STJ Mar25 - Dosimetria Irregular - Crime do Estatuto do Torcedor - Tentativa Reconhecida - Venda de Ingressos com Valor Superior
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de MXXXXX ARAÚJO contra acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO nos autos do habeas corpus n. 0033721-35.2023.8.19.0000. Consta dos autos que o paciente foi condenado a 1 ano de reclusão, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 10 dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito, pela prática do crime previsto no art. 41-F do Estatuto do Torcedor. Interposta apelação, a Turma Recursal negou provimento ao recurso.
Houve trânsito em julgado aos 11/05/2023.
A defesa, então, impetrou habeas corpus perante o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. A ordem foi denegada.
Neste writ, alega que a conduta é atípica, pois o estatuto do torcedor não pune "a tentativa de venda" ou "expor à venda". Aduz que "o intento externado pelos agentes policiais não pode ser aproveitado como efetivamente almejado a realização do negócio jurídico ilícito".
Alternativamente, pleiteou a absolvição "ante o fato de que constituiu pressuposto para a caracterização do crime [...] a necessária comprovação, nos autos, sobre se estavam ou não abertas as bilheterias, que permitiriam a aquisição do ingresso pelo preço oficial do evento esportivo" (fls. 3/16).
Subsidiariamente, aduz que a conduta não ultrapassou a esfera da tentativa. Requer a absolvição do paciente diante da atipicidade da conduta. Subsidiariamente, pugna pelo reconhecimento da modalidade tentada. Informações prestadas a fls. 89/96 e 100/102.
O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do writ, porém, pela concessão da ordem de ofício, para reconhecer modalidade tentada do crime, com redimensionamento da pena aplicada (fls. 112/118).
É o relatório. DECIDO.
Pontuo que esta Corte Superior, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (AgRg no HC 180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgR no HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018), pacificou orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do instrumento legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado (HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 10/6/2020).
Passo à análise de eventual flagrante ilegalidade. Consta do acórdão impugnado:
Segundo se extrai dos autos, restou incontroverso que o Paciente foi flagrado ofertando à venda ingressos pelo valor de trinta reais, ao passo que o valor estampado no bilhete era de dez. [...] Sustenta o Impetrante que aprova pré-constituída é de que não teria restado demonstrada a ocorrência do núcleo do tipo (vender) ou mesmo o início da execução do crime, porque os policiais somente viram o réu oferecer ingressos, sem a individualização e consequente identificação de qualquer pessoa, ou transeunte, que pudesse figurar como efetivo comprador, motivo pelo qual o Paciente teria realizado apenas atos preparatórios, impuníveis. Contudo, respondendo à objeção, a decisão guerreada reconheceu que se trata de crime formal, sendo a consumação da venda mero exaurimento da conduta delituosa. Diante desse panorama, inexiste ilegalidade ou abuso a corrigir pela presente via, pois admitindo-se sua natureza formal, o crime aperfeiçoa-se no instante da mera exteriorização objetiva da intenção espúria, sendo despicienda a efetiva obtenção de qualquer vantagem patrimonial. Daí se observa que, a rigor o que busca a Impetração, é a revisão desse entendimento, reprisando teses defensivas já articuladas e rechaçadas de maneira fundamentada e coerente na origem. De toda sorte, ainda que o crime fosse material, resultaria inequívoco o início dos meios de execução porque o começo do crime abrange os atos que, de acordo com o plano do sujeito, são imediatamente anteriores ao início de execução da conduta típica. Apesar da distinção entre atos preparatórios e atos de tentativa constituir um dos problemas mais árduos da dogmática, os critérios para a diferenciação mais aceitos são os do ataque ao bem jurídico (critério material), quando se verifica se houve perigo ao bem jurídico, e o do início da realização do tipo (critério formal), em que se dá pelo reconhecimento da execução quando se inicia a realização da conduta núcleo do tipo. Nenhum desses critérios, todavia, é definitivo, podendo apenas auxiliar a distinção em casos concretos. No ponto, vale a transcrever a lição de Damásio de Jesus: [...] Evidencia-se, assim, que não há atipicidade na conduta praticada pelo Paciente. [...] O fato é que o reconhecimento da natureza formal do delito encontra-se em harmonia com a jurisprudência do eg. STJ, que já se posicionou, na linha da decisão combatida no sentido de que há crime de cambismo mesmo que, no momento da atuação do cambista, ainda existam ingressos disponíveis na bilheteria. Portanto, ao contrário do que sustenta a impetração, é desinfluente a ausência de comprovação de esgotamento dos ingressos na bilheteria para tipificação do delito: [...] (STJ RHC N. 47.835/RJ, RELATORA MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, JULGADO EM 9/12/2014, DJE DE 19/12/2014.)
Sobre as alegações do impetrante, conforme ressaltou o Tribunal local, já decidiu a 6ª Turma desta Corte Superior que a abertura ou não das bilheterias não influencia a tipicidade:
A argumentação defensiva toda gravita na ausência de demonstração, na denúncia, de que, quando da oferta, não haveria mais ingressos à venda na bilheteria. Nesse raciocínio, caso ainda se dispusesse de oferta oficial, em verdade, os cambistas apenas seriam uma opção, lícita, de se contornar a permanência nas filas. Com todo respeito que deve ser tributado ao exercício da Defesa, entendo que a exegese que se pretende conferir ao tipo penal em foco não prospera. Os grandes eventos esportivos, em que são vendidos ingressos, movimentam muitos interesses. Gostaria de me concentrar, na presente análise, em apenas um deles: a paixão do torcedor. Como ondas humanas, os seguidores dos diversos clubes desaguam nos estádios, levando consigo todo um sentimento, esquecendo-se, amiúde, da realidade, dura, do dia-a-dia. Não é possível olvidar que vivemos num Estado muitas vezes chamado de o "País do Futebol". Pois bem, é sobre tal fenômeno que se debruçou o legislador para tratar do "cambismo". Trata-se de comportamento dotado de reprovabilidade penal, pela simples razão de envolver a exploração, artificiosa, de um bem finito: a quantidade de lugares nos estádios. Desta maneira, abusando de certo privilégio decorrente de se chegar antes ao guichê, adquirem-se mais unidades, que são vendidas com ágio. Entendo que a compreensão albergada pelas anteriores instâncias encontra-se prenhe de lucidez e juridicidade. É desinfluente a circunstância, eventual, de ainda existirem ingressos à venda nas bilheterias. A uma porque o tipo penal, expressamente, a tal não se refere. A duas, porque, pela simples conduta enunciada no modelo incriminador, o bem jurídico já é afetado, porquanto materializa-se exploração do preço, em mercado de bem finito, operado por um único fornecedor. Gera-se indevida especulação, promovendo a daninha quebra da isonomia, que seria assegurada pela exclusividade nas vendas. Nesse contexto, não diviso qualquer motivo para modificação da condenação, que, nesta quadra, já alcançou definitividade. (RHC n. 47.835/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 9/12/2014, DJe de 19/12/2014.) No tocante à consumação, à época vigorava a seguinte redação: Art. 41-F. Vender ingresso de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010) Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010) Consta da sentença a seguinte descrição da conduta: "no dia 27 de Maio de 2015, por volta das 21 horas, nas proximidades do Estádio Jornalista Mário Filho - Maracanã, o denunciado, de forma livre e consciente, comercializava 02 (dois) ingressos de jogo de futebol por preço superior ao estampado no bilhete (...)" [...] O crime restou consumado, já que como mencionado pela testemunha, em sede policial, conforme termo circunstanciado de fls. 02/04 e em Juizo, os ingressos foram ofertados à venda pelo valor de R$ 30,00 (trinta reais) cada, valor este acima do estampado no bilhete, que era de R$ 10,00 (dez reais) Sobre o tema, destaco a manifestação do Ministério Público Federal: O tipo penal, hoje revogado pela Lei n. 14.597/2023 e substituído pelo art. 166 da nova legislação sobre esporte, continha apenas o verbo "vender". Hoje, o art. 166 da Lei n. 14.597/2023 prevê o crime de "Vender ou portar para venda ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete". Não é possível equiparar a conduta de vender à de oferecer à venda. Fossem equiparáveis as condutas, não haveria a previsão de ambas em muitos tipos penais, como o do art. 37 da Lei n. 9.456/97 ("Aquele que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação de cultivar protegida, com denominação correta ou com outra, sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido, assim como pagará multa equivalente a vinte por cento do valor comercial do material apreendido, incorrendo, ainda, em crime de violação dos direitos do melhorista, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis"), do art. 218-C do CP (Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia) ou mesmo o do art. 33 da Lei n. 11.343/06 ("Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar"). Na Lei n. 1.521/51, os crimes contra a economia popular também preveem tanto a exposição à venda quanto a venda e, no caso específico dos cambistas não atuantes em eventos desportivos, o tipo penal fala em: "obter ou tentar obter ganhos ilícitos..." (art. 2º, IX, da Lei n. 1.521/51). Não é a redação do art. 41-F do Estatuto do Torcedor, imputado ao paciente, que menciona, apenas, a conduta de "vender". O crime, na ação "vender", se consuma com a entrega da coisa ao adquirente. Esse o entendimento da 3ª Seção do STJ, por exemplo, no caso do crime do art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/90 (CC n. 132.587/MA, relator Ministro Newton Trisotto (Desembargador Convocado do TJ/SC), Terceira Seção, julgado em 26/11/2014, DJe de 4/12/2014). Ao oferecer à venda, o paciente apenas iniciou o processo de venda, que, como se disse, não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente, já que o potencial comprador era policial militar, que atuou para coibi-la. Assim, a conduta não é atípica, mas tem razão a defesa de que deveria ter sido reconhecida, aqui, a modalidade tentada.
De fato, assiste razão ao impetrante e ao Ministério Público Federal, na medida em que vender não tem o mesmo significado de expor à venda. Nesse sentido:
PENAL. PROCESSO PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DELITO DO ART. 7º, INC. IX, DA LEI N. 8.137/1990. VENDA DE PRODUTO IMPRÓPRIO PARA CONSUMO. CONSUMAÇÃO. ART. 70 DO CPP. ESTABELECIMENTO DA RELAÇÃO CONSUMERISTA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL MARANHENSE. 1. Nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, "a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução". 2. Conforme a Lei n. 8.137, de 1990, "constitui crime contra as relações de consumo" (art. 7º), entre outras condutas, "vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo" (inc. IX). Na ação "vender" ou "entregar" mercadoria, o crime se consuma no momento em que ela é entregue ao adquirente. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 9ª Vara Criminal da Comarca de São Luís/MA, ora suscitante. (CC n. 132.587/MA, relator Ministro Newton Trisotto (Desembargador Convocado do Tj/sc), Terceira Seção, julgado em 26/11/2014, DJe de 4/12/2014.)
No caso dos autos, não houve efetiva entrega dos ingressos e finalização da alienação, motivo pelo qual não houve venda, mas tentativa. Assim, passo à redimensionar a pena. Na primeira fase, mantenho a pena-base no mínimo legal, qual seja, 1 ano de reclusão e 10 dias-multa.
Na segunda fase, não foram consideradas agravantes ou atenuantes. Na terceira fase, reconheço a tentativa, e tendo em vista o iter criminis percorrido, diminuo a pena em 1/3, passando a dosá-la em definitivo em 8 (oito) meses de reclusão e 10 (dez) dias multa, em observância ao art. 49 do Código Penal, mantidos os demais termos da sentença proferida. Ante o exposto, não conheço do habeas corpus, porém, concedo a ordem de ofício para reconhecer a tentativa e redimensionar a pena para 8 (oito) meses de reclusão e 10 (dez) dias multa, em observância ao art. 49 do Código Penal, mantidos os demais termos da sentença proferida. Comunique-se com urgência o Tribunal de origem. Publique-se. Intimem-se.
Relator
OTÁVIO DE ALMEIDA TOLEDO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP)
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