STJ Fev25 - Execução Penal - Complexo Penitenciário de Curado (PE) - Tempo de Pena Computado em Dobro :Estado de Coisa Inconstitucional

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus, sem pedido de liminar, impetrado em favor de EXXXX, em que se aponta como autoridade coatora a CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE (e-STJ fl. 3).

Narra a defesa que o paciente cumpriu 745 dias de pena no Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros, unidade do Complexo do Curado/PE, e que a Resolução de 28 de novembro de 2018 da Corte Interamericana de Direitos Humanos impôs ao Estado Brasileiro o cômputo em dobro da pena cumprida nas unidades do Complexo do Curado, condicionado à realização de exame criminológico para crimes que atentem à vida, integridade física e de natureza sexual (e-STJ fl. 4).

Alega que a 2ª Vara Regional de Execução Penal do RN negou a realização do exame criminológico ao paciente, sob o fundamento de que a competência para tal providência seria do Estado de Pernambuco, decisão mantida pela autoridade coatora.

No presente mandamus, a defesa sustenta que a decisão da autoridade coatora restringiu o cumprimento de medida provisória determinada pela CIDH ao ente subnacional onde o Complexo Penitenciário do Curado está localizado, em dissonância com o princípio pro personae e da coisa julgada internacional.

Aduz que a jurisdição nacional está vinculada ao cumprimento da medida provisória imposta pela Corte IDH, à luz do Decreto n. 4.463, do princípio pro personae e da autoridade da coisa julgada internacional (fl. 4).

No mérito, a defesa requer a concessão da ordem para anular o acórdão em desfavor do paciente, permitindo que o exame criminológico seja realizado em sua jurisdição e, com base na avaliação, ter o cômputo de pena a ser definido pelo Juízo de Execução Penal do RN.

O Ministério Público Federal, em parecer de e-STJ fls. 69/73, opinou pela denegação da ordem.

É o relatório. Decido.

Em razão da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de não ser admissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de não se desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, preservando, assim, sua utilidade e eficácia, e garantindo a celeridade que o seu julgamento requer.

Referido entendimento foi ratificado pela Terceira Seção, em 10/6/2020, no julgamento da Questão de Ordem no Habeas Corpus n. 535.063/SP. Nessa linha de intelecção, como forma de racionalizar o emprego do writ e prestigiar o sistema recursal, não se admite a sua impetração em substituição ao recurso próprio.

Todavia, em homenagem ao princípio da ampla defesa, tem se admitido o exame da insurgência, para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal passível de ser sanado pela concessão da ordem, de ofício. Busca a defesa a anulação do acórdão, permitindo que o exame criminológico seja realizado pelo Juízo da Execução Penal no Estado do Rio Grande do Norte e, com base na avaliação, ter o cômputo de pena a ser definido pelo referido Juízo.

Sobre o tema, o Tribunal de Justiça assim se manifestou (e-STJ fls. 11/13):

Conforme relatado, o cerne do agravo refere-se ao pleito de cômputo em dobro de tempo de prisão cumprido em estabelecimento prisional insalubre. No entanto, razão não assiste ao agravante. Isso porque, embora não se desconheça que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha emitido resolução de medidas provisórias a serem adotadas pelo Estado Brasileiro, dentre as quais a de cômputo em dobro do tempo de pena cumprida nas unidades do Complexo de Curado – PE, verifico que para a concessão dessa medida, o apenado necessita cumprir alguns requisitos. Pois bem. Analisando o presente caso, observo que o agravante foi condenado por crime cometido com violência ou grave ameaça, o que o condiciona ao preenchimento do requisito do exame criminológico para a concessão do benefício. É nesse sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: [...] No entanto, observo que ele não apresentou referido exame ao juízo da execução, solicitando, em sede de agravo, que tal perícia fosse feita no presídio que se encontra, tendo o magistrado de formaa quo, assertiva, asseverado que “Nesses casos, conforme se infere do item 132 e 133, o cômputo da pena fica condicionada a exames criminológicos, realizados naquele Complexo, por três peritos, que verifiquem . Adiante, na parte final item 6 e 7, a resolução estabelece oos indicadores de agressividade da pessoa prazo de seis meses para que se compute em dobro o tempo de pena para os apenados que não sejam acusados ou condenados por crimes cometidos com violência e, mais uma vez, aduz que o computo dos dias dos apenados condenados por crimes cometidos com violência é condicionado ao resultado da perícia, a ser providenciada por aquele Complexo Penitenciário e pelo Estado no prazo de quatro (ID 20305066 – Pág. 1, grifos nossos), fundamentação esta que me acosto integralmente. ”meses.(...) É que ao analisar o item supracitado, a interpretação que se tem é que a competência para referido exame é do Estado de Pernambuco, sobretudo pela peculiaridade da imposição de como deveria ser feito tal exame quanto à exigência de prazo, período e profissionais exigidos. Senão vejamos: [...] Portanto, da análise do dispositivo supra, depreende-se que a competência do exame criminológico é, de fato, do Estado de Pernambuco. Com isso, entendo que o Magistrado natural agiu acertadamente ao negar o pedido do cômputo em dobro, o que, em adição ao argumento dado, ainda ponderou em sede de decisão de Embargos de Declaração que “(...) sem razão a pretensão da parte embargante, isso porque, no pedido formulado pela Defensoria Pública no evento 154.1 não consta o pedido de exame criminológico, e ainda que houvesse, tal procedimento deveria ter sido realizado pelo Complexo Prisional de Curado e pelo Estado do e com base nisso, seria formulado um prognóstico da conduta doPernambuco em tempo e modo, apenado, conforme determinado no item 7 da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na verdade, a decisão embargada já discorreu sobre esse aspecto, ao mencionar que o pedido não veio . instruído com exame criminológico, cuja competência para realizar é do Estado de Pernambuco (ID 20305064 - Pág. 1 e 2). Grifos nossos. Corroborando o explanado, tem-se o que asseverou o Ministério Público de primeiro grau, em suas contrarrazões recursais, ao afirmar que “(...) a aplicação das decisões citadas não é automática, devendo sujeitar o reeducando a um exame a comprovar se cabe a redução, se é aconselhável ou se deve abreviar a pena em nível inferior a 50%. Dessa forma, considerando que o Agravante praticou crime contra a vida, à míngua de comprovação pericial sobre o prognóstico da conduta resultante de perícia, não poderá ser beneficiado pela Resolução nº 28 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, em razão do exposto, a decisão impugnada deve ser mantida em todos os seus termos, não assistindo razão ao Agravante, pois não há qualquer fundamento idôneo que possa modificar os termos da decisão (ID 21480791 – Pág. 5). de piso, motivo pelo qual deve permanecer inalterada em todos os seus termos” Do mesmo modo foi o parecer opinativo da Procuradoria de Justiça, veja-se: “(...) não merece prosperar a pretensão de contagem em dobro da pena cumprida pelo agravante sem a prévia realização do exame criminológico a ser confeccionado pelo Complexo Penitenciário de Curado/PE.” (ID 20385665 – Pág. 5). Nesta ordem de considerações, pois, tenho por insubsistentes as razões do agravo, mantendo inalterada a decisão acossada.

Inicialmente, da leitura do trecho acima transcrito, evidencia-se que o Tribunal de Justiça, acertadamente, reputou imprescindível a realização do exame criminológico previsto nos itens 131 a 133 da Resolução de 28/11/2018 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como requisito para concessão de cômputo em dobro de pena de sentenciados por crimes com violência ou grave ameaça a pessoa que tivessem cumprido parte de sua pena no Complexo do Curado. Confira-se o exato teor da Resolução de 28/11/2018, no ponto:

131.
Os desvios de conduta provocados por condições degradantes de execução de privações de liberdade põem em risco os direitos e os bens jurídicos do restante da população, porque gera, em alguma medida, um efeito reprodutor de criminalidade. A Corte não pode ignorar essa circunstância e, pelo menos no se refere aos direitos fundamentais, a ela se impõe formular um tratamento diferente para o caso de presos acusados de crimes ou supostos crimes contra a vida e a integridade física, ou de natureza sexual, ou por eles condenados, embora levando em conta que esses desvios secundários de conduta não ocorrem de maneira inexorável, o que exige uma abordagem particularizada em cada caso. 132. Por conseguinte, a Corte entende que a redução do tempo de prisão compensatória da execução antijurídica, conforme o cômputo antes mencionado, para a população penal do Complexo de Curado em geral, no caso de acusados de crimes contra a vida e a integridade física, ou de natureza sexual, ou por eles condenados, deverá se sujeitar, em cada caso, a um exame ou perícia técnica criminológica que indique, segundo o prognóstico de conduta que resulte e, em particular, com base em indicadores de agressividade da pessoa, se cabe a redução do tempo real de privação de liberdade, na forma citada de 50%, se isso não é aconselhável, em virtude de um prognóstico de conduta totalmente negativo, ou se se deve abreviar em medida inferior a 50%. 133. Com esse objetivo, o Estado deverá arbitrar os meios para levar a cabo esses exames ou perícias criminológicas, de forma diligente e prioritária, organizando, para esse efeito, uma equipe de profissionais, constituída especialmente por psicólogos e assistentes sociais (sem prejuízo de outros), de comprovada experiência e adequada formação acadêmica, que deverá atuar em grupos de, pelo menos, três peritos, sem que seja suficiente o parecer de um único profissional. A pluralidade de peritos evitará ou reduzirá a eventualidade de decisões que atendam a favoritismos ou preferências arbitrárias e, inclusive, a possíveis atos de corrupção.

Lembro, também, que, em liminar concedida no Habeas Corpus n. 208.337/PE (DJe de 1º/7/2022), o eminente Ministro EDSON FACHIN afirmou o caráter obrigatório e vinculante das decisões emanadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o Estado brasileiro, determinando que o paciente naqueles autos (condenado por homicídio qualificado) fosse avaliado por uma equipe criminológica que preencha os requisitos estabelecidos pelo item 7 do dispositivo da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 28 de novembro de 2018.

Na ocasião, o Ministro EDSON FACHIN ponderou:

(...) Assim, em novembro de 2018, a CIDH determinou ao Estado brasileiro que, no prazo de 6 (seis) meses, arbitrasse os meios necessários para o cômputo em dobro dos dias de privação de liberdade cumpridos naquele complexo prisional por pessoas não acusadas de crimes contra a vida, contra a integridade física ou crimes sexuais, bem como que, em 8 (oito) meses, viabilizasse o início do trabalho de equipe criminológica de profissionais para avaliar os acusados desses crimes e aconselhar, em tais casos, a conveniência do cômputo em dobro do tempo de privação de liberdade ou da redução deste multiplicador. Prima facie, a realidade que emerge dos autos, superados em muito todos os prazos estabelecidos pela resolução da Corte Interamericana, revela um enorme descompasso em relação aos termos de sua decisão: o que se constata é que, por força da instauração de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, um órgão judiciário do Estado brasileiro, ao se deparar com a prolação de decisões oriundas dos Juízos de Execução que contêm manifesta recusa ao cumprimento do que decidido pela CIDH, optou por lhe negar eficácia ao determinar, pelo prazo de 1 (um) ano, “a suspensão dos efeitos práticos da contagem em dobro do tempo de prisão nas unidades integrantes do denominado Complexo do Curado”, prolongando o quadro de violação de direitos humanos das pessoas presas naqueles estabelecimentos prisionais. Diante desse cenário, impõe-se o restabelecimento da possibilidade de que a decisão emanada da Corte Interamericana de Direitos Humanos incida em favor do paciente, com a remoção dos obstáculos levantados pelas instâncias ordinárias. Tendo em vista que o paciente, a toda evidência, cumpre pena pela prática de crime contra a vida, o cumprimento da resolução da CIDH pressupõe a realização de avaliação criminológica antes de se decidir sobre o multiplicador a incidir sobre os dias de privação de liberdade por ele passados no Complexo Prisional do Curado. Ante o exposto, defiro em parte o pedido liminar para determinar que em 30 (trinta) dias: (i) o paciente RONALDO ESTEVAO DA SILVA seja avaliado por uma equipe criminológica que preencha os requisitos estabelecidos pelo item 7 do dispositivo da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 28 de novembro de 2018; (ii) o Juízo da Execução profira nova decisão a respeito da cômputo do período de cumprimento de pena pelo paciente no Complexo Prisional do Curado à luz da avaliação efetuada e da mencionada resolução.

Observo que, em situações similares, nas quais o executado cumpria pena por latrocínio e delito contra a vida ou contra a integridade física, foi mantida a necessidade de realização de exame criminológico nos seguintes julgados: HC n. 776.594/RJ, Rela. Ministra LAURITA VAZ, DJe de 25/11/2022 (situação envolvendo roubo majorado e latrocínio); HC n. 756.500/RJ, Rela. Ministra LAURITA VAZ, DJe de 25/10/2022 (situação envolvendo roubo majorado e latrocínio); EDcl no HC 685.601/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe de 26/9/2022 (situação envolvendo latrocínio); RHC n. 165.377/PE, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe de 2/8/2022 (situação envolvendo homicídio e latrocínio); HC n. 696.588/RJ, Rel. Ministro OLINDO MENEZES (Desembargador convocado do TRF da 1ª Região), DJe de 24/2/2022 (situação envolvendo latrocínio, receptação e falsificação de papel moeda).

Destaco, ainda, o REsp n. 2.097.171/RJ, de MINHA RELATORIA, DJe de 2/10/2023, no qual reconheci a necessidade de realização de exame criminológico prévio para concessão de cômputo em dobro de pena a condenado por roubo circunstanciado e extorsão mediante sequestro. Levando-se em conta que, no caso concreto, o apenado praticou crimes com violência ou grave ameaça à pessoa, é justificado o tratamento diferenciado e imprescindível a realização de exame criminológico que indique, inclusive, o grau de agressividade do sentenciado, cabendo ao Juízo da execução penal, com base nas conclusões constantes do laudo, definir acerca do cabimento ou não da redução de 50% (cinquenta por cento) do tempo real de privação de liberdade ou em medida inferior ao referido patamar, nos termos dos acima citados itens 131, 132 e 133 da Resolução de 22 de novembro de 2018 da CIDH.

Todavia, ao contrário do afirmado no acórdão ora impugnado, cabe que o Juízo das Execuções Criminais promover gestões junto aos órgãos responsáveis pela elaboração da prova técnica, visando sua célere produção, nos termos acima explicitados, e, em último caso, recorrendo ao SUS para tanto, haja vista a imprescindibilidade da prova pericial para deslinde da controvérsia; apreciando, logo em seguida, o pleito formulado pelo apenado em primeira instância, objetivando a redução da respectiva pena.

Ante o exposto, com amparo no art. 34, XX, do Regimento Interno do STJ, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem, de ofício, para determinar ao Juízo da Execução da 2ª Vara Regional de Execução Penal - Meio Fechado e Semiaberto - da Comarca de Natal/RN a realização do exame criminológico no ora paciente, nos moldes fixados na Resolução de 22 de novembro de 2018 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), itens 132 e 133, e, em último caso, recorrendo ao SUS para tanto, para fins da contagem em dobro de pena cumprida no Complexo do Curado. Comunique-se a presente decisão, com urgência, ao Juízo singular das execuções e ao Tribunal coator. Intimem-se. Sem recurso, arquivem-se os autos.

Relator

REYNALDO SOARES DA FONSECA

(STJ - HABEAS CORPUS Nº 890999 - RN (2024/0043901-5) RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA, Publicação no DJEN/CNJ de 14/02/2025.)

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