STJ Fev25 - Júri - Pronúncia Nula - Aplicação Irregular do Princípio do in dubio pro societate :"Pronúncia que Usa Prova Extrajudicial e que Afirma Haver Provas Judiciais, sem Minimamente Indicar Quais São"

  Publicado por Carlos Guilherme Pagiola

DECISÃO Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de FRXXXXXXS, em que se aponta como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ, no Recurso em Sentido Estrito n. 0002679-43.2014.8.06.0000.

Consta dos autos que o paciente foi pronunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 121, § 2°, incisos I e IV, do Código Penal, com júri designado para o dia 9 de maio de 2025. O Tribunal de origem, ao julgar o recurso em sentido estrito interposto pela Defesa, manteve a decisão de pronúncia, fundamentando que haveria dúvida quanto à autoria delitiva em razão de suposta contradição entre os depoimentos colhidos na fase policial e aqueles prestados em Juízo.

Neste writ, a Defesa sustenta a ocorrência de constrangimento ilegal, argumentando que: a) a pronúncia foi baseada apenas na dúvida gerada pelo confronto entre depoimentos colhidos em Juízo e aqueles colhidos na fase inquisitorial; b) o Tribunal de origem lançou mão do inexistente brocardo do in dubio pro societate, em violação reflexa do art. 155 do Código de Processo Penal, e c) as testemunhas ouvidas em Juízo nada relataram que imputasse conduta típica ao paciente, tendo inclusive confirmado que ele nem sequer saiu da oficina onde prestava serviços no momento do crime. Aduz que o Superior Tribunal de Justiça, recentemente, em situação análoga (HC 946.697/CE), concedeu a ordem de ofício para despronunciar acusado que estava com júri designado.

Acrescenta que, conforme recente entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 1235340, o princípio do in dubio pro societate não possui respaldo constitucional.

Postulou, liminarmente, a suspensão da sessão do Tribunal do Júri designada para o dia 9 de maio de 2025 até ulterior deliberação do mérito desta impetração e, no mérito, requereu que seja concedida a ordem para despronunciar o paciente.

Decisão indeferindo o pedido liminar (fls. 137-139). Após a referida decisão, peticionou alegando que há julgados recentes desta Corte acolhendo a pretensão deduzida (fl. 147). As informações foram prestadas (fls. 167-170 e 172-173). O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não conhecimento do habeas corpus e, caso conhecido, pela denegação da ordem (fls. 176-182).

É o relatório. DECIDO.

Inicialmente, pontuo que esta Corte Superior, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (AgRg no HC 180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020, e AgR no HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018), pacificou orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado (HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 10/6/2020).

Na espécie, embora o impetrante não tenha adotado a via processual adequada, cumpre analisar as razões da impetração, de forma a verificar a ocorrência de eventual ilegalidade manifesta a justificar a concessão do habeas corpus, de ofício.

De primeiro, destaco que a pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza, necessários à prolação da sentença condenatória.

No caso, a pronúncia limitou-se a descrever que os indícios de autoria restaram demonstrados através dos depoimentos testemunhas colhidos em juízo (fls. 87-91).

Reconheço ser árdua a tarefa de motivar a decisão de pronúncia, considerando a necessidade de se evitar o excesso de linguagem. In casu, entretanto, a pronúncia nem menciona quais são os depoimentos testemunhais colhidos em Juízo e em que medida eles consubstanciam os necessários indícios de autoria, tratando-se, portanto, de decisão genérica e abstrata, que deixa de observar o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal.

A Corte estadual, por sua vez, ao julgar o recurso interposto, fundamentou o ato apontado como coator com base nas seguintes razões de decidir (fls. 112-120 - grifamos):

O magistrado monocrático afirmou que a materialidade do fato resta comprovada conforme o exame de corpo de delito (fls. 36/37) e, no tocante aos indícios de autoria, "demonstrados através dos depoimentos testemunhais colhidos em juízo". (fl. 210) Lado outro, sustenta o recorrente que as testemunhas Cícero Erlândio de Freitas, Ageu de Siqueira Tenório, Francisco Adaildo Moreira Gonçalves e João Alves Araújo Neto confirmam, em juízo, que no dia do fato ele encontrava-se trabalhando na oficina de seu irmão conhecido por Pedro Feitosa, (até as 17:00 horas, momento em que a mesma foi fechada). CÍCERO ERLÂNDIO DE FREITAS, de fato, declarou, em Juízo, que "passou mais ou menos 20 minutos afastado da oficina; que ficou na calçada da oficina; que durante o período que permaneceu na oficina o Cité estava lá"; [...] que não viu Cité saindo da oficina; que passou ainda um bom tempo na calçada da oficina; [...]" (fl. 89) AGEU DE SIQUEIRA TENÓRIO respondeu, igualmente em Juízo, que "chegou na oficina de Pedro por volta das 14:00 hs ou 15:00 hs e ficou até as 17:00 hs"; [...]; "que Cité e os outros estavam dentro da oficina; que, inclusive, o Cité fez o serviço de sua moto, trocando o kit de tração; que esse serviço é demorado; que demora cerca de 1 hora; que Cité terminou por voltas das 16:30hs; que Cité fez questão de realizar o serviço; [...]" (fl. 91) FRANCISCO ADAILTON MOREIRA GONÇALVES, por sua vez, respondeu que presenciou a briga na oficina e a pedido de Pedro saiu para chamar a Polícia e "quando voltou à oficina, Pedro, Cité e outras pessoas estavam lá" [....] que nunca presenciou Pedro ou Cité armados; que nenhuma dos dois deixou o local até o momento em que fecharam a oficina. [...]" (fl. 94) JOÃO ALVES ARAÚJO NETO afirmou, em Juízo, que esteve na referida oficina de Pedro Feitosa, no dia do fato, até 15:30 ou 16:00 hs e que "em momento algum viu Cité saindo da oficina". (fl. 97) Todavia, existe controvérsia sobre esse assunto. Cumpre registrar a contradição de FRANCISCO ADAILTON MOREIRA GONÇALVES entre o que declarou no inquérito policial (fls. 18/19) e o que respondeu em Juízo. Vejamos: "[...] no dia 18 de junho de 2011, por volta das 12:00h, se encontrava trabalhando na oficina de Pedro Feitosa, quando uma pessoa que não recorda o nme, chegou embriado e começou a "esculhambar" dizendo que Pedro era queixo fino; que referido rapaz começou a chamar o declarante e a Pedro e disse Cité de "filho de rapariga", "filho de puta"; que referido rapaz se dirigiu a Pedro e disse "você quer ser o dono do mundo"; que pediu ao rapaz para ele ir embora; que Pedro disse "rapaz, vai embora que minha paciência é pouca", "vai embora que é melhor para você"; que Pedro se irritou com o rapaz e o puxou pelo braço e empurrou, ocasião em que o rapaz caiu, tendo o declarante segurado Pedro; que o referido rapaz foi embora; que no mesmo dia por volta das 14:30hs um veículo GOLF amarelado, quase prata, parou em frente à oficina de onde desceu JORDANO e o genitor; que nesse momento também parou uma motocicleta com um condutor desconhecido; que JORDANO e o rapaz desconhecido entrarm e JORDANO perguntou "quem é que bateu em meu irmão"e CITÉ respondeu: "FOI EU PORQUE"; que JORDANO perguntou porque e CITÉ respondeu bateu em seu irmão e CITÉ respondeu "FOI PORQUE ELE ESTAVA ATRAPALHANDO NOSSO TRABALHO"; que imediatamente o rapaz que estava em companhia de JORDANO deu um murro na cara de CITÉ e deu uma "gravata" no referido, enquanto JORDANO passou a esmurrar CITÉ; que o declarante chamou Pedro e juntos apartaram a briga; que o rapaz desconhecido subiu na motocicleta e esperou JORDANO; que JORDANO foi até o GOLF e, no porta-luvas apanhou um revólver e efetuou quatro disparos na frente na oficina contra Pedro e, em seguida saiu; após cerca de 20 a 30 minutos saiu para chamar a polícia sozinho, a pedido de Pedro, encontrando um policial na Rua José Arteiro; que após fazer a comunicação à polícia, retornou juntamente com o policial para a oficina, após cerca de 05 minutos de sua saída; QUE NO REFERIDO LOCAL VIU PEDRO, MAS NÃO VIU CITÉ, NÃO MAIS TENDO CONTATO COM O MESMO, SOMENTE ENCONTRANDO CITÉ NA SEGUNDA-FEIRA, DIA 20 DE JUNHO DE 2011, PELA MANHÃ; que aproximadamente 10 a 20 minutos do seu retorno tomou conhecimento que uma pessoa foi assassinada na cidade; que após apurar os fatos tomou conhecimento de quem foi assassinado, na verdade, com certeza, quem foi assassinado foi o rapaz desconhecido que havia dado um soco na "cara" de CITÉ; que nada mais sabe dizer a respeito do crime; que trabalha com Pedro Feitosa e teme ser demitido por estar dizendo esta versão." (destaquei) CÍCERO ERLÂNDIO DE FREITAS declarou no inquisitorial que "[...] permaneceu no local durante algum tempo; que não recorda da presença de CITÉ no local, pois após os fatos não mais entrou na oficina, mas recorda bem que ADAILDO se encontrava no local; que pouco tempo depois chegou a notícia de queo rapaz que havia brigado com CITÉ, dando-lhe um soco, havia sido assassinado a tiros; que não dizer quem foi o autor do crime. [...]" (fl. 21) O capitão da Polícia Militar e comandante da Unidade de Parambu, SERGISNALDO CORDEIRO MEDEIROS, informou que no dia do fato, após tomar conhecimento do óbito da vítima, se deslocou até a oficina de Pedro Feitosa a fim de averiguar a vinculação dos crimes e que: "[...] conhece de vista CITÉ, irmão de Pedro Feitosa, e não tem dúvidas de que o mesmo não se encontrava na oficina no momento em que o depoente lá se esteve; [...]; que após as informações colhidas, tomou conhecimento de que havia vinculação entre os crimes e na presença de populares solicitou o apoio e que fossem repassadas informações para o 190, com a promessa de sigilo; que uma após recebeu pelo 190 a informação de que após o Pedro ter recebido os quatro disparos, seu irmão de nome CITÉ, bem como seu funcionário de nome Adaildo, saíram numa moto, onde CITÉ não foi mais visto na oficina, mas apenas Adaildo, gerando suspeitas de ambos; [...]; que localizaram Adaildo, o qual questionado sobre os fatos, negou envolvimento com o crime e ao ser indagado sobre o envolvimento de CITÉ no crime, confessou que CITÉ era possuidor de uma arma de fogo e que tinha receio de confirmar a autoria do crime por parte de CITÉ por temer represálias; [...]" (fl. 28) E mais: A testemunha FRANCISCO ROBÉRIO ROCHA disse no inquisitorial que "no final da tarde tomou conhecimento que o rapaz baleado era familiar dos que estavam envolvidos na confusão da oficina de Pedro, filho de "DEDE DO JOÃO ELOI" e primo do autor dos disparos; que nada mais sabe acerca dos fatos; que os comentários de rua são que primeiro tinha sido ADAILDO, depois soube que havia sido a mando do Pedro e, ao final, que tinha sido CITÉ, irmão de Pedro". (fl. 20) ENOQUE ARISTIDES BARBOSA declarou, também no inquisitorial que "[...] após alguns minutos tomou conhecimento de que DEDÉ havia sido perseguido e assassinado por CITÉ; [...]" (FL. 25) JORDÂNIO FREITAS BARBOSA declarou no inquérito policial que "[...] que efetuou quatro disparos contra a parede; que após efetuar os referidos disparos, o grupo dispersou e DEDÉ saiu correndo; que, ao ver DEDÉ em direção ao centro, também saiu, mas em direção oposta, ou seja, ao bairro Beleza, indo par a outro município com medo de ser preso e\ou agredido; que no meio da tarde tomou conhecimento que após poucos minutos de sua saída, DEDÉ foi seguido por CITÉ e assassinado com três disparos; que após toda a confusão e assassinato de DEDÉ, familiares de CITÉ foram diversas vezes da residência da genitora do interrogando fazer ameaças de que "não vai ficar só assim, vai morrer mais gente; [...]" (fl. 26) A vista dessa controvérsia e, considerando que a decisão de pronúncia não exige um juízo de certeza, mas tão somente que sejam apontados indicativos de autoria, segue mantida a pronúncia, ficando a cargo do Conselho de Sentença decidir, ou não, pela sua procedência.

Da fundamentação empreendida pelo Tribunal de origem, constata-se que não há menção a nenhuma prova, produzida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, capaz de sustentar a pronúncia, limitando-se o ato coator a apontar dados colhidos durante a fase investigativa. Conforme entendimento desta Corte Superior, a pronúncia não pode encontrar-se baseada exclusivamente em elementos colhidos durante o inquérito policial, nos termos do art. 155 do CPP.

Nessa linha:

PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. TESTEMUNHO HEARSAY E PROVAS PRODUZIDAS NO CURSO DO INQUÉRITO POLICIAL. FUNDAMENTAÇÃO INSUFICIENTE. CASO DOS AUTOS. IMPRONÚNCIA. ART. 414 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - CPP. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Conforme jurisprudência desta Corte, "O testemunho de 'ouvir dizer' (hearsay) não é suficiente para fundamentar a pronúncia. Precedentes da Quinta e Sexta Turmas" (AgRg no HC 668.407/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, DJe 27/10/2021). 2. "Conforme a orientação mais atual das duas Turmas integrantes da Terceira Seção deste STJ, a pronúncia não pode se fundamentar exclusivamente em elementos colhidos durante o inquérito policial, nos termos do art. 155 do CPP" (AgRg no HC 703.960/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, DJe 17/12/2021). 3. No caso, o Tribunal de Justiça afirma que as testemunhas ouvidas em juízo não presenciaram os fatos, apontando como testemunhas diretas apenas aquelas ouvidas durante a investigação policial. Assim, afastado o testemunho indireto (de ouvir dizer) prestado pelas testemunhas, não subsiste um único indício colhido na fase judicial que aponte para o investigado como o autor do crime de homicídio que lhe foi imputado, devendo ser impronunciado das imputações constantes na denúncia criminal, nos termos do art. 414 do CPP. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.940.104/AM, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 17/5/2022, DJe de 19/5/2022). AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO. PRONÚNCIA BASEADA, APENAS, EM DEPOIMENTOS COLHIDOS NA FASE POLICIAL. ILEGALIDADE. DEPOIMENTO EM JUÍZO DE "OUVI DIZER". RELATOS INDIRETOS. FUNDAMENTO INIDÔNEO PARA SUBMISSÃO DO ACUSADO AO JÚRI. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A sentença de pronúncia encerra a primeira etapa do procedimento de crimes de competência do Tribunal do Júri e constitui juízo positivo de admissibilidade da acusação, a dispensar, nesse momento processual, prova incontroversa de autoria do delito em toda sua complexidade normativa. 2. Não obstante, consoante recente orientação jurisprudencial desta Corte Superior, é ilegal a sentença de pronúncia baseada, exclusivamente, em informações coletadas na fase extrajudicial. 3. Ademais, "muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia baseada, exclusivamente, em testemunho indireto (por ouvir dizer) como prova idônea, de per si, para submeter alguém a julgamento pelo Tribunal Popular" (REsp 1.674.198/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, DJe 12/12/2017). 4. Na hipótese, a despronúncia dos acusados é medida que se impõe, tendo em vista que, desconsiderando os depoimentos colhidos ainda na fase investigativa, os quais não foram repetidos em Juízo, as únicas provas submetidas ao crivo do Juízo de primeiro grau são relatos de duas testemunhas que teriam "ouvido dizer" de outras pessoas sobre a suposta autoria delitiva, inexistindo fundamentos idôneos para a submissão dos acusados ao Tribunal do Júri. 5. Agravo regimental do Ministério Público Federal improvido. (AgRg no HC n. 644.971/RS, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 23/3/2021, DJe de 29/3/2021). AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. AUSÊNCIA DE LASTRO PROBATÓRIO PRODUZIDO EM JUÍZO. DESPRONÚNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. A Constituição Federal determinou ao Tribunal do Júri a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida e os delitos a eles conexos, conferindo-lhe a soberania de seus vereditos. 2. Entretanto, a fim de reduzir o erro judiciário (art. 5º, LXXV, CF), seja para absolver, seja para condenar, exige-se uma prévia instrução, sob o crivo do contraditório e com a garantia da ampla defesa, perante o juiz togado, com a finalidade de submeter a julgamento no Tribunal do Júri somente os casos em que se verifiquem a comprovação da materialidade e a existência de indícios suficientes de autoria, nos termos do art. 413, § 1º, do CPP, que encerra a primeira etapa do procedimento previsto no Código de Processo Penal. 3. Logo, embora a análise aprofundada das provas seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir a pronúncia do réu, dada a sua carga decisória, sem qualquer lastro probatório judicializado, fundamentada exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase inquisitorial, mormente quando isolados nos autos e até em oposição parcial ao que se produziu sob o contraditório judicial. 4. Na hipótese, observa-se que os únicos indícios que apontam os agravados como autores do homicídio consistem nas declarações de testemunhas em âmbito policial, posteriormente retratadas em juízo, e nos testemunhos indiretos de duas policiais, refutados pela fonte de prova originária. 5. É necessário ponderar a fragilidade da investigação policial apoiada apenas em depoimentos testemunhais, facilmente suscetíveis a mudanças de rumo causadas, eventualmente, por receio de represálias, mormente em casos envolvendo disputa de poder ou atos de vingança entre grupos rivais. As investigações precisam investir em outros meios probatórios que, independentemente de testemunhos ou de confissões, possam dar maior robustez à versão acusatória. 6. Agravo regimental não provido. (AgRg no HC n. 755.699/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 17/10/2023.)

Relevante observar também, que o acórdão reconhece, expressamente, a existência de diversas testemunhas, ouvidas em Juízo (é importante ressaltar), que afirmaram que o paciente estava trabalhando, entretanto, tal versão, segundo o Tribunal de origem, seria controversa nos autos, de modo que, a vista dessa controvérsia, [...] segue mantida a pronúncia.

Como se sabe, a partir do julgamento do REsp n. 2.091.647, sessão de 26/9/2023 (DJe 3/10/2023), a Sexta Turma deste Tribunal Superior considerou o princípio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia incompatível com o processo penal constitucional.

Segundo o Ministro Relator, Rogerio Schietti Cruz, referido princípio não tem amparo no ordenamento jurídico brasileiro:

O in dubio pro societate, "na verdade, não constitui princípio algum, tratando-se de critério que se mostra compatível com regimes de perfil autocrático que absurdamente preconizam, como acima referido, o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário (!?!?), em absoluta desconformidade com a presunção de inocência [...]" (Voto do Ministro Celso de Mello no ARE n. 1.067.392/AC, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 2/7/2020). Não pode o juiz, na pronúncia, "lavar as mãos" – tal qual Pôncio Pilatos – e invocar o "in dubio pro societate" como escusa para eximir-se de sua responsabilidade de filtrar adequadamente a causa, submetendo ao Tribunal popular acusações não fundadas em indícios sólidos e robustos de autoria delitiva. No julgamento do REsp n. 2.091.647, ficou assentado também: o standard probatório para a decisão de pronúncia, quanto à autoria e a participação, situa-se entre o da simples preponderância de provas incriminatórias sobre as absolutórias (mera probabilidade ou hipótese acusatória mais provável que a defensiva) – típico do recebimento da denúncia – e o da certeza além de qualquer dúvida razoável (BARD ou outro standard que se tenha por equivalente) – necessário somente para a condenação. Exige-se para a pronúncia, portanto, elevada probabilidade de que o réu seja autor ou partícipe do delito a ele imputado (grifamos).

Verifica-se, assim, que a despronúncia é medida que se impõe, tendo em vista que a pronúncia nem sequer especificou, minimamente, quais provas a respaldavam, e o ato coator apenas menciona elementos colhidos na fase investigativa e a existência de uma suposta controvérsia, não havendo, portanto, fundamentos idôneos para a submissão do paciente ao Tribunal do Júri, restando configurado constrangimento ilegal apto à concessão da ordem de ofício. Ante o exposto, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem de ofício para despronunciar o paciente, haja vista a falta de mínimas provas judicializadas da autoria dos fatos imputados. Comunique-se à origem, com urgência, para cumprimento, considerando que há júri designado para o dia 9 de maio de 2025. Publique-se. Intimem-se.

Relator

OTÁVIO DE ALMEIDA TOLEDO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP)

(STJ - HABEAS CORPUS Nº 950166 - CE (2024/0373463-9) RELATOR : MINISTRO OTÁVIO DE ALMEIDA TOLEDO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP), Publicação no DJEN/CNJ de 18/02/2025)

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