STJ Maio25 - Crime de Dispensa de Licitação - Absolvição - Dano Presumido Afastado
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO
Trata-se de recurso especial interposto por E B N, com fundamento nas alíneas "a" e "c" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento da Apelação Criminal n. 1001112-76.2017.8.26.0588.
Consta dos autos que o recorrente foi condenado pela prática do crime previsto no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/1993 à pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de detenção, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 11 (onze) dias-multa.
A apelação criminal interposta foi parcialmente provida, apenas para afastar a agravante do art. 61, inciso II, "g", do Código Penal, e, consequentemente, reduzir a pena do recorrente para 3 (três) anos de detenção, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa (e-STJ fls. 1178/1210).
Eis a ementa do julgado:
DISPENSA DE LICITAÇÃO "Abolitio criminis" em virtude da revogação, pelo art. 193 da Lei nº 14.133/21, da norma anteriormente prevista no art. 89 da Lei nº 8.666/93 Inocorrência. Princípio da continuidade normativa, na medida em que o Legislador conservou a tipificação da mesma conduta, mas em dispositivo legal diverso, qual seja, o novel art. 337-E do Código Penal, consistente no crime de contratação direta ilegal, inserido no Capítulo II-B, "Dos Crimes em Licitação e Contratos Administrativos", que assim, dispõe: "Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei". Inobservância do procedimento especial previsto no art. 514 do Código de Processo Penal Inocorrência. Quando do recebimento da denúncia, o Magistrado de primeiro grau determinou a citação e intimação dos réus, tendo sido devidamente realizadas a fls. 198, de modo que, na sequência, a Defesa de cada um deles apresentou resposta escrita à acusação. Após, a Magistrada ratificou o recebimento da denúncia e analisou, de forma suficiente, os argumentos defensivos, não havendo que se falar em prejuízo algum para as partes. Somente é necessária a apresentação de defesa preliminar (prevista no rito especial de crimes de responsabilidade de funcionário público) quando a ação penal tenha sido precedida de outro modo que não seja inquérito policial ou procedimento administrativo, o que não ocorreu no caso dos autos. O rito dos artigos 513 e seguintes do Código de Processo Penal é aplicável apenas aos crimes funcionais típicos previstos nos artigos 213 a 327 do Código Penal. Inépcia de denúncia - Inocorrência. Inicial acusatória que descreve minuciosamente os fatos delituosos atribuídos aos apelantes, trazendo indícios suficientes de autoria, garantindo-lhes a ampla defesa. Atendimento aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. Alegação do apelante E. de violação ao princípio "non bis in idem", diante da ação civil pública que constatou a inexistência de dano ou ilegalidade do procedimento licitatório Inocorrência. Os agentes públicos estão sujeitos a três esferas distintas e independentes de responsabilidade: administrativa, civil e penal, de forma que um mesmo ato pode ser objeto de apuração e responsabilização em qualquer dessas instâncias, não havendo que se cogitar de ocorrência de "bis in idem", por conta da ação civil pública que versa sobre o mesmo fato objeto desta ação penal, conforme se depreende do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92). Quanto ao mérito, materialidade e autoria do delito de dispensa de licitação comprovadas de maneira irrefutável. Banda musical formada pelo apelante J. especificamente para apresentação nos festejos de Carnaval na Cidade de São Sebastião da Grama, e contratada pela Municipalidade, independentemente de licitação, sem que houvesse pesquisa de mercado para avaliar a razoabilidade o valor proposto pela empresa, nem demonstração da exclusividade do empresário, ou, ao menos, consagração da banda pela crítica especializada. Os músicos foram reunidos e, repita-se, a banda formada exclusivamente para apresentação naquele Carnaval, sendo totalmente desconhecida. Responsabilidade de cada um dos apelantes bem delineada. Negado provimento ao recurso interposto pelo apelante J B M J e dado parcial provimento aos recursos interpostos pelos apelantes A F A de S e E B N, para afastar a agravante genérica do art. 61, inciso II, alínea "g", do Código Penal, reduzindo a pena de ambos para 3 (três) anos de detenção, em regime aberto, e pagamento de 10 (dez) dias-multa, no valor unitário de 1/6 (um sexto) do salário-mínimo.
No recurso especial (e-STJ fls. 1241/1303), com fundamento no art. 105, III, "a" e "c", da CF, o recorrente alega violação aos arts. 156, 386, III e VII, 395 do Código de Processo Penal e art. 89, caput, da Lei n. 8.666/1993.
Sustenta, em síntese: i) a ausência de dolo específico e de dano ao erário, elementos que seriam necessários para a configuração do crime; ii) a ocorrência de abolitio criminis parcial pela Lei n. 14.133/2021, que teria revogado a parte final do art. 89 da Lei de Licitações; iii) a inépcia da denúncia, por ausência de descrição da conduta e do dolo específico; iv) a violação ao princípio do ne bis in idem, diante da existência de ação civil pública que julgou inexistente o dano ao erário; v) a invalidade do procedimento, pela inobservância do rito previsto no art. 514 do CPP. O recurso especial foi parcialmente admitido na origem, quanto à tese da ausência de dolo específico e de dano ao erário (e-STJ fls. 1334).
O Ministério Público Federal, em seu parecer, manifestou-se pelo não conhecimento do recurso e, caso conhecido, pelo não provimento (e-STJ fls. 1344/1352).
É o relatório. Decido.
Sobre a pretensão do recurso especial, a primeira questão está em saber se, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/93, é indispensável a comprovação do dolo específico de causar dano ao erário e do efetivo prejuízo aos cofres públicos.
O recorrente afirma que o acórdão recorrido violou o art. 89 da Lei n. 8.666/1993, ao dispensar a comprovação do dolo específico e do efetivo prejuízo ao erário para a caracterização do crime.
Argumenta, ainda, que o Tribunal de origem divergiu da jurisprudência consolidada deste Superior Tribunal sobre a matéria. O Tribunal de origem fundamentou a decisão da seguinte forma:
"No mais, convém registrar que, a despeito das manifestações defensivas, afirmando que o crime do artigo 89 da Lei nº 8.666/93 não estaria caracterizado por ausência de prejuízo ao erário, tal fundamento não deve prevalecer, pois restou evidenciando o descaso dos apelantes com o dinheiro público e a certeza da impunidade, o que, por si só, configura dano ao erário e demonstra que não houve apenas irregularidades pontuais relacionadas com a burocracia estatal. Logo, a aferição do dolo concernente ao tipo imputado extrai-se das circunstâncias da contratação. Constatou-se a intenção de encenar situação de dispensa ou inexigibilidade de processo licitatório, sem a preocupação de ocultar a intenção de violar os princípios da isonomia, moralidade, impessoalidade ou probidade, essenciais às tratativas comerciais com a Administração Pública, caracterizando, portanto, o delito previsto no artigo 89 da Lei nº 8.666/93, não havendo falar-se em inexistência de dolo e de prejuízo aos cofres públicos." (e-STJ fls. 1210/1211)
A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/93, é necessária a demonstração do dolo específico de causar dano ao erário e do efetivo prejuízo ao patrimônio público.
A propósito: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSOS ESPECIAIS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS E CORRUPÇÃO ATIVA. VIOLAÇÃO DO ART. 89 DA LEI N. 8.666/1993 E DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. DOLO ESPECÍFICO E PREJUÍZO AO ERÁRIO. DANO IN RE PISA. PONTOS IDENTIFICADOS NA SENTENÇA CONDENATÓRIA E NO RECORRIDO ACÓRDÃO. ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO. INVIABILIDADE. NECESSIDADE DE INCURSÃO NO ARCABOUÇO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. TESE DE NOVATIO LEGIS IN MELLIUS POR CONTA DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI N. 14.133/2021. ABOLITIO CRIMINIS EM REFERÊNCIA AO DELITO DO ART. 89, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 8.666/1993. INOCORRÊNCIA. CONTINUIDADE TÍPICO-NORMATIVA. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. ALTERAÇÃO PROMOVIDA PELO ARTIGO 75, VIII, DA LEI N. 14.133/2021. EVENTUAL INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADES. IN CASU, ALTERAÇÃO DO PRAZO DE CONCLUSÃO DAS OBRAS EMERGENCIAIS, QUE NÃO TEM O CONDÃO DE TORNAR A CONDUTA DO RECORRENTE ATÍPICA. 1. A jurisprudência desta Corte tem orientado no sentido de que, para que haja a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, é imprescindível a comprovação de dois elementos fundamentais: o dolo específico e a ocorrência de prejuízo para o erário. 2. A configuração do crime do art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige uma análise cuidadosa dos elementos subjetivos e objetivos da conduta, assegurando que apenas ações que realmente comprometam o patrimônio público e sejam realizadas com intenção dolosa sejam penalizadas. Esta orientação jurisprudencial visa proteger o erário e garantir que as contratações públicas sejam realizadas de forma transparente e eficiente, em conformidade com os princípios da legalidade e da moralidade administrativa. 3. Extrai-se dos autos que, tanto o quesito relativo ao dolo quanto o dano ao erário foram devidamente demonstrados pelas instâncias ordinárias, evidenciando uma análise minuciosa e fundamentada dos elementos constitutivos do crime. As instâncias ordinárias, ao examinarem o conjunto probatório, conseguiram estabelecer com clareza a intenção deliberada do agente de causar prejuízo ao patrimônio público, caracterizando o dolo específico necessário para a configuração do delito. Além disso, o impacto financeiro negativo sobre os cofres públicos foi comprovado, demonstrando que a conduta ilícita resultou em efetivo dano ao erário, o que reforça a gravidade da infração cometida. 4. A fundamentação apresentada pelas instâncias ordinárias não merece reparos, pois está em consonância com a jurisprudência consolidada e com os princípios que regem a administração pública. A decisão guerreada reflete uma aplicação correta da norma penal, assegurando que a resposta estatal seja proporcional à gravidade da conduta e aos prejuízos causados. Dessa forma, a análise realizada pelas instâncias inferiores deve ser mantida, garantindo a efetividade da sanção aplicada e a proteção do interesse público. 5. Ainda que assim não o fosse, para modificar o entendimento da Corte de origem, seria imprescindível realizar uma incursão na seara fático-probatória, o que envolve uma reavaliação detalhada dos fatos e das provas que fundamentaram a decisão original. No entanto, essa medida encontra-se inviabilizada devido ao óbice imposto pela Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estabelece a impossibilidade de reexame de provas em sede de recurso especial. 6. Em reforço, nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, no caso do crime previsto no art. 89 da 8.666/1993, para a caracterização do delito se faz necessária a presença de especial finalidade de agir na conduta do agente, consistente na intenção deliberada de causar lesão ao erário (dolo específico). [...] Sobre a tese absolutória, as instâncias ordinárias constataram a autoria e materialidade do delito praticado pelo réu ora recorrente, bem como o dolo específico e o prejuízo ao erário. Dessa forma, a inversão do julgado demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência inviável nesta instância especial, nos termos da Súmula 7/STJ (AgRg no AREsp n. 2.136.624/SC, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 28/11/2022). 7. Para o Superior Tribunal de Justiça, na presente hipótese, não há falar em abolitio criminis, uma vez que houve a continuidade típico-normativa do crime previsto no art. 89, parágrafo único, da Lei n. 8.666/1993. Isso significa que, apesar da revogação da Lei n. 8.666/1993 e da introdução da Lei n. 14.133/2021, as condutas anteriormente tipificadas continuam a ser consideradas ilícitas sob a nova legislação. Precedente. 8. No que tange à modificação introduzida pelo art. 75, VIII, da Lei n. 14.133/2021, observa-se que a acusação contra os agravantes é de terem participado na dispensa de licitação fora das condições legais estabelecidas. Portanto, a contratação direta das suas empresas, conforme descrito na sentença e no acórdão recorrido, especialmente devido à intenção comprovada de causar dano ao erário, não faz com que a falta de cumprimento de formalidades, como a mudança no prazo para concluir as obras emergenciais, tornem suas condutas atípicas. 9. Agravo regimental IMPROVIDO. (AgRg no REsp n. 2.040.788/PR, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/4/2025, DJEN de 25/4/2025.)
No caso em exame, verifica-se que o Tribunal de origem não demonstrou adequadamente a ocorrência de efetivo prejuízo ao erário. Ao contrário, considerou que "o descaso dos apelantes com o dinheiro público e a certeza da impunidade, o que, por si só, configura dano ao erário", sem apontar, concretamente, o prejuízo causado aos cofres públicos.
Conforme se extrai dos autos, o serviço contratado foi efetivamente prestado, com a realização das apresentações musicais durante o carnaval da cidade. Além disso, não há comprovação de sobrepreço. Também é relevante o fato, mencionado pelo recorrente, de que na ação civil pública ajuizada para apurar os mesmos fatos, concluiu-se pela inexistência de dano ao erário.
Embora o Tribunal de origem tenha afirmado que "o fato de naquele feito o Tribunal ter concluído pela inocorrência de dano ao erário em nada influi nestes autos, diante da independência entre as esferas", é certo que a conclusão na seara civil constitui importante elemento de convicção, especialmente quando, na esfera penal, não se demonstrou concretamente a ocorrência de tal prejuízo.
Assim, considerando a jurisprudência pacífica deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, é necessária a demonstração do efetivo prejuízo ao erário, e tendo em vista que tal prejuízo não foi devidamente comprovado no caso concreto, impõe-se a reforma do acórdão recorrido para absolver o recorrente.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para absolver o recorrente, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal. Publique-se. Intimem-se
Relator
ANTONIO SALDANHA PALHEIRO
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