STJ Mar25 - Revogação de Prisão Preventiva - Crimes Contra Crianças - ECA - Tortura - Diretora Escolar que Ficou Omissa contra Agressões :(i) Ré Primária, bons Antecedentes, residência fixa, (ii) cautelares são suficientes;
Publicado por Carlos Guilherme Pagiola (meu perfil)
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de JULIANAXXXXXXXX , contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (HC n. 1.0000.24.473744-1/000). Consta dos autos que, em 23/10/2024, o Ministério Público de Minas Gerais representou pela decretação da prisão preventiva da paciente (e-STJ fls. 2296/2299).
Em 1º/11/2024, o Juiz de Direito da 2ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Ouro Fino deferiu o pedido, decretando a prisão cautelar, em razão da suposta prática dos crimes previstos no art. 136, caput, c/c § 3º, do Código Penal; art. 232 da Lei n. 8.069/1990; e art. 1º, II, da Lei n. 9.455/1997.
Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça mineiro, postulando a revogação da prisão preventiva, mas a ordem foi denegada.
O acórdão recebeu a seguinte ementa (e-STJ fl. 45):
EMENTA: HABEAS CORPUS – CRIMES DE TORTURA, SUBMETER CRIANÇA SOB AUTORIDADE, GUARDA OU VIGILÂNCIA A VEXAME OU A CONSTRANGIMENTO, LESÃO CORPORAL E CONSTRANGIMENTO ILEGAL – REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA – IMPOSSIBILIDADE – DECISÃO FUNDAMENTADA – GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA – GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA – PACIENTE DIRETORA DE ESTABELECIMENTO EDUCACIONAL – CONDUTA OMISSIVA QUE PERMITIU A CONTINUIDADE DE ATOS VIOLENTOS – DEVER LEGAL DE CUIDADO, PROTEÇÃO E VIGILÂNCIA – AGRESSÕES EM BERÇÁRIO – CRIANÇAS DE TENRA IDADE QUE NÃO POSSUEM CONDIÇÕES DE SE DEFENDER (VÍTIMAS BEBÊS COM IDADE INFERIOR A DOIS ANOS) – RELATO DE OITO GENITORAS NOTICIANDO QUE OS FILHOS CHEGAVAM COM HEMATOMAS – INTENSO SOFRIMENTO PSICOLÓGICO E FÍSICO EM AMBIENTE ESCOLAR – INFLUENCIA NA COLETA DE PROVAS ESSENCIAIS À INVESTIGAÇÃO – SUBSTITUIÇÃO DA SEGREGAÇÃO CAUTELAR POR PRISÃO DOMICILIAR – CONDIÇÃO DE SAÚDE DA PACIENTE –PLEITO NÃO ANALISADO EM PRIMEIRO GRAU – AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. A Prisão Preventiva encontra-se fundamentada na gravidade concreta da conduta, haja vista que a Paciente, na condição de diretora de estabelecimento educacional, agindo de forma omissa, deixou diversas crianças de tenra idade, menores de dois anos, que não possuem condições de se defender, serem submetidas a sofrimento psicológico e físico em ambiente escolar, impondo-se a manutenção da Segregação Cautelar. 2. A Paciente, em razão do labor que exercia, possuía o dever legal de cuidado, proteção e vigilância, sendo que os indícios de que esta tomou conhecimento das agressões em desfavor das crianças em berçário, perpetradas por Monitora, a qual possui vínculo familiar (primas) e nada fez para impedir o resultado, influenciando na coleta de provas essenciais à investigação, corrobora a imprescindibilidade da Prisão Preventiva. 3. A garantia da ordem pública e o perigo gerado pelo estado de liberdade são requisitos que, quando presentes, indicam a insuficiência e inadequação de Medidas Cautelares Diversas da Prisão. 4. Eventual interesse em substituir a Prisão Preventiva por Prisão Domiciliar, em razão da condição de saúde da Paciente, deve ser, primeiro, analisado pelo Magistrado a quo, pois, do contrário, há risco de qualquer manifestação deste Tribunal de Justiça configurar Supressão de Instância.
No presente mandamus, a defesa aduz que a decisão da prisão da paciente configura constrangimento ilegal, pois inexiste fundamentação concreta e está embasada em argumentos genéricos. Aduz que a acusada colaborou com as investigações que formalizaram a denúncia e que não há elementos que demonstre que a liberdade representa risco à instrução processual ou à ordem pública, não se adequando à luz dos princípios de proporcionalidade e individualização da pena.
Argumenta que a paciente sofre de diversas comorbidades e necessita de medicamentos contínuos e acompanhamento médico específico, que não têm acontecido no estabelecimento prisional.
Ademais, sustenta que medidas cautelares diversas da prisão seriam plenamente adequadas para garantir a regularidade do processo, uma vez que é primária, possui residência fixa, emprego estável e é servidora pública com mais de três décadas de atuação e não há registros de antecedentes criminais.
Outrossim, sustenta a necessidade do trancamento da ação penal, uma vez que a denúncia apresentada contra a acusada padece de alegações genéricas e vícios graves ao não individualizar sua conduta e nem demonstrar qualquer nexo causal entre os fatos narrados e uma suposta ação ou omissão dolosa atribuída à paciente.
Alega, também, que os elementos analisados não atendem aos requisitos técnicos e legais, sendo insuficientes como material probatório, devendo ser reconhecida a nulidade das provas digitais, em razão da inobservância da cadeia de custódia.
Diante disso, pede liminarmente e no mérito, a concessão da revogação da prisão preventiva ou substituição por medidas diversas da prisão, além do trancamento da ação penal e a nulidade das provas digitais. A liminar foi indeferida (e-STJ fls. 2282/2285).
As informações foram prestadas (e-STJ fls. 2291/3375) e o Ministério Público Federal, previamente ouvido, manifestou-se pelo não conhecimento do habeas corpus, em parecer assim resumido (e-STJ fl. 3413):
HABEAS CORPUS COM PEDIDO LIMINAR. MAUS TRATOS. TORTURA CONTRA CRIANÇAS. WRIT SUBSTITUTIVO. PRISÃO PREVENTIVA. NECESSIDADE. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. 1. O habeas corpus, quando utilizado como substituto de recursos próprios, não deve ser conhecido, somente se justificando a concessão da ordem de ofício quando flagrante a ilegalidade apontada. 2. Comprovada a materialidade, havendo indícios de autoria e restando demonstrada, com elementos concretos, a necessidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública, afasta-se a alegação de constrangimento ilegal. 3. Inviável a análise da nulidade por quebra da cadeia de custódia, sob pena de indevida supressão de instância. 4. Parecer pelo não conhecimento do writ.
É o relatório, Decido
De acordo com a nossa sistemática recursal, o recurso cabível contra acórdão do Tribunal de origem que denega a ordem no habeas corpus é o recurso ordinário, consoante dispõe o art. 105, II, "a", da Constituição Federal. Do mesmo modo, o recurso adequado contra acórdão que julga apelação ou recurso em sentido estrito é o recurso especial, nos termos do art. 105, III, da Constituição Federal.
Assim, o habeas corpus não pode ser utilizado como substituto de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.
Busca-se, no presente habeas corpus, a revogação da prisão preventiva ou substituição por medidas diversas da prisão, além do trancamento da ação penal e a nulidade das provas digitais, pelas supostas práticas do art. 136, “caput”, c/c 136, §3º, do Código Penal, art. 232 da Lei n. 8.069/1990 e art. 1º, II, da Lei n. 9.455/1997.
Preliminarmente, as nulidades e vícios processuais invocados, bem como as alegações das condições de saúde da paciente não foram examinadas pelo Tribunal de origem no acórdão ora impugnado. Assim, tais matérias não podem ser apreciadas por esta Corte nesta oportunidade sob pena de indevida supressão de instância," (AgRg no HC n. 820.927/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 11/9/2023, DJe de 14/9/2023.).
Sobre a alegação da defesa voltada para ausência de indícios concretos de autoria e materialidade, colhe-se do acórdão (e-STJ fls. 61):
Imputa-se à Paciente a suposta prática de Crime Doloso punido com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, sendo, portanto, admissível a decretação da Prisão Preventiva, nos termos do art. 313, inciso I, do Código de Processo Penal. A prova da existência do Crime e os indícios suficientes de autoria, no presente caso, se encontram consubstanciados pelos elementos do Boletim de Ocorrência, Termos de Declaração, Comunicação de Serviço , Gravações Audiovisuais e Denúncia (PJe n° 5002945- 73.2024.8.13.0460 e n° 5002940-51.2024.8.13.0460).
Como visto, o Tribunal reconheceu haver prova da materialidade e indícios de autoria suficientes para a decretação da prisão preventiva. Assim, para desconstituir essa afirmação, é necessário o reexame de fatos e provas, procedimento incompatível com a via do habeas corpus Nessa perspectiva, segundo a Suprema Corte, “[a] análise minuciosa para o fim de concluir pela inexistência de indícios mínimos de autoria demandaria incursão no acervo fático-probatório, inviável em sede de habeas corpus”. (AgRg no HC n. 215.663/SP, Relator Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 4/7/2022, DJe 11/7/2022)
Ainda nesse sentido:
“não se admite no habeas corpus a análise aprofundada de fatos e provas, a fim de se verificar a inocência do Paciente” (HC n.115.116/RJ, Relatora Ministra CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 16/09/2014, DJe 17/11/2014). “reconhecer a ausência, ou não, de elementos de autoria e materialidade delitiva acarreta, inevitavelmente, aprofundado reexame do conjunto fáticoprobatório, sendo impróprio na via do habeas corpus” (RHC n. 119.441/CE, Relatora Ministra LAURITA VAZ, Sexta Turma, julgado em 7/11/2019.
Superado esses pontos, passo ao exame dos fundamentos do decreto de prisão preventiva. Acerca da prisão preventiva da paciente, entende-se que esta é uma medida excepcional, de natureza cautelar, que autoriza o Estado, observadas as balizas legais e demonstrada a absoluta necessidade, a restringir a liberdade do cidadão antes de eventual condenação com trânsito em julgado (art. 5º, LXI, LXV, LXVI, e art. 93, IX, da CF).
Para a privação desse direito fundamental da pessoa humana, é indispensável a demonstração da existência da prova da materialidade do crime, da presença de indícios suficientes da autoria e do perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, bem como a ocorrência de um ou mais pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal.
Exige-se, ainda, que a decisão esteja pautada em motivação concreta de fatos novos ou contemporâneos, bem como demonstrado o lastro probatório que se ajuste às hipóteses excepcionais da norma em abstrato e revele a imprescindibilidade da medida, vedadas considerações genéricas e vazias sobre a gravidade do crime.
Acerca da fundamentação da prisão, colhe-se do decreto inicial (e-STJ fl. 52/53):
As condutas ora investigadas implicam crimes de extrema gravidade, praticados contra crianças que não possuem condições de se defender, o que justifica a adoção de medida cautelar para garantir a aplicação da lei penal, evitando-se eventual fuga ou obstrução da justiça. Os depoimentos colhidos até o momento indicam que Juliana teria sido advertida por, ao menos, uma funcionária do colégio sobre a prática de violência por parte da Monitora, mas, segundo os relatos, nada fez para interromper ou investigar o caso, permitindo, assim, a continuidade dos atos violentos. Essas práticas não apenas ferem a integridade física e emocional das vítimas, mas também comprometem seu desenvolvimento e bem-estar. A crueldade dirigida aos mais vulneráveis revela uma grave falha moral e ética, que demanda uma resposta firme da sociedade e das autoridades. Outrossim ao que consta, ao afastar a Monitora denunciante, a Diretora teria dito que ela também estava sendo acusada de maus-tratos junto de Ana Cristina e que tinha vazado um áudio que ela “estava de acordo com Cristina” conforme se expressa; e que a Monitora iria ser afastada também. Tal fato comprova, em princípio, que a Diretora tentou coagir a Monitora denunciante. Aliás, verifica-se no depoimento da Monitora denunciante, que a Diretora lhe pediu para abafar o caso, pois verificaria as câmeras primeiro. Destarte, há indícios suficientes de que a Diretora Juliana tinha conhecimento dos abusos e, em tese, optou por não adotar medidas para impedir as condutas da Monitora Ana Cristina. Tais circunstâncias reforçam a necessidade de uma investigação aprofundada e revelam fortes indícios de sua participação, seja por omissão, seja por conivência. Demais a mais, pela análise da FAC anexa, verifica-se que a investigada já foi indiciada por peculato (desvio de verba destinada para compra de merenda escolar) no ano de 2010. Os elementos constantes nos autos indicam que a liberdade da investigada, neste momento, representa risco à instrução criminal, dada a possibilidade concreta de que venha a influenciar o depoimento de testemunhas ou destruir provas, considerando sua posição de direção e o contato próximo com os demais envolvidos. Em outras palavras, a gravidade dos fatos aqui narrados e a posição hierárquica da investigada revelam um risco claro à ordem pública, uma vez que, como Diretora do colégio, era responsável pela segurança das crianças sob seus cuidados, mas, em tese, optou por ignorar as denúncias e os indícios dos maus-tratos e torturas. A omissão da investigada diante dos atos de tortura e maus-tratos, conforme narrado, indica sua insensibilidade ao dever de proteção dos menores. Cumpre salientar que os fatos vieram à tona somente após a divulgação de áudios capturados no interior do Colégio, os quais evidenciam condutas violentas por parte da Monitora Ana Cristina, a qual, inclusive, é prima da Diretora, ora investigada. (...). Ao indeferiu o pedido de revogação, consignou (e-STJ fl. 53): “(...) A investigação aponta que Juliana possuía pleno acesso às imagens das câmeras de monitoramento da escola, que registravam as condutas abusivas da Monitora Ana Cristina Fernandes de Oliveira, cujos atos violentos contra as crianças já haviam sido objeto de denúncia por parte dos funcionários e, conforme consta, também por pais de alunos. Assim se manifestou o Tribunal Estadual, ao denegar a ordem (e-STJ fl 55): Passo, portanto, à análise, pormenorizada, dos fundamentos elencados pela autoridade apontada como coatora para decretar a Prisão Preventiva, bem como para manter a Segregação Cautelar, considerando os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do CPP. - Da Imprescindibilidade da Segregação Cautelar: Circunstâncias Fáticas No caso, a gravidade concreta da suposta prática delitiva restou evidenciada pelo fato de que a Paciente, na condição de diretora do Colégio Abnara, supostamente, agindo de forma omissa, deixou diversas crianças que não possuem condições de se defender (vítimas bebês com idade inferior a dois anos) serem submetidas a sofrimento psicológico e físico em ambiente escolar (berçário), em tese, influenciando na coleta de provas essenciais à investigação, por possuir vínculo familiar com a Monitora responsável pelas agressões. Segundo consta das investigações, a Paciente, em tese, fora advertida por funcionária do Colégio sobre a prática de violência por parte da Monitora, mas, nada fez para interromper ou investigar o caso, permitindo, assim, a continuidade dos atos violentos (P Je n° 5002945- 73.2024.8.13.0460 e n° 5002940-51.2024.8.13.0460). Depreende-se dos áudios e imagens do sistema de segurança, comportamentos inadequados e atos de agressão físicas praticados por Ana Cristina Oliveira, Monitora e prima da Paciente, contra crianças no berçário (P Je n° 5002945-73.2024.8.13.0460 e n° 5002940- 51.2024.8.13.0460). Denota-se dos áudios que Ana Cristina Fernandes, em tese, admite ter dado “beliscão” em uma das crianças, afirmando que “perdeu a noção e fez com vontade”, além de afirmar que os hematomas na perna do menor não foram causados por ela (P Je n° 5002945-73.2024.8.13.0460 e n° 5002940-51.2024.8.13.0460). Extrai-se que várias crianças estavam chorando, enquanto a professora fala em tom ríspido: “abre a boca”, “engole”, “não cospe”, “tira a mão da boca”, “tira a mão da comida”, sendo que, em determinado momento, uma das crianças parece se engasgar devido as ações da Monitora (P Je n° 5002945-73.2024.8.13.0460 e n° 5002940- 51.2024.8.13.0460). (...)
Como visto, a decisão que manteve a prisão preventiva da paciente apresenta fundamentação válida, baseada na gravidade conduta, porquanto, na condição de diretora da escola, a paciente permaneceu inerte diante das agressões físicas e psicológicas perpetradas contra crianças com menos de dois anos, cuja notória vulnerabilidade tornava ainda mais grave a omissão.
Porém, é necessária também a "verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. [...]. (HC n. 128.615 AgR, Relator Ministro CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 18/8/2015, publicado em 30/9/2015).
Isso porque, "a prisão preventiva somente se justifica na hipótese de impossibilidade que, por instrumento menos gravoso, seja alcançado idêntico resultado acautelatório. [...]. (HC n. 126.815, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão Ministro EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 04/08/2015, publicado em 28/8/2015).
Embora seja inegável a gravidade dos fatos atribuídos à paciente, notadamente por se tratar de condutas supostamente omissas e coniventes frente a supostos atos de violência perpetrados contra crianças em ambiente escolar, a prisão preventiva revela-se medida excessiva diante da possibilidade de aplicação de medidas cautelares diversas, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
Ressalta-se que a gravidade do delito, por si só, não justifica, de forma automática, a manutenção da segregação cautelar, sendo imprescindível a demonstração concreta da necessidade da prisão para acautelar a ordem pública, a instrução processual ou a aplicação da lei penal.
No caso em análise, embora a decisão que manteve a prisão fundamente-se na posição de autoridade da paciente como diretora escolar e em possível tentativa de dissuasão de testemunha, verifica-se que tais fundamentos podem ser plenamente neutralizados por outras medidas cautelares menos gravosas, como o afastamento de suas funções, a proibição de contato com os demais envolvidos, o comparecimento periódico em juízo e a proibição de ausentar-se da comarca, todas com respaldo no art. 319 do CPP.
Ademais, a paciente ostenta condições pessoais favoráveis que recomendam a substituição da prisão preventiva por medidas cautelares diversas, conforme previsão do art. 319 do Código de Processo Penal.
Trata-se de pessoa primária, com bons antecedentes, residência fixa e vínculo familiar estabelecido, elementos que indicam seu enraizamento social e reduzem o risco de fuga ou de reiteração delitiva. Além disso, conforme amplamente demonstrado nos documentos juntados aos autos, a paciente é portadora de diversas comorbidades e necessita de medicações contínuas específicas, as quais não vêm sendo disponibilizadas pelo sistema prisional.
Tal circunstância evidencia grave comprometimento à sua integridade física e à dignidade da pessoa humana, reforçando a desproporcionalidade da custódia cautelar diante da possibilidade de aplicação de medidas alternativas suficientes para garantir os fins do processo penal.
A jurisprudência pátria tem reconhecido, de forma reiterada, que a prisão preventiva deve ser a última ratio no sistema processual penal, devendo-se avaliar, com especial cautela, a possibilidade de substituí-la por medidas alternativas quando estas forem suficientes e proporcionais ao caso concreto, ainda que os crimes imputados sejam graves.
Assim, no contexto dos autos, revela-se desproporcional a manutenção da prisão preventiva, sendo perfeitamente possível resguardar os fins cautelares do processo penal com a imposição de medidas substitutivas adequadas, eficazes e menos gravosas, em atenção ao princípio da proporcionalidade e à excepcionalidade da prisão cautelar.
Recorde-se, mais uma vez, que a Lei n. 12.403/2011 estabeleceu a possibilidade de imposição de medidas alternativas à prisão cautelar, no intuito de permitir ao magistrado, diante das peculiaridades de cada caso concreto e dentro dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, resguardar a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal.
Ainda, nos termos do art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal, modificado pela Lei n. 13.964/2019, “a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.
Desse modo, caso se vislumbre a possibilidade de alcançar os resultados acautelatórios almejados por vias menos gravosas ao acusado, elas devem ser adotadas como alternativa à prisão. No caso, verifica-se que os fundamentos apontados estão vinculados à condição da paciente como diretora do estabelecimento educacional, autoridade que teria deixado de exercer e permitir que os supostos delitos ocorressem.
Nesse contexto, (i) o afastamento das funções que exerciam como diretora escolar é medida suficiente para conter eventuais riscos, especialmente à ordem pública. Além disso, a medida cautelar de (ii) proibição de manter contato com outros investigados e com as famílias das vítimas se mostra também adequada e necessária para resguardar a instrução processual, preservando a colheita de provas, a liberdade dos envolvidos de prestar suas declarações, de modo a assegurar o resultado esperado na investigação criminal. Por fim, outras medidas adicionais, como (iii) comparecimento periódico em juízo, (iv) proibição de se afastar da comarca por mais de 5 cinco dias sem comunicação prévia ao juízo, (v) recolhimento de passaporte, complementam a segurança esperada para manter a ordem pública, resguardar a instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal.
No contexto dos autos, apesar de válida a fundamentação apontada, entendo que a prisão é prescindível e as medidas acima especificadas se mostram suficientes e adequadas para acautelar o processo penal.
Nesse sentido: PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. PARTICIPAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E TORTURA. ORDEM CONCEDIDA PARA SUBSTITUIR A PRISÃO PREVENTIVA DA AGRAVADA POR MEDIDAS ALTERNATIVAS. INEXISTÊNCIA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DA CONDUTA DELA NA DECISÃO QUE IMPÔS A PRISÃO CAUTELAR. MANUTENÇÃO DA MONOCRÁTICA QUE SE IMPÕE. 1. Deve ser mantida a decisão monocrática em que se concede a ordem impetrada, quando verificado que o Magistrado singular, ao decretar a prisão cautelar da agravada, juntamente com a dos corréus, não logrou individualizar a conduta dela nem demonstrar os motivos concretos pelos quais sua segregação seria necessária. Precedente. 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no HC n. 665.224/MT, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 28/9/2021, DJe de 30/9/2021.) HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA. SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ORDINÁRIO CABÍVEL. IMPOSSIBILIDADE. TORTURA. CRIME COMETIDO POR AGENTE PÚBLICO. PRISÃO PREVENTIVA. SEGREGAÇÃO PROCESSUAL DETERMINADA NA SENTENÇA. RÉU QUE PERMANECEU EM LIBERDADE NO CURSO DO PROCESSO. AUSÊNCIA DE FATO NOVO APTO A RESPALDAR O ENCARCERAMENTO. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. EXTEMPORANEIDADE. MEDIDAS CAUTELARES. SUFICIÊNCIA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir o manejo do habeas corpus originário em substituição ao recurso ordinário cabível, entendimento ora chancelado peloa Superior Tribunal de Justiça, ressalvados os casos de flagrante ilegalidade, quando a ordem poderá ser concedida de ofício. 2. No caso, o paciente permaneceu solto durante a tramitação do processo, que durou aproximadamente 9 (nove) anos, à exceção do período de cerca de 2 (dois) meses (entre 08/09/2015 e 18/11/2015) em que esteve cautelarmente custodiado. 3. O motivo ensejador da negativa do direito em recorrer em liberdade, qual seja, a existência de dois inquéritos, não é contemporâneo à imputação do presente feito (04/01/2009) ou à própria sentença lançada em 06/03/2018, eis que tratam de fatos ocorridos, respectivamente, em 17/09/2012 e 04/05/2015, antes, inclusive, do curto período de prisão cautelar. Portanto, eram circunstâncias já conhecidas quando posto em liberdade o paciente em 18/11/2015 e que não justificaram, à época, a manutenção da constrição corporal. 4. "Assim, na espécie, mesmo levando em conta a gravidade da conduta atribuída ao acusado, as particularidades do caso, notadamente a ausência de contemporaneidade entre os fatos e o decreto constritivo, demonstram a suficiência, a adequação e a proporcionalidade da imposição das medidas menos severas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal." (HC 454.561/RJ, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 11/09/2018, DJe 19/09/2018). 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para substituir a prisão preventiva pelas medidas cautelares especificadas no art. 319, incisos I e V, do Código de Processo Penal. (HC n. 451.000/MG, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 16/5/2019, DJe de 29/5/2019.) RECURSO EM HABEAS CORPUS. TORTURA. CONVERSÃO DA PRISÃO PREVENTIVA EM PRISÃO DOMICILIAR. LEI N. 13.257/2016. ACUSADA QUE POSSUI DUAS FILHAS MENORES DE 12 ANOS. POSSIBILIDADE. ACUSADA PRIMÁRIA, COM BONS ANTECEDENTES E RESIDÊNCIA FIXA. RECURSO PROVIDO. 1. Embora o pedido originário tenha ocorrido antes da edição da Lei n. 13.257/2016, o presente recurso será analisado á luz do inciso III e do inciso V, introduzido pela referida lei, por se tratar de lei posterior mais benéfica. 2. O inciso V, introduzido pela Lei n. 13.257/2016, não trouxe maiores detalhamentos sobre os requisitos subjetivos a serem atendidos para conversão da prisão preventiva em domiciliar. No caput do art. 318 do Código de Processo Penal encontra-se a previsão de que o Juiz poderá converter a prisão preventiva em domiciliar. Dessa forma, essa análise deve ser feita caso a caso, pois se por um lado não existe uma obrigatoriedade da conversão, por outro a recusa também deve ser devidamente motivada. O requisito objetivo está atendido, uma vez que a recorrente possui duas filhas menores, uma com 7 e outra com 9 anos. No tocante ao preenchimento do requisito subjetivo, ainda que se trate de crime equiparado a hediondo, pesa em favor da paciente o fato de se tratar de acusada primária, com bons antecedentes, residência fixa e cuja atenuante da confissão espontânea foi reconhecida na sentença condenatória. Assim, considerando que a presente conduta ilícita se trata de fato isolado na vida da paciente, acrescido ao fato de que até o momento da prisão era ela a responsável pela guarda, criação e orientação das menores, mostra-se adequada a conversão da custódia cautelar em prisão domiciliar. 3. Recurso ordinário provido para converter a custódia cautelar em prisão domiciliar, cujas condições ficarão à cargo do Juízo de primeiro grau, com advertência de revogação no caso de descumprimento. (RHC n. 71.697/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 17/11/2016, DJe de 23/11/2016.)
Ante o exposto, com fundamento no art. 34, XX, do RISTJ, não conheço do habeas corpus. Contudo, concedo a ordem de ofício para substituir a prisão preventiva da paciente pelas medidas cautelares estabelecidas na presente decisão. Intimem-se.
Relator
REYNALDO SOARES DA FONSECA
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