STJ Mar25 - Extorsão desclassificado para Exercício Arbitrário das Próprias Razões - Ação Penal Privada - Ilegitimidade do MP de Promover Ação - Decadência Reconhecida

  Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de VITOR XXXXXX em que se aponta como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS nos autos da apelação criminal n. 0704187-60.2022.8.07.0004.

Denunciado por suposta prática do crime de extorsão, o ora paciente foi condenado em primeira instância à pena de 21 (vinte e um) dias de detenção, no regime aberto, por ofensa ao art. 345, do CP.

A Defesa interpôs então apelação pleiteando a extinção da punibilidade em razão da decadência, mas o pedido não foi provido. Sustenta a Defensoria Pública, por meio deste, constrangimento ilegal no prosseguimento da ação penal.

Aduz que, desclassificada na sentença a conduta descrita na inicial acusatória para exercício arbitrário das próprias razões que, conforme parágrafo único do tipo penal, somente se procede mediante queixa quando ausente violência, como no caso dos autos, deveria ter sido declarada extinta a punibilidade com base no art. 107, IV, do CP.

Alega que, prevendo o art. 103, do CP, que o direito de queixa do ofendido decai em 06 (seis) meses, salvo disposição expressa em contrário, não comporta exceção à regra a desclassificação do crime, conforme precedentes desta Corte.

Requer, ao final, a concessão da ordem para, reconhecida a decadência, declarar extinta a punibilidade de Vitor Hugo. As informações processuais encontram-se às fls. 260, 267/268 e 272/273.

O Ministério Público manifestou-se, às fls. 275/284, pelo não conhecimento da ordem.

É o relatório. DECIDO.

Foi o paciente denunciado por suposta ofensa ao art. 158, do CP, porque, em duas ocasiões distintas do mês de dezembro de 2021, na cidade de Gama/DF, agindo mediante grave ameaça, constrangeu Luiz Eduardo Simões Cavalcante, com o intuito de obter vantagem econômica indevida, a fazer algo.

Segundo o narrado na inicial, Vitor Hugo ameaçou o ofendido via mensagens de celular dizendo que, se não lhe entregasse a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), incendiaria sua casa, fazendo mal a seus familiares, além de enviar fotografia de um revólver e explodir uma bomba caseira para intimidar Luiz Eduardo.

Encerrada a instrução processual, o Juízo da origem desclassificou a conduta para a prevista no art. 345, do CP, impondo pena de 21 (vinte e um) dias de detenção, no regime aberto.

A Defensoria Pública interpôs então apelação buscando o reconhecimento da decadência, mas o Tribunal a quo negou provimento ao pedido por acórdão assim ementado (fl. 236):

PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. EXTORSÃO. DESCLASSIFICAÇÃO. EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. VIOLÊNCIA. INOCORRÊNCIA. AÇÃO PENAL PRIVADA. DECADÊNCIA. DESCABIMENTO. ABERTURA DE PRAZO. QUEIXA-CRIME. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. A controvérsia submetida a esta Corte consiste em aferir se incide, na espécie, a decadência do direito de queixa ou, se preenchido o requisito de procedibilidade da ação penal, as provas trazidas ao caderno processual são condizentes com a compreensão firmada pelo Juízo singular, concernente à prática do crime de exercício arbitrário das próprias razões pelo ora apelante. 2. Consiste a decadência na perda do direito de promover a ação penal privada ou a representação em virtude de seu não exercício no prazo legal, tratando-se de causa extintiva da punibilidade, nos exatos termos do art. 107, inc. IV, do Código Penal. 3. Desclassificada a conduta para o tipo penal de exercício arbitrário das próprias razões, mas não preenchido o requisito normativo concernente à existência de efetiva violência, a ação penal, por força do art. 345, parágrafo único, do Código Penal, deve se processar por meio de queixa. 4. Descabido o imediato reconhecimento da decadência, eis que a vítima não poderia, desde o início, promover a queixa-crime, seja porque a ação penal já em curso importaria em evidente litispendência, seja porque impossível presumir que o Juízo desclassificaria a conduta inicial. 4.1. Reconhecida a natureza privada da ação penal, abre-se prazo à vítima para promover a queixa-crime, contado o prazo de decadência da intimação do julgado. 5. Recurso conhecido e parcialmente provido.

De início, cumpre observar que esta Corte Superior, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (AgR no HC n. 180.365, Primeira Turma, rel. Min. Rosa Weber, julgado , 27/03/2020, e AgR no HC n. 147.210, Segunda Turma, rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018), pacificou orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado (HC n. 535.063/SP, Terceira Seção, rel. Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 10/06/2020).

No entanto, embora não tenha sido adotada a via processual adequada, em observância ao art. 647-A, do CPP, segundo o qual se permite a qualquer autoridade judicial, no âmbito de sua competência jurisdicional e quando verificada a presença de flagrante ilegalidade, a expedição de habeas corpus de ofício em vista de lesão ou ameaça de lesão à liberdade de locomoção, passa-se ao exame acerca da existência de flagrante ilegalidade.

Sobre o prazo decadencial, reza o art. 103, do CP:

Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia. E o art. 38, do CPP: Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

Trata-se, portanto, de prazo peremptório que não admite suspensão, interrupção ou prorrogação, ressalvadas as exceções legais, não comportando a regra interpretações extensivas ou analogias em prejuízo do réu. Nesse sentido, é a doutrina:

O prazo de decadência é fatal e improrrogável, não ficando sujeito a interrupções ou suspensões, em face da garantia da reserva legal e da regra de que a lei penal, quando desfavorável à liberdade, deve ser interpretada restritivamente, não admitindo ampliações de seu texto (Delmanto, Celso e outros, “Código Penal Comentado”, Ed. Saraiva, 9ª ed., p. 368). Também a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça: SINDICÂNCIA. DÚVIDA QUANTO À CAPITULAÇÃO JURÍDICA E AO TIPO PENAL. INJÚRIA REAL QUALIFICADA OU INJÚRIA REAL SIMPLES. TÉRMINO DA APURAÇÃO. HIPÓTESE DE CRIME DE AÇÃO PENAL DE INICIATIVA DO OFENDIDO. MARCO INICIAL DA DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA. ART. 38 DO CPP. DIA EM QUE SE CONHECEU O AUTOR DO CRIME. 1. A previsão do art. 38 do CPP, segundo a qual, "salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime", não sede espaço para analogias ou para interpretações extensivas, porquanto se reveste de direito de natureza material em favor do agente e contra o direito de persegui-lo e de puni-lo. 2. Na hipótese, embora tenha havido dúvida no início da investigação quanto à capitulação jurídica e ao tipo penal, isso não interfere no marco inicial da contagem da decadência, que continua sendo o dia em que o ofendido teve a certeza da autoria. 3. Assim, passados mais de 6 (seis) meses desde o momento em que foi conhecido o autor do crime pelo ofendido, restou operada a decadência do direito de queixa. 4. Extinta a punibilidade pelo crime de injúria real simples e arquivado a sindicância, com determinação de comunicação ao ofendido. (Sd n. 602/DF, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, julgado em 21/6/2017, DJe de 29/6/2017). PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE EXTORSÃO QUALIFICADA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. CRIME DE AÇÃO PENAL PRIVADA. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA PELO OFENDIDO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O tipo penal inscrito no art. 158 do CP exige que a vantagem econômica obtida pelo agente seja considerada indevida. 2. O crime de exercício arbitrário das próprias razões praticado sem violência somente se procede mediante queixa. 3. O não-exercício do direito de queixa no prazo de seis meses, a contar do conhecimento da autoria pelo ofendido, enseja a extinção da punibilidade. 4. Ordem concedida para desclassificar a conduta atribuída aos pacientes para exercício arbitrário das próprias razões, previsto no art. 345 do Código Penal, anulando-se a Ação Penal nº 00803001579-9 que teve trâmite na comarca de Barra do São Francisco/ES em razão da ilegitimidade ativa do Ministério Público e, consequentemente, declaro extinta a punibilidade dos pacientes pela decadência do direito de queixa pelo ofendido, nos termos do art. 103 c/c 107, inciso IV, do Código Penal. (HC n. 135.398/ES, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 3/12/2009, DJe de 28/6/2010). PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE RACISMO. 1. DENÚNCIA QUE IMPUTA A UTILIZAÇÃO DE PALAVRAS PEJORATIVAS REFERENTES À RAÇA DO OFENDIDO. IMPUTAÇÃO. CRIME DE RACISMO. INADEQUAÇÃO. CONDUTA QUE SE AMOLDA AO TIPO DE INJÚRIA QUALIFICADA PELO USO DE ELEMENTO RACIAL. DESCLASSIFICAÇÃO. 2. ANULAÇÃO DA DENÚNCIA. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. RECONHECIMENTO. 3. RECURSO PROVIDO. 1. A imputação de termos pejorativos referentes à raça do ofendido, com o nítido intuito de lesão à honra deste, importa no crime de injúria qualificada pelo uso de elemento racial, e não de racismo. 2. Não tendo sido oferecida a queixa crime no prazo de seis meses, é de se reconhecer a decadência do direito de queixa pelo ofendido, extinguindo-se a punibilidade do recorrente. 3. Recurso provido para desclassificar a conduta narrada na denúncia para o tipo penal previsto no §3º do artigo 140 do Código Penal, e, em consequência, extinguir a punibilidade do recorrente, em razão da decadência, por força do artigo 107, IV, do Código Penal. (RHC n. 18.620/PR, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 14/10/2008, DJe de 28/10/2008).

Vale destacar ainda que, iniciado o processo por meio de denúncia ofertada pelo Ministério Público, a desclassificação do delito original para crime que deve ser processado por meio de ação penal privada conduz à nulidade do feito ab initio em razão da ilegitimidade ativa do órgão acusatório.

Veja-se:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. ERRO NA CAPITULAÇÃO JURÍDICA CONFERIDA AOS FATOS DESCRITOS NA DENÚNCIA. POSSIBILIDADE DE CORREÇÃO EXCEPCIONAL. EQUÍVOCO NO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CONDUTA NARRADA NA EXORDIAL. EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. CRIME DE AÇÃO PENAL PRIVADA. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA PELO OFENDIDO. RECURSO PROVIDO. 1. Ainda que se trate de mera retificação da capitulação jurídica dos fatos descritos na vestibular, tal procedimento não pode ser realizado no momento do recebimento da inicial, sendo cabível apenas quando da prolação da sentença, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal. Doutrina. Precedentes do STJ e do STF. 2. Todavia, quando se trata de beneficiar o réu, buscando-se a correta fixação da competência ou do procedimento a ser adotado, admite-se a excepcional atuação do magistrado, que pode corrigir o enquadramento típico contido na inicial antes de proferida sentença condenatória no feito. Precedentes do STJ e do STF. 3. No caso dos autos, imputou-se aos recorrentes e demais corréus o crime de furto qualificado, porque um deles, buscando solucionar uma dívida que a vítima visada havia com ele contraído, resolveu pegar, acompanhado dos demais, uma moto que acreditava pertencer ao devedor. 4. Tendo o Ministério Público narrado na incoativa que os acusados agiram com o especial fim de obter o pagamento de uma dívida que o suposto dono da moto havia contraído com um deles, caracteriza-se o tipo penal previsto no artigo 345 do Código Penal. 5. O crime de exercício arbitrário das próprias razões praticado sem violência somente se procede mediante queixa. 6. O não exercício do direito de queixa no prazo de seis meses, a contar do conhecimento da autoria pelo ofendido, enseja a extinção da punibilidade. 7. Recurso provido para atribuir nova capitulação à conduta dos recorrentes para o crime previsto no artigo 345 do Código Penal, anulando-se a ação penal em razão da ilegitimidade ativa do Ministério Público e extinguindo-se a sua punibilidade pela decadência do direito de exercício de queixa, estendendo-se os efeitos da decisão aos corréus em igual situação, na forma do artigo 580 do Código de Processo Penal. (RHC n. 78.111/PB, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 15/12/2016, DJe de 1/2/2017, grifamos).

Assim, no caso dos autos, entendendo o Juízo monocrático pela configuração do tipo previsto no art. 345, do CP, que somente se procede mediante queixa, não poderia condenar Vitor Hugo em ação penal iniciada pelo Ministério Público, ausente a legitimidade ativa.

Teratológico também se mostra o acórdão que, em sede de apelo, determinou abertura de novo prazo para a vítima apresentar queixa pelos fatos narrados na denúncia, pois medida não prevista em lei, não devendo prosperar. Ante o exposto, não conheço do habeas corpus e, de ofício, concedo a ordem para, após anular a ação penal em razão da ilegitimidade ativa, reconhecer a decadência do direito de queixa, declarando extinta a punibilidade de Vitor Hugo Araújo da Silva no processo n. 0704187-60.2022.8.07.0004. Comunique-se com urgência. Publique-se e intimem-se.

Relator

OTÁVIO DE ALMEIDA TOLEDO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP)

(STJ - HABEAS CORPUS Nº 935524 - DF (2024/0294391-4) RELATOR : MINISTRO OTÁVIO DE ALMEIDA TOLEDO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP), Publicação no DJEN/CNJ de 27/03/2025.)

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