STJ Abr25 - Dupla Condenação pelo Mesmo Contexto de Tráfico de Drogas Anulada - Bis In Idem - Concurso Material Afastado :"I. Tráfico – crime de ação múltipla - pratica de mais de uma ação típica, responderá por crime único, em razão do princípio da alternatividade"

  Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)

DECISÃO 

ERIZELDO XXXXXX alega sofrer constrangimento ilegal em seu direito a locomoção, em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul na Revisão Criminal n. 70064538473. A defesa alega, em síntese, que o réu "foi condenado pelo mesmo fato, duas vezes, uma na Justiça Estadual, e outra na Justiça Federal" (fl. 3). 

Isso porque "Em que pese se tratar de duas apreensões de drogas distintas, uma no veículo, e a outra na residência do réu, não há como condená-lo duas vezes pelo delito de tráfico de drogas" (fl. 3), pois "o delito de tráfico de drogas pelo qual o paciente foi denunciado e, posteriormente, condenado perante a Justiça Federal abrangeu todos os atos ocorridos até o dia 29 de maio de 2008" (fl. 4). 

Requer, assim, seja anulada a condenação imposta ao réu pela Justiça Estadual, "tendo em vista o flagrante bis in idem" (fl. 5). Indeferida a liminar e prestadas as informações, o Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem. Decido.

I. Tráfico – crime de ação múltipla 

O delito previsto no art. 33, caput, da Lei de Drogas – "Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar" – é crime de ação múltipla (ou de conteúdo variado). 

Assim, caso o agente, dentro de um mesmo contexto fático e sucessivo, pratique mais de uma ação típica, responderá por crime único, em razão do princípio da alternatividade. Vale dizer, a realização de uma ou mais dessas condutas, sem interrupção e em um mesmo contexto fático, não dá causa a várias práticas delituosas, mas sim a um único crime. Confiram-se, a propósito, os ensinamentos da doutrina acerca do delito em questão:

[...] é crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. Assim, mesmo que o agente pratique, em um mesmo contexto fático, mais de uma ação típica, responderá por crime único, haja vista o princípio da alternatividade, devendo, no entanto, a pluralidade de verbos efetivamente praticados ser levada em consideração pelo juiz por ocasião da fixação da pena (art. 59, caput, do CP). Pouco importa que o autor tenha importado determinada substância entorpecente, transportado-a para determinado lugar onde foi mantida em depósito para depois ser vendida. Terá praticado um crime único, por força da incidência do princípio da alternatividade. (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial comentada. 2. ed. JusPodium, 2014, p. 725). [...] por vezes, o tipo penal abriga várias modalidades de conduta, em alguns casos fases do mesmo fato criminoso, caracterizandose o que se denomina de crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. Nesses casos, o agente responderá apenas por um delito, embora pratique duas ou mais condutas típicas. (MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: Parte especial, arts. 121 a 234-B do CP. 32 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 8).

II. Contexto dos autos

Depreende-se dos autos que o réu começou a ser investigado por tráfico de drogas supostamente praticado na comarca de Encruzilhada do Sul/RS, depois de a autoridade policial receber diversas denúncias anônimas sobre o comércio ilícito por ele praticado. 

A fim investigar as denúncias, o Juízo singular daquela comarca autorizou a quebra do sigilo telefônico do réu (processo n. 2008.71.19.000731-2, apenso aos autos n. 2008.71.19.000730-0/RS, em trâmite na Vara Federal de Cachoeira do Sul), mediante a qual as suspeitas foram confirmadas e ficou comprovada a traficância do réu, "que vendia maconha para seus clientes após tratativas feitas por meio de seu telefone celular" (fl. 1.106). 

A partir das interceptações autorizadas pelo Juízo federal, consoante descrito no depoimento do policial civil prestado na ação que tramitou na justiça estadual, "constataram o planejamento da aquisição de uma mercadoria em Porto Alegre e, com essa informação, foi realizado um monitoramento, gerando a abordagem do veículo em que trafegava o acusado" (fl. 968). 

Ou seja, a operação policial, montada junto ao posto da Polícia Rodoviária Federal da BR 290, no município de Pantano Grande/RS, por onde o acusado passaria para retornar a sua cidade, só aconteceu após as informações obtidas nas interceptações autorizadas pelo Juízo federal. Assim, ao ser abordado no posto policial, em 28/2/2008, constatou-se que o réu transportava 130 g de maconha, o que deu ensejo à sua prisão em flagrante, a qual serviu de suporte para sua condenação nos autos que tramitou na 1ª Vara da comarca de Rio Pardo/RS – processo n. 024/2.08.0000587-3. 

Após o flagrante, as interceptações telefônicas continuaram sendo realizadas pelo Juízo federal, e estas apontaram para a guarda de drogas, armas e medicamentos na residência do acusado e em sua banca de camelô. Nesse contexto, autorizou-se a busca e apreensão em referidos locais, tendo sido cumprida as diligências em 29/2/2008 (dia posterior ao flagrante) e encontrado o material ilícito armazenado pelo réu: 30 g de maconha, 16 cartuchos de arma de fogo calibre .32, diversos medicamentos vendidos ilicitamente pelo réu, mercadorias importadas clandestinamente do Paraguai, além de CDs e DVDs com violação de direito autoral.

 Esses produtos ilícitos foram usados como prova da materialidade delitiva para a condenação na justiça federal (autos n. 2008.71.19.000730-0/RS). Pela atenta leitura dos autos, observo que o mandado de busca e apreensão só foi autorizado após a prisão em flagrante do réu que ocorreu no dia anterior.

 Nota-se, portanto, que o flagrante ocorreu em 28/5/2008, às 18h40, e, no dia 29/5/2008, às 15h22, foi cumprido o mandado de busca na casa do acusado.

 Ou seja, segundo a denúncia oferecida ao Juiz da Vara Federal de Cachoeira do Sul, após a prisão em flagrante do réu, a polícia deu continuidade às interceptações telefônicas e, por isso, conseguiu provas de que o acusado guardava drogas em sua residência e em sua banca de camelô. 

Assim, autorizada judicialmente a busca, foram apreendidas maconha na casa do paciente e, em seu local de trabalho, medicamentos, armas e munições. Dessa forma, pela narrativa dos autos, conquanto as apreensões de drogas hajam sido realizadas em dias diferentes (apesar de sucessivos), entendo que os entorpecentes apreendidos na operação policial montada junto ao posto da Polícia Rodoviária Federal são, na verdade, mero desdobramento da investigação pretérita já em curso na justiça federal, que ensejou uma condenação também por outros delitos, entre eles o tráfico de drogas cometido até 29/5/2008, conforme a denúncia.

 Assim, considero que o paciente praticou, na verdade, um único crime de tráfico de drogas – que, equivocadamente, ensejou a instauração de dois inquéritos policiais distintos: um, por meio de portaria; outro, por auto de prisão em flagrante. Ademais, esclareço que o acusado foi condenado em ambos os processos e a preliminar de litispendência foi afastada pelo Tribunal Regional Federal ao julgar a apelação defensiva. 

Na ocasião, aquela Corte entendeu o seguinte (fl. 1.150):

Ainda em sede de preliminar, ressalto que a Ação Penal n. 024/2. 08.0000587-3, em trâmite na Justiça Estadual do Rio Grande do Sul, na qual foi prolatada sentença condenatória em 25/05/2010 não versa sobre os mesmos fatos delituosos em apuração no presente feito. A referida condenação pelo crime de tráfico de drogas teve como fato gerador o transporte de 130g da substância entorpecente cannabis sativa, no interior do veículo Ford Focus, placas INS3139, localizado no km 212 da BR 290, no munícipio de Pântano Grande/RS. Considerando que nos presentes autos cuida-se da apreensão de cannabis sativa na banca de camelô e na residência do apelante, situadas em Encruzilhada do Sul/RS, não há falar em duplicidade de condenações pelos mesmos fatos.

Desse modo, pela simples análise do contexto fático delineado pelas instâncias ordinárias – sem, portanto, o revolvimento do acervo fático-probatório amealhado aos autos –, verifico, claramente, que o réu praticou, no mesmo contexto fático, mais de uma ação típica (transportar e ter em depósito) e deve, assim, responder por crime único, conforme o princípio da alternatividade.

 Por fim, reitero que o flagrante (e a condenação na justiça estadual) só foi possível graças à investigação realizada na justiça federal, que autorizou a quebra de sigilo telefônico; de igual forma, o mandado de busca e apreensão expedido na justiça federal teve como substrato o flagrante realizado no dia anterior. Ademais, a apreensão de material ilícito na casa e na banca de camelô do réu se deu poucas horas depois de sua prisão em flagrante por tráfico.

III. Dispositivo À vista do exposto, concedo a ordem, para absolver o paciente, nos termos do art. 386, III, do CPP, da condenação proferida na ação penal que tramitou perante a justiça estadual – Processo n. 024/2.08.0000587-3, Vara Criminal da Comarca de Rio Pardo – RS. Comunique-se, com urgência, o inteiro teor dessa decisão às instâncias ordinárias. Publique-se e intime-se. Brasília (DF), 08 de abril de 2025.

(STJ -  HABEAS CORPUS Nº 333648 - RS (2015/0204367-6) RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ,  Publicação no DJEN/CNJ de 10/04/2025)

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