STJ Fev25 - Penal Militar - Nulidade Absoluta do Processo Por Incompetência da Justiça Militar - Condenação Anulada :"(i)Justiça Militar não possui competência para julgar crimes comuns envolvendo civis - (ii) Réu Não Estava em Serviço - (iii) Réu Processado pela Justiça Comum pelos Mesmos Fatos"

 Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de JOAO PXXXXXXXXXXcontra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação Criminal n. 800813-51.2022.9.26.0030.

Consta dos autos que, em 19/12/2022, o Conselho Permanente de Justiça da 4ª Auditoria da Justiça Militar julgou procedente a denúncia para condenar o paciente, policial militar, à pena de 29 (vinte e nove) anos, 5 (cinco) meses e 16 (dezesseis) dias de reclusão, nos termos do art. 242, parágrafo 3º, c/c o inciso II do parágrafo 2º do mesmo dispositivo legal e da alínea “m” do inciso II do art. 70 do Código Penal Militar, em regime inicialmente fechado.

Na mesma oportunidade, com base no art. 527 do Código de Processo Penal Militar, o Colegiado reconheceu o direito do réu de apelar em liberdade, em que pese estar preso por decisão da Justiça Comum, pois assim respondeu ao processo (e-STJ fls. 39/81).

Interposta apelação, o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo rejeitou a preliminar e, no mérito, negou provimento ao recurso defensivo, em acórdão assim ementado (e-STJ fls. 10/12):

POLICIAL MILITAR – Denúncia ofertada pela prática do crime de latrocínio – Julgamento procedente – RECURSO DE APELAÇÃO ofertado pelo réu – Preliminar de incompetência do juízo castrense para processamento da demanda – Desmembramento da demanda entre os juízos comum e criminal que acarretou prejuízo ao apelante, pois o julgamento conjunto culminaria em pena mais benéfica, nos termos do art. 70 do CP – Ocorrência de bis in idem , uma vez que foi processado pelos mesmos fatos perante a Justiça Comum – No mérito, alega que a versão dos fatos a embasar a condenação funda-se exclusivamente no testemunho de familiares da vítima, além de ser inverossímil – Havendo dúvida razoável quanto à ocorrência da tentativa de assalto, deve aplicar-se o princípio do in dubio pro reo – Subsidiariamente, caso reste mantida a condenação, postula revisão na dosimetria da pena aplicada – Não deve incidir a circunstância judicial negativa de maus antecedentes, pois a condenação penal que ensejou sua aplicação transitou em julgado após oferta de denúncia nestes autos – Igualmente inaplicável a circunstância relativa à maior intensidade do dolo, pois o apelante tinha para si que agia em legítima defesa – Contrarrazões ministeriais negando a ocorrência de bis in idem, pois o crime ora perseguido não é o mesmo que foi julgado pela Justiça Comum – O fato de a maioria das vítimas ser constituída de civis não implica reconhecer vis attractiva do Juízo comum sobre o processamento da demanda – Recurso que não comporta provimento – Preliminar de incompetência afastada – Crime inter milites, i. e., perpetrado por militar contra militar – Fixação da competência para processamento da demanda por critério ratione personae, nos termos do art. 9º, inciso II, alínea “a”, do CPM – Condição de natureza objetiva, de modo que desnecessário é que o agente tivesse prévio conhecimento da condição de militar da vítima – Disposição que busca preservar o funcionamento da força policial e a integridade do seu efetivo – Inocorrência de bis in idem – Os crimes processados perante a Justiça Comum esta Especializada são distintos em função das vítimas contra quem foram cometidos – No mérito, o recurso não comporta acolhida – O fato de as pessoas ouvidas na instrução do processo não basta a, por si só, infirmar o testemunho que prestaram – Não é crível que todas as testemunhas que corroboraram a versão ofertada na denúncia tenham-se mancomunado para incriminá-lo – Testemunhos unânimes quanto aos fatos essenciais da imputação e mantidos sem alterações desde a data dos fatos até o momento em que prestados perante o Juízo – Elementos dos testemunhos que corroboram sua veracidade, ao contrário do que sustenta a tese defensiva – Testemunhas que chegaram ao local do crime imediatamente após sua ocorrência que corroboraram a versão ofertada pela Acusação e pelas testemunhas acusatórias – Não é crível que as testemunhas, após o abalo moral causado pela morte da vítima, elaborassem versão falaciosa dos fatos por todas sustentada e alterassem o estado de coisas no local do crime para corroborá-la – Ausência de indícios de que o local do crime tenha sido alterado – Diminutas divergências entre os relatos, longe de mitigar sua força, robustecem-nos, quando há concordância nos pontos essenciais e nas circunstâncias decisivas do fato – Elementos circunstanciais relativos à conduta do apelante antes, durante e depois do crime não possuem relevância, dada a individualidade do comportamento humano, e não mitigam o relato testemunhal – O apelante, à diferença das testemunhas, alterou em pontos essenciais sua versão dos fatos ao longo da marcha investigativa e processual – Versão ofertada perante o Juízo não se mostra crível – Concurso criminoso evidente, comprovado pela divisão de tarefas existente na ação criminosa, além de ser desnecessária a demonstração do prévio ajuste de vontade entre os agentes – Quanto ao pedido subsidiário, é falsa a alegação de que a condenação criminal a ensejar a incidência da circunstância negativa de maus antecedentes transitou em julgado após oferta da denúncia perante o Juízo Militar – Condenações transitadas em julgado após a prática delitiva podem ser consideradas como maus antecedentes para agravar a reprimenda – Impossível reconhecer, simultaneamente, que o apelante cometeu latrocínio, mas que pensava agir sob o pálio de excludente de ilicitude – Intensidade do dolo caracterizada, tendo em vista o número de disparos efetuados contra a vítima – Apelante beneficiado por erro aritmético na sentença recorrida – Divergência entre os julgadores no que toca à quantidade da pena, tendo prevalecido a opinião intermédia - APELO DESPROVIDO – Unânime.
Opostos embargos infringentes e de nulidade, considerando a existência de divergência apenas quanto à reprimenda imposta, estes foram desprovidos pela Corte de origem, em acórdão assim ementado (e-STJ fl. 112): POLICIAL MILITAR – EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE OPOSTOS COM BASE EM VOTO VENCIDO PROFERIDO NO JULGAMENTO DE RECURSO DE APELAÇÃO – VOTO INTERMEDIÁRIO QUE PREVALECEU NO JULGAMENTO E QUE DEVE SER MANTIDO – EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE – CÁLCULO MEDIANTE O INTERVALO ENTRE AS PENAS MÍNIMA E MÁXIMA COMINADAS AO DELITO - RECURSO QUE NÃO COMPORTA PROVIMENTO. A dosimetria da pena é estabelecida mediante um juízo de discricionariedade do julgador, atrelado às particularidades fáticas do caso concreto e subjetivas do agente. Não se revela passível de revisão a pena fixada tomando-se o parâmetro de 1/8 de aumento - calculado sobre o intervalo entre as penas mínima e máxima cominadas ao delito - para cada circunstância judicial desfavorável.

Daí o presente habeas corpus substitutivo de recurso próprio, no qual a defesa sustenta a incompetência da Justiça Militar Estadual para o processamento e julgamento do feito, ante a ocorrência de bis in idem, uma vez que o paciente teria sido processado pelos mesmos fatos perante a Justiça Comum.

Segundo a inicial, "A duplicidade de processos e condenações decorre de um desmembramento inadequado dos fatos, que não considerou que as vítimas eram majoritariamente civis e que o suposto crime de roubo teria sido praticado contra um grupo, sem que o paciente tivesse conhecimento da condição de policial militar de uma das vítimas. A Justiça Militar, portanto, não deveria ter competência para julgar o caso, uma vez que a Justiça Comum já havia processado e condenado o paciente pelos mesmos fatos, em decisão que ainda não transitou em julgado, mantendo intacta a presunção de inocência do réu" (e-STJ fl. 5).

Ademais, aduz que a Justiça Militar não possui competência para julgar crimes comuns envolvendo civis, especialmente quando a maioria das vítimas não possui vínculo militar.

Nesse viés, aduz que o evento envolveu múltiplas vítimas civis e a única vítima militar, JXXXXX, não era identificável como tal no momento dos fatos, pois estava em trajes civis.

Assim, entende que a competência para julgar o caso deveria ter sido exclusiva da Justiça Comum Estadual, que já havia proferido uma condenação pelos mesmos fatos, que ainda está em fase de recurso. Assim, argumenta que "a duplicidade de jurisdições gera insegurança jurídica e prejudica o direito de defesa do paciente, que se vê obrigado a enfrentar dois processos simultâneos e a cumprir penas distintas pelo mesmo conjunto de fatos. A competência concorrente entre as jurisdições deve ser exercida de maneira a evitar conflitos e garantir a aplicação uniforme da justiça, o que não ocorreu no presente caso, justificando a revisão da condenação pela Justiça Militar" (e-STJ fl. 6).

Subsidiariamente, pugna pelo reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, nos moldes do artigo 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal. Ao final, requer, liminarmente e no mérito, seja concedida a ordem para que: “(a) haja o conhecimento e o provimento do presente habeas corpus, para anular a condenação imposta pela Justiça Militar, em respeito ao princípio do ne bis in idem; (b) Subsidiariamente, a revisão da dosimetria da pena, considerando-se a aplicação do concurso formal de crimes, nos termos do artigo 70 do Código Penal Brasileiro e (c) seja reformada a r. decisão impugnada, aplicando o instituto da confissão qualificada, seja reduzido em 1/6 a pena do PACIENTE” (e-STJ fl. 8).

O pedido liminar foi indeferido (e-STJ fls. 120/123). Suficientemente instruído o feito, foram dispensadas informações às instâncias ordinárias.

O Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem, a fim de que seja anulada a condenação do paciente, em parecer assim ementado (e-STJ fl. 129):

EMENTA: Habeas corpus substitutivo de recurso especial. Crime de latrocínio praticado por militar contra militar. Circunstância que, por si só, não atrai a competência da Justiça castrense. Flagrante ilegalidade. Delito praticado em via pública e não relacionado ao exercício funcional. Competência da Justiça Comum. Precedentes dessa Eg. Corte. Nulidade da condenação. Medida que se impõe. Prejudicado os demais temas. Parecer pela concessão do writ.

É o relatório. Decido.

O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. Nesse sentido, confiram-se os seguintes julgados, exemplificativos dessa nova orientação das Cortes Superiores do País: HC n. 320.818/SP, Relator Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado em 21/5/2015, DJe de 27/5/2015, e STF, HC n. 113.890/SP, Relatora Ministra ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 3/12/2013, DJe de 28/2/2014. Mais recentemente: STF, HC n. 147.210-AgR, Relator Ministro EDSON FACHIN, DJe de 20/2/2020; HC n. 180.365-AgR, Relatora Ministra ROSA WEBER, DJe de 27/3/2020; HC n. 170.180-AgR, Relatora Ministra CARMEM LÚCIA, DJe de 3/6/2020; HC n. 169.174-AgR, Relatora Ministra ROSA WEBER, DJe de 11/11/2019; HC n. 172.308-AgR, Relator Ministro LUIZ FUX, DJe de 17/9/2019; HC n. 174.184-AgRg, Relator Ministro LUIZ FUX, DJe de 25/10/2019. STJ: HC n. 563.063-SP, Relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Terceira Seção, julgado em 10/6/2020; HC n. 323.409/RJ, Relator p/ acórdão Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 8/3/2018; e HC n. 381.248/MG, Relator p/ acórdão Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Terceira Seção, julgado em 22/2/2018, DJe de 3/4/2018.

Assim, de início, incabível o presente habeas corpus substitutivo de recurso. Todavia, em homenagem ao princípio da ampla defesa, passa-se ao exame da insurgência, para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal passível de ser sanado pela concessão da ordem, de ofício.

Rememorando o caso dos autos, verifica-se que o paciente - policial militar - foi denunciado perante a Justiça Militar do Estado de São Paulo por ter, no dia 23/8/2020, praticado o crime previsto no art. 242, § 3º, do Código Penal Militar (latrocínio), tendo a ação criminosa culminado na morte do policial militar AXXXXXXXi, com quem agia em unidade de desígnios, e da vítima JoXXXXXXXXX, também policial militar.

Nesse viés, colhe-se da denúncia que (e-STJ fls. 12/13):

Consta dos inclusos autos de inquérito policial militar que no dia 23 de agosto de 2020, por volta das 05h30min., na Avenida das Nações, altura do nº 716, Bairro Taboão — Diadema/SP, o Cb PM 143616-3 JOÃO PAULO DE ARAÚJO SILVA (qual. fls. 33), com identidade de desígnios e prévio acerto de vontades com o também Policial Militar André Monteiro Malfati (falecido), tentou subtrair para si mediante violência contra pessoas, exercida com o emprego de arma de fogo, coisa alheia móvel, vindo, para tanto, a atingir o Sd PM Josimar Lima da Silva que, em razão da violência suportada, faleceu no local . Segundo se apurou, por volta das 05h, o denunciado Araújo e o falecido Malfati, após saírem de uma ‘balada’”, pegaram uma carona e foram deixados pelo civil Nilo Henrique Colita próximos da Avenida das Nações. Já desembarcados do veículo que os conduzia, os referidos militares, de folga e em trajes civis, seguiram pela Avenida das Nações e visualizaram alguns civis parados em frente à residência de nº 716, juntos com a vítima fatal Josimar Lima e sua namorada Laisy dos Santos Lopes Ferreira, todos participantes de uma festa de aniversário que ocorria no local. Ato contínuo, o Sd PM Malfati mediante o emprego de arma de fogo e agindo com unidade de desígnios e propósitos, com o ora denunciado, anunciou o assalto bradando ‘perdeu! perdeu!’; ‘ passa tudo o que tem’; ‘levanta a camisa e passa tudo’., Diante da ação criminosa perpetrada pelo denunciado e seu comparsa, o Sd PM Josimar Lima se afastou do grupo de civis, sacou o seu armamento e efetuou disparos na direção do anunciante ladravaz, atingindo-o por 05 (cinco) vezes na região toráxica (fls. 246/251). O denunciado, por sua vez, ao se deparar com a reação da vítima e visando assegurar a impunidade do crime, na posse de sua pistola Glock, nº BMZX608, de pronto, sacou o seu armamento e atirou na direção do militar e de sua companheira Laisy, atingindo Josimar Lima por 07 (sete) vezes, bem como a civil Laisy. Em razão dos disparos efetuados pelo Cb PM ARAÚJO, o PM Josimar Lima experimentou lesões corporais que foram a causa eficiente de sua morte, conforme atestou o laudo necroscópico de fls. 252/258. Laisy foi hospitalizada com perda dos movimentos dos membros inferiores (fls. 66). Diante do exposto, denuncio o Cb PM 143616-3 JOÃO PAULO DE ARAÚJO SILVA como incurso no artigo 242, § 3º do Código Penal Militar. Requeiro que, registrada e autuada esta, seja instaurado o devido processo criminal, citando o denunciado para interrogatório, ouvindo-se as testemunhas abaixo arroladas, conforme o rito estabelecido nos artigos 384 e seguintes do Código de Processo Penal Militar, prosseguindo-se até final decisão condenatória.

Recebida a denúncia e encerrada a instrução criminal, o Conselho Permanente de Justiça da 4ª Auditoria da Justiça Militar julgou procedente a denúncia para condenar o paciente à pena de 29 (vinte e nove) anos, 5 (cinco) meses e 16 (dezesseis) dias de reclusão, nos termos do art. 242, parágrafo 3º, c/c o inciso II do parágrafo 2º do mesmo dispositivo legal e da alínea “m” do inciso II do art. 70 do CPM, em regime inicialmente fechado (e-STJ fls. 39/81).

Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo afastou a tese de incompetência da Justiça Castrense para o processamento e julgamento da demanda, sob os seguintes fundamentos (e-STJ fls. 16/17):

[...] I – MATÉRIA PRELIMINAR Em suas razões de recurso, sustenta o apelante duas preliminares, a saber: a incompetência desta Especializada para processamento da demanda e a ocorrência de bis in idem, uma vez que teria sido processado perante o Juízo comum pelos mesmos fatos. I.1 – DA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO PARA PROCESSAMENTO DA DEMANDA Sustenta inicialmente a impossibilidade de processamento do crime praticado pelo apelante pela Justiça Militar do Estado nos seguintes termos: “O fato não poderia ter sido desmembrado em razão da condição da vítima (militar) e do autor, ora recorrente, visto que elas não se conheciam, isto é, o recorrente sequer tinha conhecimento de que a vítima era militar da ativa, portanto não há o que se falar em aplicação ao Art. 9º inciso II alínea ‘a’ do Código Penal Militar.” Aduz que o desmembramento foi-lhe prejudicial, pois, se a Justiça Militar houvesse declinado da competência, teria imposta contra si uma única sentença, aplicando-se à dosimetria da pena o art. 70 do Código Penal. Sem razão o apelante. Com efeito, estamos a tratar do que a doutrina convencionou chamar de crime inter milites, i. e., delito perpetrado por militar contra militar. Em casos como este, a fixação da competência para processamento se dá pelo critério ratione personae (art. 9º, inciso II, alínea “a” do Código Penal Militar). Essa condição tem natureza objetiva, o que afasta a tese defensiva de que seria necessário o prévio conhecimento da condição de militar da ativa pelo agente. E assim o é porque o enquadramento penal insculpido na aludida alínea visa proteger o funcionamento da força policial que, como de sabença, por suas imprescindíveis funções para a manutenção da lei e ordem na sociedade, deve sempre contar com seu efetivo completo para pronto emprego. O desfalque de um dos seus membros leva à fragilização desse funcionamento, com as nefastas consequências que todos sabemos e em alguns Estados da Federação foram vivenciadas pela população local, daí a razão desse crime ser considerado militar. A integralidade de seu efetivo é tão importante que o Legislador, visando coibir a prática do crime de deserção, que sabidamente embaraça o contingente, vetou a concessão de suspensão condicional da pena para aqueles se incidirem nesse tipo penal. Sendo assim, tratando-se de crime militar, a competência para seu conhecimento e julgamento é desta Especializada, pelo que afasto a preliminar arguida.

Com efeito, verifica-se, dentro dos estreitos limites do habeas corpus, que o delito processado perante a Justiça Militar Estadual não apresenta qualquer caráter de interesse militar, pois, apesar de o paciente e vítima serem policiais militares da ativa à época, nenhum deles estava em serviço durante os fatos e muito menos o delito apurado teria sido praticado em local sujeito à administração militar, não se atentando os fatos contra a hierarquia, disciplina e a instituição militar.

Ora, segundo a denúncia, os fatos ocorreram na saída de uma casa de shows, por volta das 05h, quando o paciente e o também policial militar AndrXXXXXXX (falecido), ambos de folga e em trajes civis, visualizaram um grupo de pessoas na rua, todos participantes de uma festa de aniversário que ocorria no local. Nesse momento, os acusados, mediante o emprego de arma de fogo e agindo com unidade de desígnios e propósitos, anunciaram um assalto, motivo pelo qual a vítima, JoXXXXXXXXa (policial militar que estava de folga), sacou o seu armamento e efetuou disparos na direção de Malfati.

O paciente, por sua vez, ao se deparar com a reação da vítima e visando assegurar a impunidade do crime, atirou na direção de Josimar, por 7 (sete) vezes, que morreu em razão dos seus ferimentos.

Nesse panorama, destaca-se que o entendimento manifestado no acórdão impugnado e o consequente processamento da ação penal na Justiça Militar, com superveniente condenação, causou ao paciente flagrante constrangimento ilegal.

A propósito, conforme bem apontado pelo representante do Ministério Público Federal, "o simples fato de delito ter sido praticado por militar contra militar não atrai, por si só, a competência da Justiça castrense para o julgamento e processamento do delito de latrocínio, praticado em via pública e, também, que não guarda qualquer relação com a função militar" (e-STJ fl. 131).

Dessa forma, o processo é nulo, por incompetência da Justiça Militar, o que enseja a anulação de todos os atos decisórios, com a consequente remessa do feito para a Justiça Comum Estadual. Em semelhantes hipóteses à situação dos autos, destaco os seguintes julgados desta Corte Superior:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRETENSÃO INFRINGENTE. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. HOMICÍDIO QUALIFICADO. AUTOR E VÍTIMA POLICIAIS MILITARES DA ATIVA À ÉPOCA DOS FATOS. DELITO NÃO RELACIONADO AO EXERCÍCIO FUNCIONAL. LOCAL NÃO SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR. JUSTIÇA CASTRENSE. INCOMPETÊNCIA. 1. Embargos declaratórios com nítido intuito infringente devem ser recebidos como agravo regimental, em homenagem ao princípio da fungibilidade das formas processuais. 2. "Nos termos da orientação sedimentada na Terceira Seção desta Corte, só é crime militar, na forma do art. 9º, II, a, do Código Penal Militar, o delito perpetrado por militar da ativa, em serviço, ou quando tenha se prevalecido de sua função para a prática do crime. Interpretação consentânea com a jurisprudência da Suprema Corte." (CC n. 170.201/PI, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 11/3/2020, DJe de 17/3/2020.) 3. Na espécie, ao confirmar a competência do Tribunal do Júri para processamento e julgamento do feito, rechaçando a competência da J ustiça militar, a Corte de origem considerou que "o réu e a vítima na ocasião dos fatos eram policiais militares, contudo, se encontravam de folga quando da ocorrência do delito de homicídio, inclusive, o crime ocorreu em um bar, não se atentando os fatos contra a hierarquia, disciplina e a instituição militar", não havendo ilegalidade a ser sanada. 4. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento. (EDcl no RHC n. 176.108/GO, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do Tjdft), Sexta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 28/8/2023.) - negritei. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. TORTURA MEDIANTE SEQUESTRO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE POR INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. INOCORRÊNCIA. CRIMES PRATICADOS VISANDO ATENDER INTERESSES EXCLUSIVAMENTE PESSOAIS, NÃO RELACIONADOS AO EXERCÍCIO FUNCIONAL E EM LOCAL FORA DA ÁREA DE ATUAÇÃO DOS POLICIAIS MILITARES. CRIME COMUM. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA CASTRENSE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal - STF e do próprio Superior Tribunal de Justiça - STJ. Contudo, considerando as alegações expostas na inicial, razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal que justifique a concessão da ordem de ofício. 2. O Tribunal a quo entendeu não ser o caso da competência da Justiça Castrense por não se tratar de crimes praticados pelos acusados quando estavam exercendo funções relacionadas a seus cargos na Polícia Militar, mas por estarem agindo clandestinamente em função de interesses exclusivamente pessoais. Esse entendimento decorreu do fato de que os acusados praticaram os delitos fora de sua área de jurisdição e, sem o registro de qualquer diligência ou procedimento de investigação, que inclusive não é atribuição da Polícia Militar, mas sim de competência da Polícia Judiciária. Restando caracterizado que os acusados não praticaram os crimes em serviço ou atuando na função de policiais militares, mas visando tão somente a satisfação de interesses exclusivamente pessoais, não há que se falar em competência da Justiça Militar. Precedentes. 3. Habeas corpus não conhecido. (HC n. 509.078/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 10/9/2019.) - negritei. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INADEQUAÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. AUTOR DO DELITO E VÍTIMA POLICIAIS MILITARES DA ATIVA. CONDUTA DELITIVA NÃO RELACIONADA AO EXERCÍCIO FUNCIONAL E EM LOCAL NÃO SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR. CRIME COMUM. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA CASTRENSE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. O Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento no sentido de que "o cometimento de delito por agente militar contra vítima militar somente desafia a competência da Justiça Castrense nos casos em que houver vínculo direto com o desempenho da atividade militar "(HC 135.675/MG, Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe 15/3/2017). 3. Na hipótese, verifica-se que o paciente e a vítima, policiais militares, no momento do homicídio, estavam fora de situação de atividade, em local não sujeito à administração militar, tendo sido o delito cometido por motivos alheios às funções castrenses, o que afasta a competência da Justiça Especializada, mesmo que tenha sido utilizada a arma da corporação. 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para, reconhecendo a competência da Justiça Comum para o processamento do feito, anular o processo desde o oferecimento da denúncia, com o consequente envio dos autos para a Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Joinville/SC. (HC n. 417.158/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 8/2/2018, DJe de 16/2/2018.) - negritei.

Por fim, não há falar em violação ao princípio do no bis in idem, visto que, conforme consignado pela Corte de origem, apesar de ser a mesma a ação criminosa, ela foi perpetrada contra vítimas diversas, tendo ocorrido o desmembramento do feito para a Justiça Comum em face das vítimas civis, ao passo que, em relação à vítima militar, houve o julgamento perante a Justiça Castrense.

Confira-se, nesse sentido, a seguinte passagem do voto condutor do acórdão impugnado (e-STJ fls. 17/18):

I.2 – DA OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM Igualmente não merece acolhida a alegação de que o apelante teria sido processado ante a Justiça Comum e a Militar pelos mesmos fatos, vulnerando o princípio do no bis in idem. A própria Defesa nos traz quadro comparativo onde se vê, com clareza solar, que apesar de ser a mesma a ação criminosa, ela foi perpetrada contra vítimas diversas, sendo que pela circunstância de uma delas ser militar da ativa, os fatos estão sendo processados por esta Justiça Castrense, sem prejuízo da responsabilização do apelante perante a Justiça Comum em face das vítimas civis. Aqui, o apelante está sendo processado porque, “... com Identidade de desígnios e prévia acerto de vontades com o também Policial Militar André Monteiro Malfati (falecido), tentou subtrair para si, mediante violência contra pessoas exercida com o emprego de arma de fogo, coisa alheia móvel, vindo, para tanto, a atingir o Sd PM Josimar Lima da Silva que, em razão da violência suportada, faleceu no local” (g. n.). Perante a Justiça Comum responde a processo-crime porque “... agindo em concurso e com unidade de desígnios com o Policial Militar André Monteiro Malfati (morto durante o crime), por seis vezes, mediante violência real, exercida com disparo de arma de fogo contra as vítimas Douglas Henrique Vitorio, Lucas Henrique de Sousa Borges, Luis Felipe de Sousa Borges, Izabelle Cristine Bezerra Vitorio, Lucas Rodrigo Barbosa e Laisy dos Santos Lopes Ferreira , que resultou em lesão corporal de natureza grave nesta última (cf. laudo de exame de corpo de delito a ser oportunamente juntado), tentaram subtrair bens e valores pertencentes a elas.)” (g. n.). Ora, a simples leitura das denúncias é suficiente para afastar a tese de que são fatos iguais quando existem vítimas diferentes.

Ante o exposto, não conheço do habeas corpus. Contudo, concedo a ordem, de ofício, para declarar a incompetência da Justiça Militar e, por conseguinte, anular a ação penal n. 0800813-51.2022.9.26.0030 desde o recebimento da denúncia, determinando a remessa dos autos à Justiça Comum Estadual de São Paulo. Prejudicados, portanto, os pleitos relacionados à dosimetria da pena. Comunique-se, com urgência, ao Tribunal de origem e ao Juízo de primeiro grau, encaminhando-lhes o inteiro teor desta decisão. Cientifique-se o Ministério Público Federal. Intimem-se.

Relator

REYNALDO SOARES DA FONSECA

(STJ - HABEAS CORPUS Nº 961450 - SP (2024/0436292-5) RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA, Publicação no DJEN/CNJ de 14/02/2025)

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