código Penal pois o apelante era padrasto e tio das vítimas. Torna-se, assim, em 16 (dezesseis) anos e 4 (quatro) meses de reclusão. Na sequência, reconhecida a continuidade delitiva entre todos os crimes de estupro de vulnerável (cinco condutas contra H. A. M., e uma conduta em desfavor de L. A. C.(01) e L. A. C.(02), respectivamente, totalizando sete condutas), a sanção foi exasperada na fração máxima de 2/3 (dois terços), observada a Súmula nº 65913 e Tema nº 120214 do C. STJ, resultando em 27 (vinte e sete) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão. Assim, à míngua de outras modificadoras, aplicado o cúmulo material (CP, art. 69) entre o estupro de vulnerável e a importunação sexual, a pena resulta definitiva em 28 (vinte e oito) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão.
Conforme destacado pelo Ministério Público Federal, ao mencionar o voto vencido, "as consequências do delito e a culpabilidade são inerentes ao próprio tipo, não devendo ocorrer majoração por tais circunstâncias" (e-STJ fl. 253).
De fato, "O abalo psicológico apto a valorar negativamente as circunstâncias do crime é aquele que desborda da "normalidade da conduta típica" e deve ser demonstrada a sua ocorrência para a majoração da pena-base, o que não ocorreu na hipótese". (AgRg no HC n. 699.030/PB, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 15/8/2022.)
No mesmo sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DO FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA. DESATENÇÃO AO ÔNUS DA DIALETICIDADE. NÃO CONHECIMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL. DOSIMETRIA. CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PENA-BASE. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. MENÇÃO GENÉRICA AO ABALO PSICOLÓGICO EXPERIMENTADO PELA VÍTIMA. FUNDAMENTO INIDÔNEO. ILEGALIDADE. REDUÇÃO, DE OFÍCIO, DA PENA. I - Não pode ser conhecido o agravo regimental que não infirma os fundamentos da decisão monocrática agravada. Assim, deve ser aplicado ao caso, por analogia, o enunciado da Súmula n. 182 desta Corte Superior de Justiça. II - Entretanto, considerando as particularidades da dosimetria da pena do agravante, constato flagrante ilegalidade com relação aos argumentos utilizados pelo acórdão recorrido para exasperar a pena-base, nos termos que se seguem. III - Esta Corte entende que a referência inespecífica à ocorrência de trauma psicológico não é razão bastante para a valoração negativa das consequências do crime de estupro, uma vez que algum abalo psicológico é elemento ínsito ao tipo penal em comento. A avaliação negativa do resultado da ação do agente, portanto, somente se mostra escorreita se o dano material ou moral causado ao bem jurídico tutelado se revelar superior ao inerente ao tipo penal. Precedente. IV - No caso, o acórdão recorrido aferiu desfavoravelmente o vetor consequências do crime com base na menção genérica ao dano psicológico que será experimentado pelas vítimas ao longo da vida, sem indicar, de forma concreta, fatos específicos extraídos do contexto delitivo que corroborassem efetivamente a conclusão de que a lesão jurídica experimentada pelas vítimas extrapolou os elementos inerentes ao tipo penal. Agravo regimental não conhecido. Ordem concedida, de ofício, com fulcro no art. 647-A, caput e parágrafo único, do CPP, a fim de redimensionar a reprimenda total do agravante para 18 (dezoito) anos e 8 (oito) meses de reclusão, em regime inicial fechado, nos termos da fundamentação acima delineada. (AgRg no AREsp n. 2.453.260/SP, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 20/8/2024, DJe de 27/8/2024.)
Nessa linha de intelecção, redimensiono a pena-base do crime de estupro de vulnerável para 8 anos de reclusão. Fica mantida a agravante genérica do art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal, motivo pelo qual elevo a pena em 1/6, resultando a pena intermediária em 9 anos e 4 meses de reclusão.
Fica igualmente mantida a causa de aumento do art. 226, inciso II, do mesmo Diploma, totalizando uma pena de 14 anos de reclusão. Mantida a continuidade delitiva entre 7 condutas, exaspera-se a pena em 2/3, o que resulta uma pena final de 23 anos e 4 meses de reclusão pelos crimes de estupro de vulnerável.
Destaque-se, no ponto, que, nos termos do Tema Repetitivo n. 1215, "Nos crimes contra a dignidade sexual, não configura bis in idem a aplicação simultânea da agravante genérica do art. 61, II, "f", e da majorante específica do art. 226, II, ambos do Código Penal, salvo quando presente apenas a relação de autoridade do agente sobre a vítima, hipótese na qual deve ser aplicada tão somente a causa de aumento". (REsp n. 2.038.833/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 13/11/2024, DJe de 18/11/2024.)
De igual sorte, conforme Tema Repetitivo n. 1202, no qual se fixou que "No crime de estupro de vulnerável, é possível a aplicação da fração máxima de majoração prevista no art. 71, caput, do Código Penal, ainda que não haja a delimitação precisa do número de atos sexuais praticados, desde que o longo período de tempo e a recorrência das condutas permita concluir que houve 7 (sete) ou mais repetições". (REsp n. 2.029.482/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023.)
Por fim, mantida a pena de 1 ano pelo crime de importunação sexual, fica a pena total do paciente definitivamente redimensionada para 24 anos e 4 meses de reclusão, mantidos os demais termos da condenação. Pelo exposto, não conheço do mandamus. Concedo a ordem de ofício para redimensionar a pena do paciente para 24 anos e 4 meses de reclusão. Fica prejudicado o pedido de reconsideração da decisão liminar. Publique-se.
Relator
REYNALDO SOARES DA FONSECA
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