STJ Fev25 - Dosimetria Irregular - Estupro por omissão imprópria (art. 13, § 2º do CP) Bis In Idem da Modalidade com a Causa de Aumento de Pena do Parentesco do art. 226, II do CP

  Publicado por Carlos Guilherme Pagiola

DECISÃO Trata-se de habeas corpus sem pedido de liminar impetrado em favor de D. A. F. em que se aponta como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. Consta dos autos que a paciente foi condenada à pena de 23 anos e 4 meses de reclusão em regime inicial fechado, como incursa no art. 217-A, c/c o art. 226, II, na forma do art. 71, caput, por omissão imprópria, conforme art. 13, § 2º, a, todos do Código Penal.

A Defesa sustenta que a decisão colegiada é manifestamente ilegal, alegando que a paciente relatou ter visto o corréu com o pênis para fora ao lado de sua filha, o que seria suficiente para o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea. Alega ainda que a incidência da agravante, prevista no art. 61, II, f, do Código Penal, caracteriza bis in idem, pois a coabitação decorre unicamente da condição de genitora e garantidora da vítima.

A defesa também argumenta que a majorante do parentesco, prevista no art. 226, II, do Código Penal, não pode ser aplicada, sob pena de bis in idem. Por fim, sustenta que a aplicação do crime continuado no patamar máximo é ilegal, pois a embargante não conhecia dos fatos delituosos durante todo o período em que foram perpetrados.

Requer o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, a exclusão da agravante do art. 61, II, f, do Código Penal, a exclusão da majorante do parentesco, prevista no art. 226, II, do Código Penal, e a aplicação do crime continuado no mínimo ou em patamar próximo ao mínimo legal. Juntadas informações.

O Ministério Público Federal apresentou manifestação pelo não conhecimento do habeas corpus, mas pela concessão de ordem de ofício. É o relatório.

O Superior Tribunal de Justiça entende que é inadmissível a utilização do habeas corpus como sucedâneo de recurso próprio, previsto na legislação, impondo-se o não conhecimento da impetração. Sobre a questão, confiram-se os seguintes julgados desta Corte Superior (grifei):

PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE. ABSOLVIÇÃO IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS NA FLUÊNCIA DO PRAZO PARA A INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS NA ORIGEM. IMPOSSIBILIDADE. 1. "O writ foi manejado antes do dies ad quem para a interposição da via de impugnação própria na causa principal, o recurso especial. Dessa forma, a impetração consubstancia inadequada substituição do recurso cabível ao Superior Tribunal de Justiça, não se podendo excluir a possibilidade de a matéria ser julgada por esta Corte na via de impugnação própria, a ser eventualmente interposta na causa principal" (AgRg no HC n. 895.954/DF, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo - Desembargador Convocado do TJSP, Sexta Turma, julgado em 12/8/2024, DJe de 20/8/2024.) 2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 939.599/SE, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 23/10/2024, DJe de 28/10/2024 – grifo próprio.) DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO HABEAS CORPUS COMO SUCEDÂNEO DE REVISÃO CRIMINAL. AGRAVO DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Agravo regimental interposto por Pablo da Silva contra decisão monocrática que não conheceu de habeas corpus, com base no entendimento de que o habeas corpus foi utilizado em substituição a revisão criminal. O agravante foi condenado a 1 ano de reclusão, com substituição da pena por restritiva de direitos, pela prática de furto (art. 155, caput, CP). A defesa pleiteou a conversão da pena restritiva de direitos em multa, alegando discriminação com base na condição financeira do paciente. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há duas questões em discussão: (i) definir se é cabível o conhecimento do habeas corpus utilizado em substituição à revisão criminal; e (ii) estabelecer se a escolha da pena restritiva de direitos, em vez de multa, configura discriminação por condição financeira. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. O habeas corpus não é admitido como substituto de revisão criminal, conforme a jurisprudência consolidada do STJ e do STF, ressalvados casos de flagrante ilegalidade. 4. Não houve demonstração de ilegalidade evidente na escolha da pena restritiva de direitos, sendo esta compatível com a natureza do crime e as condições pessoais do condenado. IV. DISPOSITIVO E TESE 5. Agravo regimental desprovido. Tese de julgamento: 1. O habeas corpus não pode ser utilizado como substituto de revisão criminal, salvo em casos de flagrante ilegalidade. 2. A escolha de pena restritiva de direitos, em substituição à privativa de liberdade, não configura discriminação por condição financeira, desde que adequadamente fundamentada. Dispositivos relevantes citados: Código Penal, art. 155; STJ, AgRg no HC 861.867/SC; STF, HC 921.445/MS. (AgRg no HC n. 943.522/SC, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 22/10/2024, DJe de 4/11/2024.)

Cabe verificar, ainda assim, se há situação de manifesta ilegalidade para que seja concedida ordem de ofício. Consta dos autos que a paciente foi condenada à pena de 23 anos e 4 meses de reclusão em regime inicial fechado, como incursa no art. 217-A, c/c o art. 226, II, na forma do art. 71, caput, por omissão imprópria, conforme o art. 13, § 2º, a, todos do Código Penal.

A dosimetria da pena foi realizada nos seguintes termos (fls. 313-315):

PASSO À DOSIMETRIA DA PENA DOS RÉUS Em atenção ao método trifásico de fixação da pena, com vista aos artigos 59 e 68 do Código Penal, passa-se à fixação das penas deles. NA PRIMEIRA FASE, verificam-se as circunstâncias judiciais. Não militam em desfavor dos réus a culpabilidade, os antecedentes (f. 193-194), a conduta social, a personalidade dos agentes, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime e o comportamento da vítima. Assim, cada pena-base é de 8 anos de reclusão. NA SEGUNDA FASE da dosimetria, não se verifica qualquer atenuante: ninguém confessa a prática do estupro de vulnerável, seja de forma comissiva ou omissiva, muito menos com dolo. Entretanto, verifica-se presente a agravante prevista no art. 61, inciso II, “f”, do Código Penal, em razão da coabitação. Dessa forma, cada pena provisória é de 9 (nove) anos e 4 (quatro) meses de reclusão. NA TERCEIRA FASE, verificam-se as circunstâncias legais caracterizadoras de causa de aumento e de diminuição de pena. Na referida fase, no caso, não se encontram presentes causas de diminuição da pena. MAS há a majorante do artigo 226, inciso II, do CP, em razão do crime ter sido cometido pelo padrasto. Imperioso destacar que, nesse caso, não há bis in idem em relação à agravante anterior, pois plenamente possível que inexista coabitação entre padrasto/genitora e vítima. Dessarte, cada pena definitiva é de 14 anos de reclusão. Embora seja requisito da continuidade que os crimes sejam cometidos nas mesmas circunstâncias espaciais, nos termos do art. 71, caput, do CP, conforme a Jurisprudência em Tese do c. STJ, não se visualiza qualquer óbice ao reconhecimento dela quanto a todos os fatos ocorridos nesta Urbe e descritos na peça acusatória, ainda que em locais diferentes, pois a continuidade delitiva pode ser reconhecida até mesmo quando se tratarem de delitos ocorridos em comarcas limítrofes ou próximas (Compêndio sobre continuidade delitiva n. I, item 5, do c. STJ). Nesse prisma, reconheço a continuidade entre os abusos sexuais descritos na denúncia (de f. 1-3), observadas as provas e os limites da narrativa inaugural. Reconhecida a continuidade delitiva, cabe analisar a fração a ser aplicada ao caso em apreço. Segundo o compêndio de jurisprudência em teses do c. STJ sobre continuidade delitiva (livro II, item 8), "o aumento se faz em razão do número de infrações praticadas e de acordo com a seguinte correlação: 1/6 para duas infrações; 1/5 para três; 1/4 para quatro; 1/3 para cinco; 1/2 para seis; 2/3 para sete ou mais ilícitos". Ainda com base na jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça, se houver descrição na denúncia de vários atos e se restar comprovados que os abusos sexuais, em longos períodos, ocorreram em multiplicidade, ainda que em quantidade incerta de abusos, como no presente caso, aplica-se a fração de 2/3. [...] Nessa esteira, cada pena definitiva é de 23 anos e 4 meses reclusão. De acordo com o artigo 33, §2º., "a", do Código Penal, o REGIME INICIAL SERÁ O FECHADO, para os denunciados, ora condenados. Incabível qualquer benefício, já que as penas fixadas para os réus são superiores aos limites legais, conforme estabelecem os artigos 44 e 77 do Código Penal.

A pretensão da defesa merece acolhimento em dois pontos porque contrariam o entendimento desta Corte Superior. Primeiro, a confissão deve ser considerada independentemente de ter sido utilizada para o convencimento do julgador.

A propósito: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO. DOSIMETRIA. CONFISSÃO. RETRATAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Consta dos autos que o paciente confessou perante a autoridade policial, tendo se retratado posteriormente quando interrogada em juízo. 2. Consoante entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça, nos casos em que a confissão do acusado servir como um dos fundamentos para a condenação, deve ser aplicada a atenuante em questão, pouco importando se a confissão foi espontânea ou não, se foi total ou parcial, ou mesmo se foi realizada só na fase policial, com posterior retratação em juízo. 3. Ademais, segundo a atual orientação desta Corte, firmada a partir do julgamento do REsp n. 1.972.098/SC, uma vez confessada a prática delitiva, impõe-se a redução da pena, independentemente de a confissão ter sido utilizada pelo Juiz como um dos fundamentos da sentença condenatória. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no HC n. 939.568/DF, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo – Desembargador convocado do TJSP, Sexta Turma, julgado em 18/12/2024, DJEN de 23/12/2024.)

Segundo, a causa de aumento prevista no art. 226, II, do Código Penal, que decorre do parentesco, configura bis in idem quando a condenação por estupro decorrer de omissão imprópria já que, neste caso, a posição de genitora (garante) passa a integrar a elementar do tipo. Confira-se:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRATICADO PELA GENITORA DA VÍTIMA. OMISSÃO PENALMENTE RELEVANTE. DEVER DE IMPEDIR O RESULTADO. CRIME COMISSIVO POR OMISSÃO. ART. 13, § 2º, DO CP. AUTORIA. CONDIÇÃO DE GARANTE. ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA NO ART. 226, II, DO CP. ASCENDÊNCIA DO AUTOR DO DELITO SEXUAL. BIS IN IDEM. INADMISSIBILIDADE. TEMA NÃO DEBATIDO PELA CORTE DE ORIGEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. ILEGALIDADE FLAGRANTE. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO (ART. 654, § 2º, DO CPP). CONTINUIDADE DELITIVA PRATICADA POR LONGO PERÍODO DE TEMPO. FIXAÇÃO DA FRAÇÃO DE 1/5. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. 1. Condenada a ré pela prática do delito de estupro de vulnerável, por omissão imprópria (art. 13, § 2º, do CP), a posição de garantidora, estabelecida apenas em razão da condição de ascendente da vítima, passa a ser elementar do tipo penal, motivo pelo qual configura bis in idem a consideração do mesmo fato para determinar o recrudescimento da pena, como causa de aumento (art. 226, II, do CP). 2. Não obstante o longo período de abuso perpetrado pelo pai, dos 8 aos 13 anos da vítima, o Magistrado sentenciante, demonstrando sensibilidade, foi cauteloso ao fixar a fração de 1/5 pelo reconhecimento da continuidade delitiva para a genitora, condenada por omissão imprópria, por entender que não conhecia dos fatos delituosos durante todo o período em que perpetrado. 3. Ordem denegada. Habeas corpus concedido de ofício, para redimensionar a pena da paciente, pelo delito de estupro de vulnerável, a 11 anos, 8 meses e 12 dias de reclusão, mantidos os demais termos da condenação (HC n. 683.176/TO, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 13/12/2021.)

No que diz respeito à circunstância agravante prevista no art. 61, II, f, do Código Penal, não há manifesta ilegalidade porque eventual afastamento da agravante não conduziria a pena a um grau aquém do mínimo legal (Súmula n. 231 do STJ).

Finalmente, não há como alterar o grau de aumento decorrente da continuidade delitiva porque seria necessário reexame de fatos e provas para se acolher o argumento de que a embargante não conhecia dos fatos delituosos durante todo o período em que foram perpetrados.

Com essas considerações, a pena deve ser redefinida da seguinte forma: mantida a pena-base no mínimo legal de 8 anos de reclusão; na segunda etapa, tem-se a compensação entre a agravante prevista no art. 61, II, f, do Código Penal e a atenuante da confissão espontânea, mantendo-se a pena provisória em 8 anos de reclusão; na terceira fase, afastada a causa de aumento da relação de parentesco e mantido o aumento da continuidade delitiva em 2/3, resulta a pena definitiva em 13 anos e 4 meses de reclusão. Mantidas as demais disposições da sentença.

Ante o exposto, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem de ofício para redefinir a pena da paciente para 13 anos e 4 meses de reclusão. Cientifique-se o Ministério Público Federal. Comunique-se. Publique-se. Intimem-se.

Relator

OG FERNANDES

(STJ - HABEAS CORPUS Nº 925177 - MS (2024/0233959-9) RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES, Publicação no DJEN/CNJ de 20/02/2025)

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