STJ Abr25 - Injúria Racial - Absolvição - Crime que Necessita da Análise do Contexto, Não Apenas das Palavras Proferidas :"Pessoa Negra falando para Outro Negro - contexto de notório antagonismo político, e que não havia ânimo em ofendê-la em razão da cor da sua pele"
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO DAVIDXXXXXXXXXXagravou da decisão monocrática da Presidência que indeferiu liminarmente o habeas corpus impetrado contra o julgamento da Apelação Criminal n. 1531751-77.2020.8.26.0050 a cargo do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.
Consta dos autos que, absolvido em primeiro grau, o paciente foi condenado pelo TJSP pela prática do delito capitulado no art. 140, § 3º, do Código Penal a 1 (um) ano de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos, e ao pagamento à vítima do equivalente a meio salário-mínimo vigente à época dos fatos, a título de valor indenizatório mínimo. Segue ementa do acórdão (fl. 12):
"EMENTA: Injúria racial (art. 140, § 3.º, do Código Penal). Absolvição na origem. Inconformismo ministerial. Procedência. Crime caracterizado, integralmente. Palavras coerentes e incriminatórias da vítima, arrimadas em farta prova documental. Versão exculpatória inverossímil. Dolo caracterizado na conduta do agente. Responsabilização inevitável. Condenação imperiosa. Apenamento. Pena-base fixada no mínimo legal, e assim tornada definitiva, com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Valor indenizatório mínimo devido. Inicidência do disposto pelo art. 387, IV do Código de Processo Penal. Apelo ministerial provido."
No agravo regimental, a Defensoria Pública argumenta: o paciente travou com a vítima uma discussão na rede social Twitter a respeito do voto impresso em data próxima às eleições municipais de 2020; o paciente tomou parte na defesa das urnas eletrônicas e associou o voto impresso ao controle eleitoral em zonas dominadas pela milícia no Rio de Janeiro; no contexto da discussão, o paciente denotou compreender insustentável que pessoas de origem negra (como o paciente e o ofendido)
defendam bandeiras políticas de "brancos ricos e escravocratas", historicamente responsáveis pela opressão da população negra; a expressão "Tá com saudades da senzala né?"
não foi usada para diminuir o ofendido em sua origem ou raça, mas sim para confrontá-lo criticamente sobre esta contradição; o intuito de crítica não configura injúria racial.
Requer a reconsideração da decisão monocrática e, subsidiariamente, a submissão do recurso ao julgamento colegiado. O Ministério Público Federal opinou pelo não provimento do agravo regimental (fls. 76/77).
É o relatório. Decido.
Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF e do próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Contudo, considerando as alegações expostas na inicial, razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal que justifique a concessão da ordem de ofício.
Embora por fundamentos diversos, considero pertinente rever a decisão monocrática, na forma do art. 647-A do Código de Processo Penal—CPP e art. 258, §3º do Regimento Interno do STJ. Considerando que o fato objeto de apenamento foi praticado em 09/11/2020, aplica-se o art. 140, §3º, do Código Penal—CP, na redação conferida pela Lei n. 10.741/2023, tendo o tipo penal sido substituído por outro mais grave, previsto no art. 2º-A da Lei n. 7.716/89, na redação conferida pela Lei n. 14.532/2023. Segue redação do tipo penal então vigente:
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: [...] § 3 o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)
A sentença absolutória considerou que o paciente reagiu a uma ofensa da vítima, num contexto de notório antagonismo político, e que não havia ânimo em ofendê-la em razão da cor da sua pele, até porque o paciente também é negro, de modo que a dúvida sobre o dolo deveria beneficiar o acusado (fls. 28/30):
"[...] Isso porque e ao que se vê do diálogo reproduzido a fls. 12 e na própria denúncia, foi a vítima quem inicialmente ofendeu o acusado, definindo-o como "esquerdopata", que se define como a "pessoa que defende doutrina ou posição política de esquerda de forma extremada ou fanática". E apenas em reação a essa ofensa, é que o denunciado teria proferido a frase: "Se olha no espelho, veja sua cor e situação financeira e veja quem é ridículo se colocando como de direito!! A direita é representada por brancos ricos escravocratas que odeiam gente como você. Tá com saudades da senzala né??". Deste modo e pelo fato da vítima ter ofendido inicialmente o acusado na forma acima mencionada e em período de acaloradas discussões políticas entre os partidários de direita e esquerda, como foi público e notório, sendo o denunciado ainda de cor negra e alegando em seu interrogatório judicial que não teve a intenção de discriminar racialmente a vítima, inclusive porque também é "negro", entendo ausente o dolo consistente no elemento subjetivo do tipo penal que ora é imputado a David Oliveira. Portanto, não havendo prova suficiente do elemento subjetivo do tipo penal em questão, qual seja, o dolo, a absolvição é de rigor em face do consagrado princípio in dubio pro reo, inclusive para que não se incorra no risco de se levar ao cárcere ou aplicar outra medida restritiva de direitos a pessoa inocente."
Por outro lado, ao dar provimento à apelação, o TJSP se valeu de diálogos que não estavam abarcados pela denúncia, tendo extrapolado o recorte da hipótese acusatória. Com efeito, a denúncia menciona apenas um diálogo, consistente nas seguintes postagens na rede social:
1) vítima: "Quem disse que o voto impresso terá informações de quem votou? Primeiro se informa melhor amigo depois monta seu discurso esquerdopata"; 2) paciente: "Se olha no espelho, veja sua cor e sua situação financeira e veja quem é ridículo se colocando como de direita!! A direita é representada por brancos ricos e escravocratas que odeiam gente como você. Tá com saudades da senzala né??". Entretanto, o relator da apelação se valeu de outras falas do paciente para justificar a condenação (fls. 14/15; g.n.): "De fato, a análise de tais documentos demonstra que a vítima deu início às ofensas, chamando o acusado de “esquerdopata”, o que deflagrou a reação do réu, que, por sua vez, ofendeu a vítima utilizando elementos atinentes à sua raça e sua cor, com expressões tais como “nazipardo americanizado tupiniquim subserviente e prostituído”; dizendo-lhe para se olhar no espelho e ver a sua cor e perguntando-lhe se está com saudades da senzala. Nesse contexto de incivilidade no ambiente virtual (valendo-nos, aqui, da precisa definição do d. Procurador de Justiça oficiante), sobreleva registrar que, embora se verifique a ocorrência de ofensas recíprocas, é inegável que o acusado foi o único a se valer de elementos raciais para depreciar, diminuir, a vítima. O que caracteriza a prática da conduta típica que lhe é imputada. [...] Ouvido em audiência, D. O. negou a prática delitiva, afirmando que foi inicialmente ofendido pela vítima na citada rede social como "esquerdopata" e que, como havia ingerido duas cervejas e se encontrava um pouco alterado, realmente escreveu as frases constantes nos documentos de f. 7/10 e 12/14, porém, sem qualquer intenção de ofender racialmente o ofendido, inclusive por ser também negro - SAJ. Nesses termos, aceitar tal versão, “data venia”, seria fechar os olhos a uma realidade manifesta e dar costas ao óbvio, em total e completo desapego às normas genéricas da verdade e de bom- senso, que emanam sem nenhuma dúvida dos autos. Afinal, o acusado persistiu nas ofensas à vítima, valendo-se de elementos atinente à sua raça ou cor, repetindo-as por ao menos três vezes. Essa insistência em repisar ofensas de natureza racial demonstra a existência da intenção de depreciar a vítima com a utilização de elementos raciais, caracterizando o dolo. [...]"
Com efeito, a injúria é crime de natureza eminentemente contextual e, portanto, a análise do dolo de ofender deve ser ater ao âmbito da conjuntura delimitada pela hipótese acusatória.
Para ilustrar:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA A HONRA. CALÚNIA, DIFAMAÇÃO E INJÚRIA. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ART. 142, INCISOS I E III, DO CÓDIGO PENAL. APLICAÇÃO DAS EXCLUDENTES. AFIRMAÇÕES REALIZADAS EM RESPOSTA A PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. AUSÊNCIA DE DELIMITAÇÃO OBJETIVA DAS CONDUTAS TIDAS POR DELITIVAS. REVISÃO FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO CONHECIDO. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Agravo interposto contra decisão que inadmitiu recurso especial manejado pelo agravante, que alegava a ocorrência de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) por parte de magistrado em peças de procedimento correicional e pleiteava o provimento do recurso especial. A controvérsia envolve a aplicação do art. 142, incisos I e III, do Código Penal, que prevê excludentes de ilicitude para ofensas proferidas em juízo e no exercício de função pública. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há duas questões em discussão: (i) determinar se as expressões proferidas pelo magistrado configuram crimes contra a honra ou se incidem as excludentes de ilicitude previstas no art. 142, incisos I e III, do Código Penal; e (ii) verificar se a reanálise do acervo fático-probatório dos autos é necessária para a solução da controvérsia. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. O agravo em recurso especial é tempestivo e apresenta os fundamentos adequados. O recurso especial também é tempestivo e atendeu aos requisitos formais. 4. As ofensas alegadas foram proferidas no contexto de defesa do magistrado em procedimento correicional, caracterizando a excludente prevista no art. 142, incisos I e III, do Código Penal, o que afasta a tipificação dos crimes de calúnia e difamação, diante da ausência de dolo específico para macular a honra dos representantes do Ministério Público. 5.A jurisprudência do STJ é pacífica ao exigir o dolo específico para a configuração dos crimes contra a honra, especialmente nos casos em que as expressões se dão no contexto de discussões processuais ou no exercício de função pública (APn 555/DF). 6. A análise das pretensões do agravante demandaria a reavaliação de fatos e provas, o que é vedado nesta instância em razão da Súmula 7 do STJ. IV. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (AREsp n. 2.684.434/DF, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 3/12/2024, DJEN de 17/12/2024.) PROCESSUAL PENAL. QUEIXA-CRIME. DELITOS CONTRA A HONRA. GOVERNADOR DE ESTADO. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. CALÚNIA E DIFAMAÇÃO. AUSÊNCIA DAS ELEMENTARES OBJETIVAS DO TIPO. INJÚRIA. JUSTA CAUSA NÃO CARACTERIZADA. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. 1. Queixa-crime na qual se imputa a Governador de Estado a suposta prática dos crimes tipificados nos arts. 138, caput (calúnia), 139, caput (difamação) e 140, caput (injúria), na forma dos arts. 71, caput e 141, III, IV e § 2°, todos do Código Penal. 2. Delitos de calúnia e de difamação não configurados, já que não houve, por parte do querelado, a atribuição de fatos certos e determinados, praticados em determinadas condições de tempo e lugar. 3. A imputação de eventual prática de injúria, principalmente na seara pública, deve ser analisada de forma contextualizada. 4. O jogo político, no Estado de Direito, sujeita as pessoas que exercem ou tenham exercido cargos públicos de natureza política a suportarem maior exposição em certos aspectos, bem como a tolerarem opiniões, ainda que ásperas e rigorosas, quanto à sua atuação na condução da coisa pública. Atipicidade da conduta. 5. À luz do princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve ser adotado como ultima ratio, de forma subsidiária aos demais ramos do Direito. 6. Preliminares afastadas e queixa-crime rejeitada, nos termos do art. 395, I, II e III, do CPP. (QC n. 11/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 2/10/2024, DJe de 8/10/2024.)
Desta forma, considerando que o acórdão se valeu também de expressões injuriosas e da alegada reiteração de mensagens com cunho racial depreciativo que não foram citadas na denúncia, expandindo o contexto delimitado na acusação, a hipótese é de sua anulação e restabelecimento da sentença absolutória.
Fica prejudicada a análise da tese da defesa, de que a frase questionada significava a crítica de uma pessoa, também negra, à adesão da vítima ao espectro político alegadamente opressor dessa minoria racial que ambos integram . Isso posto, com fulcro no art. 258, §3º c/c art. 34, XX, do Regimento Interno do STJ, não conheço da impetração, todavia, reconsidero a decisão monocrática (e-STJ fls. 281/289) e concedo a ordem, de ofício, para anular o acórdão atacado e restabelecer a sentença absolutória (Ação Penal n. 1531751-77.2020.8.26.0050).
Relator
JOEL ILAN PACIORNIK
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